Natércia Freire

Natércia Freire nasceu em 1919 em Benavente, no Ribatejo. Editou o seu primeiro livro de poesia, Castelos de Sonho, em 1935, seguido de O Meu Caminho de Luz. Estudou música mas dedicou-se à poesia  e ao jornalismo cultural. Foi Coordenadora da Página de "Artes e Letras" do "Diário de Notícias" desde 1954 até 1974.

Foi membro da Comissão de Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. A partir de 1974 retirou-se da vida literária nacional, marcando porém discreta presença em alguns artigos de opinião no ’"O Tempo" e n’ "O Século", e publicando poesia em várias revistas e jornais.

Poesia publicada: Castelos de sonho (1935) Meu caminho de luz (1939) - Estátua(1941) Horizonte fechado (1942) - Rio infindável (1947) Anel de sete pedras (1952) - Poemas? (1957)Liberta em pedra (1964)Os intrusos(1971) - Liberdade solar (1978)

Desde 1980 exerceu, por várias vezes, o papel de Júri do Prémio Literário da Fundação Oriente. Em 1991 e 1995 editou a sua obra poética completa sob a chancela da Imprensa Nacional/ Casa da Moeda. Morreu no dia 17 de Dezembro de 2004.

 

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foto:  Leonardo Negrão 

Poemas

NÃO

Não formar nenhuma ideia
do que somos ou seremos
mas entre as vozes que fogem
precisar o que dizemos.
Dormir sonos ante-céus
abismos que são infernos.
Dormir em paz. Dormir paz,
enfim a nota segura.
Lembrar pessoas e dias
que penetram no espaço
de eventos primaveris.
E dar as mãos aos espectros
beijá-los lendas, perfis.
Amar a sombra, a penumbra
correr janelas e véus.
Saber que nada é verdade.
Dizer amor ao deserto
abraçar quem nos ignora
dormir com quem não nos vê
mas precisar do calor
de quem nunca nos encontra.

 

de Antologia Poética, Assírio & Alvim

 

Forte. Sou pó e estou forte!
Leva-me o vento e regresso.
subo na cruz e estremeço
desde o sul até ao norte.

Quem poderá reunir
o meu nada repartido?
Que vestido há-de vestir,
quem não precisa de vestido?

Corpo!? Que corpo hei-de querer?
Delgado, fino, alongado?
Corpo feito para jazer
ou para andar embarcado?

Ao corpo de ser mulher
está-me o corpo habituado.

Limite que se desenhe
é muro de alta prisão.
O pó que sou, me constrói.
O corpo que sou, me dói.
Dispersa é que sou herói
no campo da dispersão.
Sobre ele, cresçam os planos.
Tombem luzes. Pule o vento.

Cantem na treva os pianos.

Cantem flores, no movimento
da noite para a manhã
por sobre o leito dos mortos.

Para a glória de ser pó
é que os mistérios são portos.

 

de Vento, Sombra de Vozes / Viento Sombra de Voces- Antologia de Poesia Ibérica;

Ed. CELYA, Salamanca, 2004

Um dia

Um dia partirei muito cansada
Com as lembranças cingidas ao meu peito
E uma voz de saudade e de nortada.

(Levarei voz para gemer de espanto.
Levarei mãos para dizer adeus...
Olhos de espelho, e não olhos de pranto,
Eu levarei. Os olhos, serão meus?)

Um dia partirei, talvez manhã.
Uma canção de amor virá das dunas.
De finas pernas, seguirei a margem
Límpida, boa, enorme, no ribeiro
De água discreta a reflectir miragem,
Braços de ramos, gestos de salgueiro.

Um dia partirei, muito diferente.
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de Cá hão-de achar que vou contente.

 

de Antologia Poética, Assírio & Alvim

 

Liberta em pedra

Livre, liberta em pedra.
Até onde couber
tudo o que é dor maior,
por dentro da harmonia jancente,
aguda, fria, atroz,
de cada dia.

Não importam feições,
curvas de seio e ancas,
pés erectos à luz
e brancas, brancas, brancas,
as mãos.

Importa a liberdade
de não ceder à vida
um segundo sequer.

Ser de pedra por fora
e só por dentro ser.
    - Falavas? Não ouvi.
    - Beijavas? Não senti.
Morreram? Ah, Morri, morri, morri!
Livre, liberta em pedra,
voltada para a luz
e para o mar azul
e para o mar revolto…
E fugir pela noite,
sem corpo, sem dinheiro,
para ler os meus santos,
e os meus aventureiros,
(para ser dos meus santos,
dos meus aventureiros),
filósofos e nautas,
de tantos nevoeiros.

Entre o peso das salas,
da música concreta,
de espantalhos de deuses,
que fará o Poeta?

 

de Liberta em Pedra, 1964

É preciso soltar o ritmo que me prende.
Esta amarra de ferro à palavra e ao som.
Emudecer, no espaço, o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.
Não saber se uma flor é mesmo uma criança.
Se um muro de jardim é proa de navio.
Se o monumento fala, se o monumento dança.
Se esta menina cega é uma estátua de frio.
Um pássaro que voa pode ser um perfume.
Uma vela no rio, um lenço no meu rosto.
Na tarde de Fevereiro estar um dia de Outubro.
Nos meus olhos de morta uma noite de Agosto.
É preciso soltar o ritmo das marés,
Das estações, do Amor, dos signos e das águas,
Os duendes das plantas, os génios dos rochedos
Nos cabelos do Vento, as tranças de arvoredos.
Desordenai-me, luz! Que nada mais dependa
Das águas, das marés, dos signos e do Amor.
É preciso calar o arco e a corrente
E ser nesta varanda um pouco só de cor.

 

encontrado aqui

Desciam da cruz
Como aves de negro.
As asas abertas
Batiam soturnas
Na cinza de névoa
Das sombras nocturnas
E ousavam mistérios
De deuses secretos.

Mulheres ou bonecas.
Crianças ou velhas.
No barro das telhas
A chuva caía.
Caíam as folhas
Doiradas e secas.
Mulheres ou bonecas
Desciam da cruz
Na noite vazia.

Repetem-se os gritos
Represos mil anos.
Ecoam suspiros.
Ninguém sabe o rosto
Aos deuses tiranos:
Formigas, bonecas
De vozes tão roucas
Correndo, sofrendo,
Voando, voando.

Baloiçam-se negras
De véus e de Dores.
Nas asas de aviões
Que cortam as cores
Pregadas na cruz
- Infâncias que foram
De fadas e flores.

 

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