Rui Pires Cabral

Rui Pires Cabral, nasceu em Macedo de Cavaleiros, Trás-os-montes em 1967. Formado em História e Arqueologia pela Universidade do Porto, é escritor,  poeta e tradutor.

Publicou vários livros de poemas:

  • Geografia das Estações, Edição do Autor, 1994;
  • A Super-Realidade, Edição do Autor, 1995;
  • Música Antológica & Onze Cidades, Presença, 1997;
  • Praças e Quintais, Averno, 2003.
  • Longe da Aldeia, Averno, 2005
  • Capitais da Solidão, Teatro de Vila Real, 2006
  • Oráculos de Cabeçeira, Averno, 2009
  • Evasão e remorso (2013), 

A sua obra poetica está reunida na compilação Morada (2015)

Rui Pires Cabral tem poemas publicados em revistas como "relâmpago", "periférica" , "telhados de vidro" e em, pelo menos duas antologias: "O futuro em anos-luz", selecção e organização de valter hugo mãe, quasi, Porto 2001 e "Anos 90 e Agora- Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa", selecção e organização Jorge Reis-Sá, 2001

"Sempre esperei que a poesia pudesse falar por mim, e nunca soube falar sobre ela sem sentir que estava a traí-la de algum modo. È uma incapacidade absolutamenteassumida (...) Não tenho outro critério para avaliar a poesia: aquela que me convém tem de ficar perto do coração e dos sentidos."

Rui Pires Cabral
em Relâmpago - revista de poesia, nº12, Abril 2003

Ler mais: poesia ilimitada/ antoniomiranda /

Poemas

Nesta vida – é um facto – estamos sempre
a desaprender coisas novas. O mundo
vai guardando a luz nas suas bainhas negras
e temos a melindrosa companhia dos fantasmas
que nos procuraram: eles governam rudemente
os nossos pequenos reinos e há um ceptro novo

para cada coroação. De repente, com a volta
das estações, damos por nós muito mais velhos
nas fotografias. As razões que nos assistiam
empalidecem em paisagens cruelmente coagidas
pela luz. Fomos expulsos dos grandes palácios

da alegria? Onde estão os mapas que nos guiavam
lá dentro, exactos como o instinto? Não sabemos
responder: o caminho turva-se: são as incertezas
da maturidade. As palavras não nos iluminam
e o amor está condenado aos defeitos naturais
do coração, que ainda assim há-de voltar a arder

sem defesa nem socorro uma vez mais.

 

de Praças e Quintais, 2003

Hoje o que nos convém
é uma certa escuridão
inventada de raiz.

Talvez seja o nosso prémio,
a meio do caminho, depois
de tantos sobressaltos.

Deixamos entrar no quarto
as mais modestas canções:
Quem de dentro de si não sai
vai morrer sem amar ninguém.

Antes uma ameaça, agora
uma simples explicação.

na relâmpago, nº12, Abril de 2003

Pacto de Sangue

Não chegámos a fazer o nosso pacto
de sangue. Lembrei-me disso mais tarde,
em Holland Park, num passeio onde anoiteceu
de repente. A navalha, fetiche sentimental,
julgo que a deixámos esquecida no fundo de uma mala.
Nessa altura eu teria jurado não voltar a desencontrar-me
do Verão. Na verdade, esse foi o melhor de todos.
A luz vinha morder à tua mão.

Acreditas realmente que as coisas teriam sido
diferentes, que os dias, crescendo assim tão quietos,
jamais se deixariam corromper? Como seria desejável,
como gostarias que eu recitasse a tua pequena lição,
em Holland Park, no muro branco que escurecia
em teu redor. Afinal não chegámos a fazer
o nosso pacto de sangue, devolve-me sem culpa
ao meu lugar natural. Não me perdoes nada.

