Pedro Mexia

Pedro Mexia nasceu em 1972, em Lisboa. É formado em Direito, poeta, crítico literário e bloguista. Participou n’A Coluna Infame e no Dicionário do Diabo , fundou o  Fora do Mundo e animou o blog Estado Civil.Tem exercido a actividade de crítico literário e cronista em várias publicações da imprensa nacional.

É conselheiro cultural do Presidente de República, desde 2016. Foi subdirector e director interino da Cinemateca Portuguesa (2008-2010). Tem colaborado regularmente em projectos das Produções Fictícias (É a Cultura, Estúpido, O Eixo do Mal, O Inimigo Público, Canal Q). É um dos membros do Governo Sombra (na TSF, desde 2008, e também na TV, desde 2012).

Poeta da mais jovem geração, teve nas páginas da revista Colóquio / Letras (Abril – Dezembro de 1996) alguns dos seus primeiros poemas publicados e está incluído em algumas antologias. Coordena a colecção de poesia das Edições Tinta-da-china.

Publicou vários livros de poemas: Duplo Império (1999), Em Memória (2000), Avalanche (2001), Eliot e Outras Observações (2003), Vida Oculta (2004), Senhor Fantasma (2007) e Menos por Menos - Poemas Escolhidos (2011) e Uma Vez Que Tudo se Perdeu (2015). - Poemas Escolhidos (2018) e Verdadeira Herança (2021). 

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foto:  Arquivo Global Imagens

Poemas

Os judeus deixam sempre
um lugar a mais na mesa,
à espera. Os judeus perderam
as razões para esperar e esperam.

Os judeus sabem que há
um sentido não-escrito
das palavras. Os judeus não dizem
directamente o nome santo.

Os judeu rasgam as vestes
e tapam os espelhos. Os judeus
nunca deixam de ser judeus.
Ainda mereceremos ser judeus.

Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.

As gavetas

Não deves abrir as gavetas
fechadas: por alguma razão as trancaram,
e teres descoberto agora
a chave é um acaso que podes ignorar.
Dentro das gavetas sabes o que encontras:
mentiras. Muitas mentiras de papel,
fotografias, objectos.
Dentro das gavetas está a imperfeição
do mundo, a inalterável imperfeição,
a mágoa com que repetidamente te desiludes.
As gavetas foram sendo preenchidas
por gente tão fraca como tu
e foram fechadas por alguém mais sábio que tu.
Há um mês ou um século, não importa.

OS VASOS PARTIDOS

Este vaso partido já não tem dentro
e fora, já não contém, não limita,
não transborda. A causa deste vaso
e o seu destino confundem-se
nos estilhaços de uma história
há muito escrita. Dentro do vaso
houve génio, memória, uma geração
intemporal, mas nas suas ruínas
apenas um espírito que nos abandona.

TRÊS TEORIAS

As nuvens desenham figuras.
O céu em volta das nuvens desenha figuras.
Os olhos desenham sempre figuras no céu.

Duplo Império, Edição do Autor, 1999

 

 

 

AS FOTOGRAFIAS

As fotografias precedem a memória,
são a realidade parada de luz.
As fotografias evoluem como os olhos,
entre reformulações e malogros.
As fotografias não amarelecem, queima,
não se enchem de pó mas de granizo.
As fotografias duram mais que a memória,
mas não muito mais.

A minha altura

Era a minha altura. Um livro
em cima da cabeça marcava
o lugar que um lápis semestralmente
riscava na parede da cozinha. A única sabedoria
dos ossos, crescerem
como a teia sólida de um propósito
e a anatomia mais transparente.
Centímetro e centímetro
espigava o corpo imaginário, essa contabilidade
que era assim íntima, pictórica,
como uma cena burguesa.
 
Traço a traço a parede da cozinha
tornou-se rupestre,
a infância uma ternura assustadora.
Esta era a minha altura.
Agora sou tão mais alto e mais pequeno.

Funerais

Nos funerais encontramos a família.
Nunca fomos tão claros
como no luto
e nas memórias anedóticas
que amenizam o morto.
Que sangue é o teu
para que o meu se assemelhe?
Alguns velhos trazem flores
que já ofereceram nos casamentos
e entre eles decidem
que somos uma família,
conhecem os primos que não
conheço, lamentam a sorte
daqueles cuja sorte é conhecida,
são ainda mais graves
do que nós, e usam
diminutivos carinhosos.
O meu nome far-se-á pó
com o meu corpo, pensa
uma mulher que já é viúva,
há irmãos completamente mudos
e as crianças jogam à cabra-cega.
Seguimos em cortejo
compondo as gravatas,
o vento não percebe que morreu gente.
Dez pessoas acompanham o padre,
os outros já não se lembram
das orações,
dez pessoas pensam
no que têm pela frente,
os outros acompanham o caixão.
O coveiro mais novo
dentro de pouco tempo
enterrará o mais velho.

