Nicolau Saião

Nicolau Saião é o pseudónimo de Francisco Ludovino Cleto Garção, nasceu em Monforte do Alentejo no ano de 1946 e reside em Portalegre. Exerceu as profissões de meteorologista, jornalista e escriturário. Actualmente é o funcionário responsável do Centro de Estudos “José Régio” de Portalegre.

È poeta, tradutor, pintor, publicista e actor/declamador. Tem colaborado com jornais e revistas. Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens” (Rádio Portalegre), um dos programas mais ouvidos das rádios regionais.

Como pintor participou em mostras de Arte Postal em diversos países (Espanha, França, Itália, Polónia, Canadá, Estados Unidos, Austrália, Mali, etc.), além de ter exposto individual e colectivamente em diversas localidades. Organizou, com Mário Cesariny e Carlos Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”.

Publicou, entre outros: Os objectos inquietantes (Editorial Caminho); Flauta de Pan (Ed.Colibri); Os olhares perdidos (Universitária Editora). Está representado em diversas antologias. Colabora nos blogs Tempo Dual e Quartzo Feldspato e Mica.

 

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Poemas

Primeiro, ficar parado
durante um momento, de pé
ou sentado, numa sala ou mesmo
noutra dependência do lar.
Depois preparar
os olhos, as mãos, a memória
e outros utensílios indispensáveis. A seguir
começar a reunir
coisas, por ordem bem do interior
do coração e do pensamento:
a ternura dos avós, uma mancheia;
rostos de primos distantes, uma pitada;
sons de sinos ao longe, quanto baste;
a recordação duma rua, uns bocadinhos
um velho livro de quadradinhos
duas angústias mais tardias, alguns restos de azevias,
a lembrança de vizinhos   ainda vivos mas ausentes
e de uns já passados.
Quatro beijos de seres amados ou de parentes
um cachecol de boa lã  cinzenta aos quadrados
e um pouco de azeite puro e fresco
igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.
Mexe-se bem, leva-se ao forno
e fica pronto e saboroso
– mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima

 

lido aqui

As coisas multiplicam-se
muito mais que as pessoas. Só elas
possuem o segredo de tranquilamente jazer
entre as ervas, as águas, as ruínas
ausentes e presentes. A sua pele
é mais fina que a casca dos minutos
e contudo, sob o lume e o vento
sob a terra em que os passos já não soam
ou no deserto violento das palavras
as coisas repousam
ou, subitamente iluminadas
gritam e falam-nos com movimentos graves
adejando como estranhos pássaros nocturnos
ou como trémulos animais interditos.
As coisas
sofrem
elas sofrem como se existissem noutra esfera
próxima de nós
como uma Lua oculta, como um peixe fantasma
como uma flor solitária numa casa abandonada
como um gato que no sono se agita pleno de medo
As coisas
minúsculas, gigantescas, iguaizinhas a nós
ensanguentadas pelo nosso terror e a nossa cólera
sob as nossas mãos
entre os nossos cabelos
repousando junto a nós quando dormimos
calmas como o ruído dum comboio numa cidade matutina
As coisas
respirando devagarinho nas nossas memórias
andando junto às nossas recordações como se fossem
um elefante, um rato, um cão fiel
feitas de barro, as coisas
de madeira ou de cera, de vidro ou de cimento
feitas de cristal e de platina, de celulóide
do fresco celofane, de aço e de papel
pobres coisas num rés-do-chão amontoadas
esquecidas como um trapo manchado
livres e belas
nosso testamento, papiro para milénios a vir
As coisas
sempre atentas, sempre dormindo esperando o despertar
o silencio luminoso
As coisas
nossas irmãs de mundo, nossas filhas, nosso sinal perfeito
neste universo que é o nosso resumido encontro
com a sua
eternidade acontecida.

lido aqui

Pode fazer-se um poema com restos de poemas
e nem sequer só nossos. Basta saber escolher, tal como
uma dona de casa catando coisas frugais
numa perdida loja de subúrbio. (No entanto
o problema é: como conciliar os invisíveis
ou visíveis rastos de luz que as palavras
fazem rodar entre a noite e a manhã
das letras).Ou, melhor ainda
entre mil silhuetas de páginas desconhecidas
de esquecimentos
de risos ou
de decisivos desprezos.
O como, o talvez, os advérbios de lugar
ora dormem ora despertam. Podemos dispô-los
como flores silvestres
como pedras fibrosas ou tijolos
ao longo dum muro de quinta
no interior real dum jardim
ou como pedras tumulares
essenciais e descontínuos. Podemos trocar
a memória dum substantivo, de uma mancha de sangue, de uma
bastonada na cara ou de um suspiro. Podemos tirar
duma frase engolida o duro perfil duma alegria, ou mesmo
um verbo definitivo para um contentamento
um tempo a morrer
estático ou já liberto. Ouçam
o canto da noite: nesse silencio, pé ante pé
há ruídos e gestos, uma que outra amargura, a matéria sensível
que os poemas abandonaram. Ouçam o canto
da noite: cidades ao amanhecer, os sons inúmeros, nítidos, a substância
de um vulto ao crepúsculo. (A grande chuva, o grande sol
que nada mais são que recordações
trazidas por alguém
numa folha rasgada, num fragmento de minutos). Ouçam
o canto da noite
e saibam depois esquecer.
Todo o livro é um simulacro. Algo que se perdeu. Mas todo o livro existe
na sua atmosfera de fechada revelação
de velada inexistência
de apenas sopro ou vestígio
de móvel ou imóvel figura destroçada. Sim, pode fazer-se
não um mas muitos poemas sobre o como e o porquê
ou sobre o nada que eles, afinal, revelam
ou sobre o muito que eles, afinal, são
ou sobre o muito e o nada que lhes reside em volta
enquanto os anos perdem a nitidez
e as fronteiras perdem o sul e o norte
a sua altíssima impresença o seu finíssimo vazio
a sua transparência abominável
e sagrada
de desabafo
ou sortilégio. Sim, ouçam o canto da noite
a tal coisa que engrena
e se põe a correr
e se põe a parar
e cria em volta como que o esvoaçar de um planeta
com barulhos, com súbitas cores, com mágoas e magias. Sim,
ouçam o canto
da noite.
Ou até, talvez
o começar do dia
as palavras uma a uma no seu sereno balbuciar
quando as páginas são apenas ardilosas reminiscências
num papel amarfanhado
e a nossa voz é um reflexo num conjuntivo ou numa vírgula.

 

lido aqui