Abril

Eu disse: quem pôs aqui este rio?
Alguém tinha desenhado na paisagem
um cenário para a nossa história.
Manchas inteiras de urze, papoilas,
giestas. Até se disse em Terena
que Abril não vinha assim tão verde

há muito tempo. Sim, tinha chovido muito
nesse ano, mas nada esteve por acaso,
nem o céu de manhã cedo nos castelos
com a erva a crescer dentro e fora das muralhas,
nem sequer a nossa primeira noite, aquela

em que esperaram por mim noutro lugar.
Sozinho, sem outra defesa que não fosse
a minha própria solidão, eu estive onde tu
me pudesses encontrar. E depois subimos juntos
a rua molhada. E já chovia por Abril sem o sabermos.

São Pedro de Alcântara, 45

Peluches e retratos criavam uma nódoa
no ar à sua volta, o tempo chupava os olhos
das bonecas como açúcar.

Eu seguia aquelas ruas muito depois
das janelas, pelos toldos que se abriam
contra o volume da noite.

Era o silêncio enrolado na tinta por entre
as portas, uma espécie de estridência, vinha
do fundo dos tectos.

Não consigo explicar isto melhor.
Os carros faziam uma música
tão alegre nas esquinas.

Serrim

As árvores eram a nossa bandeira,
o nosso chão. Vinham das matas em volta,
nuas, decapitadas, antes que pudéssemos
separar o nome dos lugares onde as deitavam:
as achas a arder na cozinha, a tábua negra das pipas,

a portada das janelas na salinha resguardada
das visitas. Corríamos ao largo da serração
a estorvar o movimento, a pesagem dos troncos
por homens de boné e camisa arregaçada. E ninguém

nos queria ali, no lugar maior do dia,
escalando as montanhas do serrim
sob o retumbar das máquinas, caindo lá de cima
com as cócegas do salto na garganta, na barriga.

A Suíça

O sangue do teu irmão
não corre, encharca uma floresta
de clareiras desprezadas pelo fogo.
Trazes para a cama santos e dragões,
tantas mitologias misturadas. Estamos
entre a gente verdadeira num cercado:
os rebanhos bebem de uma água preta,
envenenada. E logo à tarde nos barcos
vou sentir-me mais avulso e mais perdido
do que tu. Ah, o Zürichsee, o prémio prometido
pelos meus piores versos. Os patos, as pontes.
Um amor guiado pelas distracções do desespero.

de Praças e Quintais, 2003

Cabeça

Tudo tende para a tua pele, velocidade
e hábito. Deitados na mancha, no branco
da tarde, eu não posso estabelecer uma fronteira.
É o amor que se levanta contra o rasgão das janelas,
no lugar onde o puseste de propósito.

São estes dias — onde havemos de ir?
Estamos vestidos para o inverno, as plantas da casa
têm tudo o que precisam. Eu não posso imaginar
outra maneira. A minha cabeça ergue-se sempre
entre nós, dividida por dentro como um fruto.

 Quintais

A minha cabeça é uma máquina
natural, só as janelas mudaram
de lugar e de paisagem. Outros panos,
outras árvores agarradas
à palma firme da terra.

Houve pioneiros para tudo,
a minha própria solidão foi hasteada
noutros livros. E eu só te tenho a ti
nestes quintais sombrios.

 

de Praças e Quintais, 2003

Nós vivemos na cidade quase sempre perdidos
nas nossas pequenas razões. Estas ruas
ainda prometem mais do que podem cumprir?
A breve epifania do amor ou simplesmente
um cúmplice que nos diga, à mesa de um café,
que não faz mal, que pouco importam
as perdas e danos que sofremos.

De qualquer modo o mundo continua.

Entre o medo e a esperança
procuramos a nossa incerta morada
e enquanto isso envelhecemos mais um dia,
colhidos pelo tempo em plena queda. Nas praças,
nos quintais, a noite aparece depois do jantar
cheia de boas promessas, mas já vem condenada
ao tropel dos crentes, ao cego movimento da manhã.