TODOS CONTRA TODOS

A infância é uma arena de jogos
e todos, rotativamente,
éramos adversários
as regras fixas, o propósito curto,
a disposição honesta.

Aldeia de irmãos, tínhamos do nosso lado
o far-west, partíamos canteiros
com sardinheiras e, como alquimistas,
fazíamos um ouro secreto
apenas para nosso uso.

Na adolescência,
dissemos, mudavam as tácticas
e as intenções mas não
as regras. Mas a adolescência
acabou, os jogos são formas
de vingança e agora
jogamos todos contra todos.

 

de Em Memória, Gótica, 2000

 

Se eu pudesse

se eu pudesse

ter-te em vez dos versos,

ou ter um verso 

em vez de ti,

ou ter os olhos 

como os de um gato

para prescrutar a noite

onde isso se decide.

 

Paráfrase

Este poema começa por te comparar
com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência
infeliz.
Em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.
 
A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.
 
Uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.

de Avalanche, edições Quasi, 2001

 

LEITURAS OBRIGATÓRIAS

Vê-se o castelo, vou poetando trivialidades
no caderno, à minha frente a rapariga estuda o Livro
do Desassossego,
eu estou sossegado e estudo a rapariga,
não realmente bonita mas
de íris inquisidoras e surpreendente
decerto entre quatro paredes.

Se eu fosse algum dia um poeta
seria uma obrigação curricular para os vindouros,
versos a acompanhar cigarros e namoros,
o livro com manchas de café, uma rapariga (filha desta?)
a ler o que hoje escrevi no Chiado
e alguém noutra mesa a fazer
um poema acerca disso.

AS PESSOAS FELIZES

Ao contrário das pessoas felizes
as pessoas tristes cruzam-se na rua
e no silêncio clínico do metro.
Admiramos com ternura aqueles que choram,
tememos os que riem,
E no fim do trajecto espera-nos a família.

AVÓS

Há avós que pedem, enrodilhados, no metro,
apertamos os sobretudos, criminosos felizes.

METROPOLITANOS

Aqui estamos, atravessando
sem saber o nosso destino,
à espera que o próprio caminho
o torne evidente (mas não),
somos todos assim metrpolitanos (urbanos),
saímos na estação errada,
lemos cabeçalhos, vemos o envelhecimento
nos rostos que connosco através
de túneis dantescos (cliché),
e pensamos (ou dizemos agora que pensámos)
que há um plano que nos ultrapassa (rodoviário),
um plano (subterrâneo)
de linhas que se cruzam com as linhas
da mão, interceptadas em cores
e com o guarda-roupa do nosso
tempo (capitalismo tardio),
atravessamos (atrasados), sob o sol
que imaginamos em cima (platónico),
interrompidos pelo parêntesis irónico
da consciência que talvez queira fazer
a diferença mas não faz nada (nada).

ROTINA

Este é o meu número:
telefonem-me.
Este é o sítio
onde passo as tardes:
encontrem-me.
Ou não me telefonem
nem me encontrem
mas pensem em mim
enquanto estiverem a viver.

NEO-REALISMO

Fotografias de baptizados, férias
de verão, a quem interessa tal,
presentes, missangas, uma ruga
a mais, projectos para mais
tarde, uma tareia infantil,
cremes, pensamento positivo, a quase
queca de ontem à noite. Isto
as empregadas de balcão, entre
um e outro e outro pedido
de clientes esfomeados e estúpidos.

 

“DÊ SANGUE”

Dê sangue,
mas não necessariamente
o seu,
dê por exemplo o sangue
sacrificado em vão,
o sangue do tédio,
o snague
que faz falta,
dê o sangue dos corpos
que se dão
porque alguém pede.

LOJA DO CIDADÃO

Em fila, quase divertidos, os cidadãos
limpam os polegares negros com lenços
de papel e suspeitam que o homem
da medição lhes roubou uns centímetros.
Revêem as fotografias pequenas
que sobraram e comparam-nas
com o cartão caduco. Alguns planeiam
perguntar ao empregado calvo
do guichet metafísico: com o bilhete
podemos renovar também a identidade?

