Sandra Costa
Sandra Costa nasceu em S. Mamede de Coronado, concelho da Trofa, a 11 de Setembro de 1971. Licenciada em História, Ramo Educacional, pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, com Mestrado em História Contemporânea. É professora de História do Ensino Básico e Secundário. Escreveu no weblog Tempo Dual e é autora do belíssimo site “Boticelli”. Em dezembro de 2011 começou a escrever no blog Manual da vida breve
Tem quatro livros publicados: Sob a Luz do Mar, Campo das Letras, 2002 (com o apoio do Ministério da Cultura – Instituto Português do Livro e das Bibliotecas); Nada se Sabe das Profundezas; In-Libris, 2003 - um poema escrito para uma fotografia da série "diplicidades" de Paulo Gaspar (infelizmente esgotadíssimo), Nenhuma Flor- oito imagens e o dizer dos lábios, In-Libris, 2004 (apoiado pelo Centro para o estudo das artes de belgais; Paulo Gaspar é co-autor com fotos magníficas, captadas depois do incêndio ocorrido em Junho e 2004 na Granja de Belgais) e A Vocação dos Homens Silenciosos, Cosmorama, 2006. UNTITLED, volta d’mar, 2017 .Boletim Meteorológico, volta d'mar, 2020.
A sua poesia está representada em várias antologias e revistas literárias.
Ver mais: insónia/ manual da vida breve /
Silêncio desnudado em sol sustenido
Uma janela que se abre
em pétalas de Sol
embala o amanhecer insone
da ternura.
E os sonhos florescem nas mimosas.
E as mãos moram em versos
e em sorrisos.
e o meu olhar de gaivota em revoada
canta o nosso silêncio desnudado.
Manhã sem adjectivos
A manhã chegou à janela do meu quarto
e entrou. Trazia, em braços de giestas e mimosas,
a cor da Primavera
e um raio de Sol nasceu no meu sorriso que
ainda sonhava o teu corpo num beijo.
Deslizei a mão pela tua ausência na minha cama
e senti ainda na extremidade dos meus dedos
o teu calor, a tua nudez, o sal da tua pele.
Nesse abraço voltamos a fazer amor.
Escreve-me muitas vezes
Escreve-me muitas vezes
como os percursos ininterruptos das formigas
o ritmo dos girassóis devolvidos à condição de flor
e o reflexo das nuvens no lado interior dos rios
guardados nas minhas mãos
Escreve-me tantas vezes
quantos os nocturnos quase-vazios entre as estrelas
os quebrantos de mar aos pés prateados da lua
e as intuições anunciadas na respiração dos dedos dos amantes
Nunca deixes de me escrever
como se o tempo das palavras fosse o dos regressos
confirmado na existência e docilidade das pedras
Nunca deixes de me sentir
Varanda para o mar
Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar
Para que as manhãs acordassem no velame inquieto da claridade
E as sombras fundeassem frescas pelas paredes opacas do meio-dia
E os entardeceres rebentassem em sotaventos de crepúsculo num quarto
Todas as casas deviam ter uma varanda para o mar
Ou uma janela...
Ou um parapeito...
Um olhar...
Poema sem verbos
Manhã azul cinzenta, levemente baça,
de Primavera.
As mimosas suspensas – amarelos ausentes.
Flores tímidas, promessas de arco-íris.
Pássaros silenciosos, simples traços de carvão,
asas de papel.
Crianças. Muitas crianças. Sorrisos, claro.
Não sorrisos claros – nem sequer em fuga.
Sorrisos de estátua nos meus olhos. Só nos meus olhos.
Olhos sem vento sem sol sem sonhos sem beijos.
Poema sem verbos – morto.
de Sob a luz do mar; Campo das Letras Editores
onde queres que deixe?
Onde queres que deixe as manhãs
que regressam dos poemas por dizer-te?
Onde queres que deixe o silêncio excessivo
das buganvílias que os dias ainda colhem
em cada varanda que não dá para o mar?
Onde queres que deixe as intactas travessias
que me inquietam os dedos e a sede,
como se houvesse um rio onde só a lua
tem nome e que só eu reconheço?
Onde queres que deixe a suave inclinação
de todas as planícies que um dia
te quis escrever?
Não sei que noite é esta
Não sei que noite é esta,
em que o mar é um silêncio moribundo
e a lua um nocturno de Chopin.
Não sei que noite é esta,
astros em danças-vésperas de sul,
um chão cúmplice de miragens.