 

de Praças e Quintais, 2003

O silêncio e a temperatura dos museus
permeiam toda a cidade. A quantos serviram
estas velhas casas? Hoje são montras de antiqualhas,
folhas roubadas ao calendário da mocidade inglesa
de 1890. Caixas de tabaco, tinteiros de louça,
leques ilustrados com danças de estilo e figuras.
Melhor ou pior, toda a gente desperdiça
a sua vida.
Entretanto o dia expira a meio da tarde
porque é Dezembro. A esta hora os autocarros
já vão cheios de gente para os arredores, Sydenham,
Whitnash, South Farm, onde as estradas anoitecem
entre casas geminadas e os corvos sobrevoam os quintais
dos imigrantes. Certos sentimentos podem de repente
viciar as cores do mundo. Vêem-se cercas, antenas
e tabuletas, tudo coisas úteis às complicações
do escuro que nos pertence, que sempre
nos pertencerá.

de Praças e Quintais, 2003

 

 

 

 

 

 

David's song

Um lameiro nas férias da Páscoa com choupos
pela ribeira acima. Os primos
vêm com paus, dispostos aos apuros
de uma aventura. Prevê-se o ataque
de um enxame de vespas, alguém cairá no lodo
com a roupa de domingo.
Uma nuvem, dois cães nas ondas da erva.

I put a spell on you

Tu não sabias de que lugar eu vinha
nem quem me enviava. As máquinas pareciam transbordar
sobre os campos, disseminando a noite
em plena marcha. E eu estava tão cansado quando me sentei ao teu lado. Generosamente pousaste a tua mão.
Os dias por vir jaziam amordaçados
debaixo da terra, nada fazia prever as cartas
que te escreveria. Algumas levavam fotografias, eu a olhar para ti no ar desfocado. Mas as notícias que te dava em mau inglês eram omissas, nunca respondi às perguntas que me fizeste. Acho que o desalento já estava deitado na cama, a própria parede parecia
muito doente.

de Música Antológica & Onze Cidades, Editorial Presença,1997

 

 

Gnossienne nº 1

Eu acreditei que podia amar
o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração
nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite
sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar
essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos mas crescias fora de alcance no teu próprio
pensamento. Uma distância que só serviria
aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas.
Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio
em que me mantinhas era mais urgente
que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo
mas eu perdia sempre alguma coisa
quando te ganhava. Às vezes era só
a minha vontade, outras vezes era toda a frase
do meu nome.

Lost weekend

Um dia é maior do que a soma
das suas horas, às vezes comporta
todos os invernos e as estações assombradas
pelos prejuízos do prazer.
Eu e tu, que desculpa ainda nos justifica?
A cidade não foi feita para as nossas pretensões,
está apenas alastrada por dentro de nós, crispação
de pedras e espinhos no laço desfeito entre as veias.
Adiantamos o corpo aos rolamentos da noite,
é a própria razão que nos ilumina os atalhos
para o esquecimento. Um ano inteiro não será suficiente para tudo o que não nos acontece.

de Música Antológica & Onze Cidades, Editorial Presença,1997

Regressado da noite, coroado pela poeira do fumo.
A pele vingou nas sublevações da corrente, mas os olhos
bateram no cascalho: é onde podem notar-se
as devastações, o avesso tenro da carne
exposto às navalhas da consciência.

A manhã recusa o sentido que lhe dão os pássaros,
a luz mansa sobre as telhas, as nuvens da cor do leite e espessas
como nos quadros ao fundo. Tudo o que existe no quarto te fala
com a voz desfigurada do poema, lamento ou sinal de alarme
que rebenta no gosto, no tacto da língua.

de Praças e Quintais, Averno, 2003

Havia um terraço com plantas
onde fazia calor durante a noite.
Podiam ouvir-se os comboios
e a sirene rival da Moagem, o trovão
era a voz de um deus contrariado
pela nossa inocência. Punham-se
as ameixas a secar ao sol,
penduravam-se uvas por cima
do escano. E no princípio do Outono
tiravam-se as colchas das arcas.
E chovia muito e cheirava a cânfora.