ALEXANDRIA

Lisboa não é Alexandria mas
Alexandria não passa de uma metrópole
em versos subida e sublimada, a sua geometria,
as incisões do pequeno desespero.
Dêem-me uma cidade, que esta minha
está cansada e não quero outra,
escadarias em que se desce sempre,
velhas varandas apalaçadas,
dêem-me uma Alexandria do pensamento,
com uma antiguidade a dourar cada hora,
cada entardecer, mas uma antiguidade
falsa, hiperbólica,
subtil de tão imaginada, unreal city.
Lisboa não é Alexandria e está cansada, houve sítios
que conheci, outros ocultos,
percursos que adivinho no avanço
das multidões, dias de festa,
lambris de janelas, amuradas.
Não quero este rio, nem o outro,
heraclitiano, que me oferecem
umas breves obras completas na estante.
Dêem-me uma cidade terrestre, sem posteridade
ou idioma, uma cidade para que eu possa
inaugurar o passado das ruas
e, sem outro propósito, respirar.

de Eliot e Outras Observações, Gótica, 2003

AMÁVEL PÚBLICO

O prestidigitador (vocábulo
cesarínico e difícil) era espectacular
demais para o espectáculo,
saíam-lhe flores da vara

e pedia ao “amável público”
um voluntário à força
para o fazer, mágico que era,
evaporar-se numa caixa

e toda a infância me parece
essas toscas bancadas de circo
nas quais eu olhava para o chão
com medo de um foco de luz.

FUMAR MATA

Fumar mata. Com cinco inconclusos cigarros
morrerei decerto doutro motivo.
Cigarros escondidos, obrigatórios, demonstrativos, sexuais,
cigarros ocultos atrás de livros, fumados
na casa de banho que o vento depois não drenava,
cigarros amargos e engastados na garganta,
comprados, deitados fora,
cigarros infrutíferos como esses anos em tudo o mais,
nem rodapé biográfico mas erupção sociológica.
Fumar mata. De não fumar nada direi.

SALA DE ESPERA

Cinquentonas adiposas
homens de bigode problemático
duas angustiadas estéreis
outras duas parideiras
velhos parados na sua velhice
funcionários tão públicos
uma adolescente esburacada
a mãe catastrófica
o jovem lamentável casal
uma miúda que só olha
um avô despedaçado,
todos na mesma fila que eu
para os comprimidos.

CORVO

Todas as idades têm um corvo.

Este é o corvo dos meus vinte anos.
Dá-me, corvo, a luz extinta que sobrevoas,
o entendimento obscuro, a verdade imprevista,
dá-me o corvo camuflado,
a memória entrecortada de luzes contrárias.

Asa de corvo, janela de corvo, memória de corvo.

de Vida oculta, Relógio D’Água, 2004

 

EM LONGO SE TRANSFORMA

Em longo se transforma o breve engano,
e o discurso em vento,
e o desejo em medo.
E a esperança
em memória, e o pensamento
em bússola cega
para o mundo.
E em vidro o espelho apaga,
gasto de mágoas e mudanças,
o claro rosto do futuro.

DEPOIS DE TI

Depois de ti
o dilúvio: esgotaram-se as imagens
e não posso mudar o que diziam:
há um esvaziamento, uma degradação,
que em pouco tempo tornam
o real absoluto no real possível:
e nunca mais hei-de sentir o mundo
tão alto como os versos e não o contrário,
e nunca mais poderei dizer a ninguém:
os teus olhos são tão belos como os teus olhos.

 

de Poemas escolhidos, ed Tinta da Chuna , 2018

Um contentamento tão contente.

Uma acção que não aconteceu

e descrevemos concluída.

Uma anterioridade de um tempo futurível

ou de um modo imperativo.

Um facto trerminado e garantido

como acreditácamos.

Também exprime, segundo a gramátca,

um caso hipotético.

 

de uma vez que tudo se perdeu, tinta da china, 2015

 

Invisíves Sombras

Invisíveis sombras entre nós

a casa  as coisas.

Invisíveis como a nossa

visível obstinaçao.

Um pouco de luz nos faz pender

para um dos lados.

Uma luz que não sabemos.

 

Uma luz que invisíveis sombras

lança

entre nós a casa as coisas

e nos faz pender para um lado

um dos lados

o lado que não sabemos

dessa luz que nos conhece.

 

A noite

A noite como bonecas russas:

dentro da noite noite,

e abrindo a noite noite,

outra vez noite,

repetidamente noite depois da noite

a seguir à noite

 

Vamos morrer

Vamos morrrer nas somos sensatos,

e à noite, debaixo da cama,

deixamos, simétricos e exactos,

o medo e os sapatos

 

em Senhor Fantasma, Oceanos, 2007