Não sei que noite é esta,
êxtases nos contornos circulares de um sonho
madrugadas num lento equívoco de gestos um regresso
de lua na matriz azulada de uma pausa de um beijo
Não sei que noite é esta,
em que o mar é um ângulo de dedos em surdina
e a lua o contorno íntimo de um presságio de ombro.
Doces afagos pedem os teus beijos...
Doces afagos pedem os teus beijos
Às minhas mãos que de noite acordam...
Inteiramente nuas...
E desses toques com que incendeio os nossos corpos...
Nascem histórias... Que são minhas e tuas..
E em todas as noites... Reinvento a curva do teu pescoço...
À procura dos teus beijos que nos adormecem... Debaixo de mil luas...
Magia (III)
Na planície de um poema sentir o vento
Das palavras com que tocas o meu corpo...
E desse toque com que agora faço poesia...
No teu corpo deixar marcas de magia...
Hai-kai
I
Bebeste uma lágrima
De Poesia nos meus lábios
Sedentos de amor...
II
No silêncio ou
no grito da nossa noite
fizeste-me Sol...
III
Rodin esculpiu
O beijo que a tua boca
marcou na minha...
Porque...
Porque já fui as palavras que não conseguias escrever...
É não ser este poema nos teus olhos que me cala...
Porque já silenciaste a minha boca com os teus beijos...
É não perpetuar-me em ti que me incendeia...
Porque já foste pele da minha pele...
É o teu sabor que procuro no rasto da Lua...
E porque já fui Sol no teu corpo...
Sinto-me um olhar de Outono ao pé dos outros...
E porque já és parte de mim...
A todos me dou em forma de poema...
E, amor,
sabes que sorrio ao escrever-te este poema....
Depois do amor...
Depois do amor...
Escrevo nos contornos do teu corpo
Este poema feito com os versos dos nossos beijos
E com a minha forma simples de amar-te...
De simplesmente estar ao teu lado quando acordares...
Depois do amor...
E dar-te este poema como se fosse um beijo...
Adormeço...
Nesta noite que fazemos nossa...
Adormeço no teu regaço debaixo do silêncio da Lua...
Adormeço nua...
Adormeço tua...
Entrego estas palavras aos teus olhos
Entrego estas palavras aos teus olhos
Para que delas faças o brilho do teu olhar...
Deixo-as escorregar até aos teus lábios
E com elas faço o beijo que não te posso dar...
E, por fim, já ofegantes desta ternura...
Levo-as de dentro de mim até dentro de ti...
Para que delas façamos a nossa simples forma de amar...
Pergunta-me
pode um pássaro atravessar as lentas planícies
do amor?
com outras asas inacabar um crepúsculo
é trabalho de todos os homens?
é na nudez ou na ondulação das árvores que habitam
as coisas possíveis deste mundo?
porque esfumas na contraluz a substância
efémera dos teus poemas?
em que Língua um dia me deixarás de responder?Pergunta-me.
Evidente a incerteza
Um círculo exausto exposto sobre
as coisas e a luz oblíqua
do silêncio.
Ainda tombam as buganvílias
e as noites contradizem o início
do poema: é evidente a incerteza
rítmica do meu corpo e o fôlego com
que as mãos propiciam o azul
dos promontórios.
(de repente, a sensação de que
tocas a púbis do tempo
e seixos pontiagudos desabam
em colunas de silêncio)
Nenhum regresso está preso às pálpebras.
Explicam-me, por fábulas, que só o que resta
do Verão é sensível à luz – como as ombreiras das
portas ou o restolho batido pela impossibilidade
do vento – e eu acredito.
Alguma coisa há de verdade em tudo isto
[nenhum regresso está preso às pálpebras]:
olho por dentro do silêncio e o negrume
é nítido como um grito.
*********
No princípio,
o sopro é o medo
enrolado sobre os frutos
- onde o visível se aproxima
da solidão profunda –
e acumula-se,
em círculos, a impressão
de um reino posterior
a tudo.
**********
Repercutem os nomes abatidos
a luz atravessada do avesso
as películas que ficam do absoluto dos poemas
o ofício da vigília dentro do sono mais profundo
- designações trémulas do sagrado
ou um par de asas a corromper o silêncio -
de Nenhuma Flor – oito imagens e o dizer dos lábios, In-Libris, Belgais, 2004
mythos*
este é o tempo dos construtores de mitos
da delineação límpida e grega de todas as coisas
da solidão em ânforas mediterrânicas
transportadas pela sede das árvores do sul
e onde o sol modelou a porosidade do silêncio
toda a claridade é azul
e todos os templos projectam o infinito
proponho o homem sobre o gume dos estames
a exactidão inclinada de todos os mitos
(in)consistências*
I
Sob um círculo de fogo
suspenso pólen sobre a tarde
flutuam as imagens todas
fugidias como as paisagens ofegantes
que passam pelas gáveas.