de Praças e Quintais, ed. Averno, 2003

 

 


 

 

Sing me to sleep

à Marjan, onde quer que esteja

o tojo abundava nas vertentes,
havia as rochas, os montes amarelos,
o rumor fundo dos bichos na arcadura
das chãs.

entre o meu silêncio e o teu
cresceu um verso com a tua boca
perto dos meus sentidos.

sabíamos que a chuva regressaria
eventualmente. as tuas cartas
ainda as tenho.

de Geografia das Estações; edição do autor, 1994

O Céu Visto de Cima

Tu já estavas prometido à tristeza
da cidade mais pequena, mas a noite
tinha passagens secretas, bastava seguir
os sinais.

A sombra de um réptil avançava muito fundo
nos teus estratos, tacteavas num território de pedras difíceis,
às vezes perigosas. Depois imergias e a boca estava
amarga outra vez, a roupa amontoada sobre a cadeira
como o princípio de um poema indesejado.
Reflectido nos teus olhos, o céu
era um lugar inabitável.

Super-Realidade

Eu era de terra quando me procuraste,
estranho à franqueza dos teus actos, baço
para os sentidos.

Parávamos o carro num beco qualquer,
queimávamos o rastilho das palavras
até ao deserto onde dávamos as mãos.

Lá fora, a realidade era o espaço inteiro
deitado pelos vidros, o mundo caído para dentro
do silêncio.

Gastávamos depressa o tempo, perdidos
no nosso único mapa,
nenhum sinal de mudança no regresso a casa.

de A Super-Realidade, edição do autor, 1995

I was made to love magic

A manhã com as suas proibições
na tua fala. A claridade estava a crescer
numa cama que já se tinha atravessado no escuro
como uma nave enfileirando para a guerra.
 
Eu não tinha ficado para conhecer a vista
das tuas janelas: imaginava um pátio riscado por ervas
mas não cheguei a levantar as persianas.
Talvez fosse um sítio ao qual não se pudesse regressar
porque quando falávamos os nossos olhos não coincidiam
com nenhuma palavra.
 
Teria gostado de te levar comigo outra vez
mas era difícil recuperar as razões
para o desejo. E no caso de nos ter acontecido uma mudança
onde é que havíamos de procurar
os seus indícios? Estavas a dar de comer aos peixes
e eu só falava em livros.
 
In Heaven
 
Como se fosse impossível, eu não me recusei
a ti no escuro, via o clarão do desejo
nas tuas pernas abertas, um rio negro alastrando
como se procurasse em nós esconderijo urgente.
 
E depois falaste durante muito tempo
com os incêndios da cidade a rebentar
por trás dos teus olhos. Parecia que não te bastava
trazares-me de regresso ao mundo real, também o querias
justificar para mim.

de Música Antológica & Onze Cidades, Presença, 1997
in Anos 90 e Agora -Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, ed. Quasi, 2001

 


 

Uma camioneta trouxe-nos na planura castelhana
evadidos à sorte das montanhas. A cidade
cresceu de repente à nossa volta, soubemos logo que seria luminosa para nós. E depois o nosso quarto
tinha uma varanda onde podíamos cear,
era todo um novo capítulo para a nossa história.

Saímos para rua com a noite
adiantada, observávamos o trânsito das tribos
no seu habitat natural. E como eram largas as horas
naqueles redutos secretos, como nos convinha a turbulência
nas esquinas, na Gran Via onde as chinesas vendiam sandes
de frango e pimento.

No fim de tudo caminhávamos abraçados
Porque as ruas generosas não costumam ter retorno.
Às vezes tu dançavas à minha volta, as luzes eram altas
como bandeiras.

de música antológica & onze cidades, 1997

Na estrada mal alcatroada
do subúrbio
onde havia fábricas e o dia
era um tormento

Quando a luz veio
nos postigos e o teu corpo
não me serviu de resgate

Tudo perdido em favor
das grandes rodas
da angústia no autocarro

Poema incluído em "Canções Subterrâneas"

SHIRLEY ANN EALES

Na vitrina lê-se Livros Raros
e Usados sob o azul inclinado
de um toldo - mesmo em frente
à glacial cafetaria de franchise
onde o dia destrata o desejo
e não se pode fumar. Subo
aos pequenos gabinetes
mergulhados no doce bafio
da literatura e percorro de A
a Z as espinhas estreitas

e rachadas da poesia. É o sítio
mais vazio de Novembro
e o que mais me reconforta;
e o livro que escolho, por metade
de uma libra, traz no frontispício
um nome e uma morada: Shirley Ann
Eales, de Scottsville - um sumido
autógrafo de maiúsculas magras
e triangulares onde a imaginação
encontra por enquanto pretexto

e oxigénio suficientes para arder.
O teu livro teve outra existência,
pertenceu a outra casa, a outra mesa
de cabeceira - e o pensamento,
de tão óbvio, conjura de repente
uma vertigem, é um corredor
abrupto para a imensidão do mundo
onde trafica o acaso. Ah, sabemos
que a vida é improvável se damos
por nós a cismar, a meio de uma tarde

insípida, numa mulher desconhecida
que lia poemas em Scottsville, nos anos
70. Mas haverá aqui alguma espécie
de sentido, algum sinal guardado
para alguém mais sábio ou inocente
do que eu? Não sei quem és
nem onde estás agora, Shirley Ann,
mas como seria belo se pudesses
um dia encontrar, por obra da mesma
sorte, o teu nome nestes versos.

poema divulgado pelo Rui Lage 

THE HEART OF ENGLAND

Eu queria o movimento, a inútil beleza
de tudo. Terraços sobre ruas estrangeiras,
solos de trompete. In the evening when
the day is through. Não era o amor, era
uma alegria mais complicada: nesse ano

eu regressei três vezes ao coração de Inglaterra

e entre os velhos monumentos do condado,
a que a distinção da morte dava um delicado lustro,
não era certo que encontrasse o que procurava.
Mas às vezes pressentia o pouco que valiam
as palavras e tudo o que não fosse estar ali
naquele momento, iludido e sustentado
pela luz de uma canção em terras estranhas.

CARTAS

Escreves-me cartas, sou o destinatário
da tua solidão. E sempre compreendo
tudo, mesmo o que não dizes, o que tinge
as entrelinhas de um branco desespero

que é tanto teu como meu: não tens
quem te salve, envelheceste, trataste mal
de um jardim que não chegou a vingar.
Se nos cruzássemos nas ruas desta cidade

entre desconhecidos de toda a sorte, talvez
nos sentássemos a falar da nossa vida, isto é,
de como vamos ficando cada vez mais orfãos
de nós próprios. Ou, pensando bem, talvez não.

poema divulgado por jm

NÃO HÁ OUTRO CAMINHO

Os poemas podem ser desolados
como uma carta devolvida,
por abrir. E podem ser o contrário
disso. A sua verdadeira consequência
raramente nos é revelada. Quando,
a meio de uma tarde inidistinta, ou então
à noite, depois dos trabalhos do dia,
a poesia acomete o pensamento, nós
ficamos de repente mais separados
das coisas, mais sozinhos com as nossas
obsessões. E não sabemos quem poderá
acolher-nos  nessa estranha, intranquila
condição. Haverá quem nos diga, no fim
de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta?
Não sabemeos. Mas escrevemos, ainda
assim. Regressamos a essa solidão
com que esperamos merecer, imagine-se,
a companhia de outra solidão. Escrevemos,
regressamos. Não há outro caminho.