Reinventas uma flor sobre a ondulação
do meu desejo
e os nomes rarefazem-se.
Hoje o dia consentiu que um azul circunstancial
morresse ao primeiro canto do mar.
II
Volúvel é o silêncio das frases que não adquirem
matéria poética por serem quotidianas:
há uma pedra à entrada de cada poema
como um aviso
"volte mais tarde, o desejo
também se faz de beijos que ficam por dar".
III
Repara como o poema tem a consistência
de uma pedra polida rente à púbis do tempo:
há peixes a coincidir com o crepúsculo
uma penumbra que levanta as saias da noite
e uma poalha de estrelas que desfaço na boca
porque a tua língua evidencia a minha nudez.
não quero*
não quero escrever o nada
o que não faça profundamente
sentido
escrevo o silêncio
para me manter à superfície
do mundo
dualidades mínimas #22
na espessura deste tempo
arrastado determino ventos
horizontes doridos varridos de ti
gumes escondidos entre as corolas*
[...] Se houve mais histórias? Sim, houve outra, mas a essa cortei-lhe a imaginação pela raíz. Intrigado? Autor que se preze não deve ser históricida? Tens razão, mas esta outra história era tudo menos minha e condicionava o sol a estrela distante, quando ele já tinha sido húmus, matéria onde estremeceram os poemas. Uso linguagem demasiado figurada, de facto. Digamos, digo-te eu, que é uma forma de proteger as palavras ou de me proteger das palavras, porque sou das que acreditam que elas têm gumes escondidos entre as corolas, mesmo que as colhas já murchas de tanto uso.
o que permanecerá*
Volto às histórias? Sei, de repente, elas deixaram de ter importância porque o que permanecerá não são os presságios que ficam dos voos das aves mas o que de improviso se encontra entre duas mãos abraçadas. Volto às histórias, impossíveis então que são as mais fáceis de imaginar, até porque a voz me foge quando como agora te falava e eu não quero ainda parar de te escrever.
o fio da meada*
Eu sei, parece-te que perdi o fio à meada, mas não. Tive de fazer parágrafo porque a pergunta pedia-me que te olhasse nos olhos e sabes que me perco sempre em qualquer dos lugares onde guardas a ternura.
inventário sem sentido para criar uma infância comum
acordar no bolso esquerdo da casa
com uma pergunta dentro do aquário
porque cada pássaro acende uma manhã
surpreender a mesa no fundo do copo
bater a porta da rua com a pronúncia dos espelhos:
«se te digo que voo não me arranques os pés
de entre as nuvens!»
procurar um contador de histórias
porque era uma vez um cordão desapertado
e não ter medo de não encontrar o fim
não ter medo.
perguntário sem sentido para criar uma infância comum
o que significam as tardes se no fim do dia
se acendem as luzes da rua?
porque é que arrancando a urze dos olhos
do meu pai me ficam as mãos em concha?
onde devo depositar o chão que treme
por cada medo que decifro à contraluz?
qual o segredo das cordas e do papel
de embrulho para que eu não desconfie
do que nos segura à terra?
se não te prometer que regresso
amanhã contas-me uma história?
dualidades mínimas #27
creio profundamente nas palavras
que ficam por dizer, só assim construo
babilónias, lugares suspensos e duais
desassossegos*
Não sei grande coisa de desassossegos,
o mais que faço é aproximar-me de uma varanda
como de uma falésia, esquecer-me, mesmo,
do guarda-chuva e sentir o céu, fechar
os olhos quando o desejo vem e não te ter
como se te tivesse.
regressos*
Em cada folha de Outono se desprendem os regressos
a decompor.
copo de vidro ao acordar*
guardo um copo de vidro
sobre a mesa de cabeceira
quando acordo quero parecer
transparente e fugir dos regressos
na última pálpebra
deixo ainda que o sono vença
e sem ti
finjo que o desejo acontece
exercício #2*
Depois da próxima curva, a estrada acaba. Ainda assim, continuamos?
só as árvores*
Há um tempo
em que os minutos são palavras
de vozes ausentes.
N.S.
E por onde passo – entre muros
e sombras perdidos na solidão –
só as árvores deixam rasto
– e fugas – sobre essa luz
de inverno que agora é
ausência silêncio respiração.
cancioneiro #1*
Anunciar o resto dos dias é agora a minha errância.