 

de Longe da Aldeia, Averno, 2005

 

NÃO HÁ OUTRO CAMINHO

para o Vítor

Os poemas podem ser desolados
como uma carta devolvida,
por abrir. E podem ser o contrário
disso. A sua verdadeira consequência
raramente nos é revelada. Quando,
a meio de uma tarde indistinta, ou então
à noite, depois dos trabalhos do dia,
a poesia acomete o pensamento, nós
ficamos de repente mais separados
das coisas, mais sozinhos com as nossas
obsessões. E não sabemos quem poderá
acolher-nos nessa estranha, intranquila
condição. Haverá quem nos diga, no fim
de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta?
Não sabemos. Mas escrevemos, ainda
assim. Regressamos a essa solidão
com que esperamos merecer, imagine-se,
a companhia de outra solidão. Escrevemos,
regressamos. Não há outro caminho.

A ESCARLATINA

Não sei se te lembras
ainda. No quarto pegado
à cozinha, uma cama
sob a clarabóia. A estreita
e um tanto triste
antecâmara do Verão.

Eram coisas que não queriam
dizer nada. Lias, juvenil,
uma história onde alguém
contraía a escarlatina.

No andar de baixo
os carpinteiros, pai e filho,
guardavam um silêncio
petulante, os finos pregos
de aço bem seguros
entre os lábios.

SENHORES PASSAGEIROS

Alguns rapazes avançam mais depressa
para a morte, mas todos se debatem
com a vida que lhes resta. Às voltas
no cimento das cidades, entre
a estrangulada circulaçãos dos veículos,
segredam ao ouvido de um deus
surdo: concede-me um novo amor
igual ao dos meus irmãos. Entretanto
são mais as raparigas que não lêem livros
no venenoso relento das estações
ferroviárias, chupam rebuçados
de menta com fel, suavemente inclinam
a cabeça para ouvir: senhores passageiros
vai dar início à sua marcha o comboio
com destino a Santa Apolónia da escuridão.

RECOMEÇO

O primeiro cigarro do dia é na varanda
quando faz sol: misteriosamente o terraço
do vizinho continua a concentrar a tristeza
do bairro inteiro. Mal acordado, juntas as linhas
que te permitem perceber quem és, onde estás,
o que terás de fazer a seguir. E a angústia
que te abraça é a memória mais antiga
que possuis, vem das casas de Bragança
e Moncorvo, já a conhecias antes de lhe seres
formalmente apresentado. Tu nunca quiseste
pertencer. Só à ponta da navalha. Só no fundo
do beco, encurralado. Meu Deus, que vocação
para o desassossego. Mas será um sinal de resistência
ou uma espécie de defeito anímico? Tanto faz,
vamos, põe a cafeteira ao lume. E recomeça.

poemas divulgados pelo José Mário Silva

FORA DO LUGAR

A dor é uma desordem inimiga
das palavras com o silêncio todo fora
do lugar. Saberemos tomar um caminho
por essa floresta escura? Poderemos sequer recuperar a pequena bússola partida,
a caneta e o papel, as nossas certezas de trazer no bolso?

Não nos avisaram contra o medo,
não nos disseram que pode chegar
a qualquer hora, deslealmente,
enquanto o sol dorme na paisagem e as ervas
se levantam para receber o Verão. E agora
que quase nos perdemos, sem mapa ou sentido
que nos sirva, o nosso único guia é o amor
dos que nos esperam numa sala branca
onde o chão nos falta e não há estações.

(poema publicado na revista Periférica, Verão 2003.)

 

Chega ao fim do dia
a hora mais lenta, quando o céu
é vago e as luzes se acendem
no prédio da frente.

Vemo-los por vezes
dentro das janelas, vultos
delicados como miniaturas
ou meros reflexos que passam
nos vidros.

Alguns prosseguem encargos
de sombra, outros detêm-se
a olhar a rua, no gesto
a expressão do seu puro
enigma.

E são como provas
de coisa nenhuma. Se acaso
nos fitam, parecem dizer:
a morte não será decerto
mais estranha que a vida.

lido aqui

 

Espanta-Espíritos

Amanhã tudo será pior
ainda, eu sei: o hábito, a inércia,
o sem remédio da vida – tão pouco
haverá a salvar.

Por toda a cidade os desconhecidos
subirão outro degrau para o escuro
da noite, e a memória será talvez
um remorso:

aquela manhã de sol
na varanda, o espanta-espíritos
com peixes de alumínio num rosário
de contas profanas.

Ainda o tens? Ainda canta,
de madrugada, se o vento sopra
do mar?

Não importa. Foi sempre de menos
o muito que pedimos

e a parte que tivemos.

Estrela do entardecer

Regressa em Julho com a sua escolta
de desejo e medo – o amor, onde
sempre vivi acima das minhas posses.

Agora guardo as razões que me deste
para escrever estes versos sobre ti
e tenho a alegria de voltar a ver-te

ao fim do dia, já a cidade sossega
em todas as praças: trazes da rua na boca
o ardor de um verão lembrado

que hei-de voltar a esquecer.
A esperança que nos junta é frágil
e breve é a estrela que nos guia.

Conserve este bilhete até ao final da viagem

Devo dizer que sempre preferi
os versos feridos pela prosa
da vida, os versos turvos
que tornam mais transparentes
os negros palcos do tempo, a dor
de sermos filhos das estações
e de andarmos por aí, hora após
hora, entre tudo o que declina
e piora. Em suma, os versos
que gritam: Temos as noites
contadas. E também
os que replicam:
Valha-nos isso.

Trânsito de sentido único

Ao nascer do Sol descemos à praça
por desfastio ou engano: a noite,
que parecia eterna, termina agora
com um untragável gosto a cinza,
a quase nada.

 

de Capitais da Solidão, Teatro de Vila Real, 2006

 

A experiência, o nosso obstáculo.

Nas janelas de um autocarro
os madrugadores de cara lavada
guardam o segredo de uma sorte
que nunca pudemos seguir.
Mesmo assim, eternecem-nos:
ao fim de décadas de solidão
e desastres, ainda acreditam
no mundo. E, vendo bem,
porque não?

A alternativa não é grande coisa.

O silêncio é importante para o bem estar de todos

Na parede, sob o zodíaco chinês
a duas cores, o misterioso cortejo
dos dias: não se vê o princípio

nem o fim. Os azulejos reflectem
um movimento confuso e o cliente
do bigode grisalho, já quase bêbado

a meio da tarde, arrelia o patrão
com não sei que insucesso
do Benfica. Na toalha branca

uma nódoa de vinho, indecente
como sangue fresco num passeio
em plena rua. Há moscas presas

na vitrina e uma razão a menos
a cada instante – ainda posso
mudar a minha vida?

Descida Perigosa

Passamos um Inverno
no meu carro, é sempre
de noite. Eu tenho a rua inteira
cravada entre as costelas,
flores espezinhadas na berma
dos rins.

Pequenas dores, pequenas
casas, tudo em relevo
contra a parede da serra.
Mas nós estamos juntos
no salto e na queda:
podemos tentar
e tornar a perder.

E um dia, verás,
há-de amanhecer.

[Passagem de peões]

À vinda do supermercado
diz-me o pequeno monstro
que às vezes me faz companhia:
“E qual é a tua razão de ser?”

Na rua, a tarde rola devagar
entre prédios murchos – e ele
acrescenta: “Não me digas
que são os versos.”

E ri-se.

Escuro

Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.

Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.

big night

A noite em que nos sentámos no muro
entre os quintais. O mundo estava aninhado
sob o tecto dos teus sentidos, recuava
à posição pouco óbvia
de um jardim.

Vinhas com o tempo certo sobre
as silvas, já punhas o amor a arder
nos canteiros. Não valia a pena explicar
uma coisa tão rara.


de Música Antológica & Onze Cidades, Editorial Presença, 1997