Quantas vezes terei de repetir
um verso diferente pelos umbrais
é agora o meu mistério.
Poisar os enganos à sombra de cada árvore
como quem de um grande amor descansa
é agora o meu alento.
Adormecer pela manhã é agora a minha infância.
amor
(prenda de Natal para o Alexandre Monteiro; 2003)
todos os poemas de amor já foram
escritos
apagados
alumbrados
proscritos
eternizados
negados perante uma tribuna de deuses sem sexo
suportados em nome dos lugares que não se conseguem pronunciar
violentados nas entranhas à hora das madrugadas virgens
premiados com perguntas estúpidas como cenas dos próximos capítulos
enterrados como mártires de mais uma religião
todos os poemas de amor já (te) foram
entregues
lembrança
(prenda de Natal para Ferran, 2003)
camisola do avesso como um sinal
post-it na porta do frigorífico
cordel atado num aro
cruz desenhada na mão
toque polifónico à saída do carro
toda a gente avisada para o aviso
e esquecer-me que te vou esquecer
______
Se me procuras no ventre
de imediato renasce a noite mais densa,
pequenos deuses afloram-me sobre os lábios
ou sobre os flancos e as pálpebras cedem
em partículas húmidas de silêncio.
problema de linguagem*
Acho que é um problema de linguagem
este meu amor por ti:
comporta-se como o corpo que acorda
ainda agarrado aos sonhos,
levemente agoniado,
sem protecção contra a realidade
contra as palavras.
da profundeza*
1
Contemplar as sombras
que ficam do lado esquerdo do amor.
2
Nomear o que não existe
com palavras muito antigas.
3
Deixar no poema
apenas o silêncio.
4
Iluminar – assim –
o mundo.
quase no fim*
Não imagino outra forma
de dizer o amor senão usando
o que sobra de luz quando as tardes
terminam: são de sombras vagas
todos os versos que te escrevo.
[esquecimento] os lugares onde só eu chego
fazem-se da matéria mais longínqua:
não são impossíveis mas se me distancio
de mim mesma já não existem
FELTRO
[ao ouvido]
diz-me o caminho diz
onde diz como e com
que palavras e sem
que palavras e diz-mas
baixinho cuidado não
faças barulho não digas
antes que chegue
o nome e o sentido
do que devagarinho
queima entre um
silêncio e outro.
olhos rasos de ti
as vozes das crianças
as próprias crianças
tudo cessou, ficou
suspenso o futuro
apenas a tua voz e
uma perplexidade
liquefacta ponte branca
para a noite, o mundo
a fechar - que importa.
sei lá eu que fazer
daquele dia a cair
como simplesmente
continuar depois
daquele still?
Poemas seleccionados ao longo do tempo
Explicar a manhã
Explicar a manhã
é anular-lhe a luz
e apagar todo o silêncio
que existe na poesia.
Do efémero
Das folhas nos largos.
Da contraluz nos tejadilhos.
Da mansidão às cinco da tarde.
Da exuberância à esquerda dos musgos.
Da poesia que não se demora.
O amor
Guardasse eu os poemas
como se as imagens fossem
a única matéria que sobrevive
à dissolução do mundo:
nos meus olhos silenciosos,
eterno seria o amor.
de Poesia SMS, Elefante Editores, 2003
Sobre a ponte, observas
o ondular da água, o bater
do sol nas muralhas do rio (os limos
e as margens como um só silêncio ou
a solidão imaginada de uma forma qualquer),
o movimento inclinado dos esteios, o quebrar
das sombras
as flores nocturnas – desfeitas – das palavras esquecidas
os deuses tardios que interrompem as madrugadas
até que o vento ao longe se aquiete
em Os rumos do vento / Los rumbos del viento (Antologia de poesia)
Câmara Municipal do Fundão/Trilce ediciones; 2005
Haveremos de tocar o tronco das árvores
Como se esse fosse o último destino dos homens:
Cair como sombras sobre as coisas.
*
Não imagino outra forma
de dizer o amor senão usando
o que sobra de luz quando as tardes
terminam: são de sombras vagas
todos os versos que te escrevo.
O tamanho impensável das flores
O tamanho impensável das flores
Prende-me ao chão
E não serve de nada encontrar um lugar
Onde possa ser outra coisa qualquer.
Existimos de forma concisa
Num gomo de laranja, no feixe
De luz oblíquo ao parapeito da janela,
Nas superfícies das paredes que sobem
Até ao tecto da casa, no vidro outrora
E na gota de chuva e quando cessa a chuva
No troar das andorinhas, existimos de forma
Concisa
Não tendo o mundo outra forma de existir.