Maria Azenha

Maria Azenha, nasceu em Coimbra em 29 de Dezembro de 1945. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra. Exerceu funções docentes nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa e em escolas secundárias. Actualmente é professora de Matemática na Escola de Ensino Artístico António Arroio em Lisboa. 
Está representada em diversas antologias.

Publicou, entre outros: Folha Móvel (Átrio, 1987); Pátria d'Água (Átrio 1991); A Lição do Vento (Átrio, 1992); O Último Rei de Portugal (Fundação Lusíada, 1992); Concerto Para o Fim do Futuro (sob o pseudónimo de Alexandra Kräft, Ed.Hugin,1999); O Coração dos Relógios (Pergaminho, 1999); P.I.M. (Poemas de Intervenção e Manicómio) (Universitária Editora, 2000); Poemas ilustrativos de pintura de Valdemar Ribeiro (Symbolos, 2001); Nossa Senhora de Burka (Alma Azul, 2002).A Chuva nos Espelhos(Alma azul, 2008), de amor ardem os bosques (mineva, 2010), A Sombra da Romã, Editora Apenas Livros(2011), Num Sapato de Dante, Escrituras Editora, São Paulo, Brasil (2012), A Casa de Ler no Escuro, Editora Urutau, São Paulo BR (2016), As Mãos no Fogo, Escritura Editora, São Paulo(2017), De Amor Ardem os Bosques - (Edição revista) -Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro (2018), A Mamã por Cima dos Telhados e o meu Amor, Editora Urutau, São Paulo BR, Galiza ESP e Portugal (2019), Bosque Branco, Editiran Urutau, São Paulo BR, Galiza ESP e Portugal (2020), A Loucura das Facas, Editora Urutau, São Paulo BR, Galiza ESP e Portugal (2021)

Maria Azenha também pinta e publica  poemas on-line 

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Poemas

NAVEGAÇÂO

navegar o silêncio a memória
navegar as estrelas o odor do espaço
o seu sangue coagulado em planícies de vento
por jardins alinhados de poeira e ar
navegar os destroços
as palavras e os barcos
navegar por sinais intemporais
ou por silêncios se espectros
terraços
templos imersos
em conversas de aéreos vitrais

navegar os astros em cânticos desertos
em grandes transtlânticos do espaço
entrevistando luzes terrestres
navegar alucinadamente
vocábulos e tendões
por inúmeros portais invisíveis
electrões

navegar na cápsula do tempo muito lentamente
galáxias ritmos e ritos
navegar o vento
navegar inesperadamente
a astrofísica da vida
navegar secretamente contra o escuro
contra a luz apodrecida
uma esfera de silêncio
navegar contra os átomos ausentes

GEOGRAFIA CELESTE

luzes
luzes através das palavras no lençol das imagens
e trazes nas veias uma pomba metálica
que bate em metáforas num dicionário de tule escrevo
então o teu nome às golfadas
sob o peso da casa sob os dígitos da chuva
escrevo o teu nome sob os dígitos da casa
em coordenadas celestes num relâmpago azul

de Concerto Para o Fim do Futuro, Ed. Hugin, 1999
Alexandra Kräft
heterónimo de Maria Azenha

(A lágrima súbita)

agora mesmo
és
um cisne.

os teus lagos são jardins do Nada

há pássaros infinitos à revelia e
cultivas laranjas em varandas
de fogo 

secretos vasos

desço então pelas tuas asas
de lágrimas:
de 
neve
e
ouro

depois nada mais faço

que as lágrimas levantem voo
da tua  

infinita

face

 

 

lido aqui

Nossa Senhora de Burka

vi nossa senhora bater-me à porta
apanhou-me de surpresa
julguei que era a porteira àquela hora da manhã
eu estava de robe e de chinelos chineses
a escrever versos que me doem tanto
já pensei até deitá-los fora atirá-los todos para o mar
vê-los navegar fazer deles caravelas como antigamente
iam por aí sabe-se lá aportar onde
mas àquela hora quem me apareceu
foi nossa senhora de burka
fiquei espantada que havia de dizer
perguntei-lhe se queria entrar delicadamente
eu estava a escrever versos para fora da gaveta
com palavras bravas e escandalosas
ela disse que sim que vinha para ficar
andava à procura do filho que perdera
há mais de dois mil anos
posso muito bem compreender a dor humana
sei o que isso é
não tenho é paciência para trocar sorrisos
o que também era indiferente

fiquei muito perturbada deixei-a entrar
arranjei-lhe um chá quente de cidreira
para a acalmar sentei-a no sofá da sala
pedi-lhe para nunca mais falarmos disso
ela acenou com a cabeça e nunca mais
trocámos uma palavra vi-a beber água
desapareceu para meu espanto do aposento
hoje não sei se ela era realmente
a nossa senhora de burka
se eu e ela não somos a mesma
sei que nunca mais tirámos a máscara
nunca mais fui dar aulas
fiquei ali sentada
continuei a escrever versos a noite inteira
para fora da gaveta

hoje chamam-me mary
e foi-me preciso matar

Este é um tempo de terror

este é um tempo de terror
um tempo de máscaras
um tempo de príncipes sem coroa

os navios partiram
nunca mais regressaram

hoje
ao som de guerras
os homens
alimentam-se do deserto

de que valeram
todas estas gerações angélicas
para a construção da alma?

vivemos sem dúvida
um tempo de horror
um tempo de máscaras

A Terra

um lugar desformatado,
feio
esférico,
sem pessoas,
nem jardins para o Amor

de Nossa Senhora de Burka, ed. Alma Azul,2002

entre páginas de vento e sol

escrevo a minha vida
entre páginas de vento e sol.
alguns pássaros.
algumas alegrias.

algumas árvores
para lembrar o céu.

ou tão só
alguns breves intervalos
para escrever na Terra
os dias.

auto retrato

o meu caminho é um barco sem memória.
o meu destino é o que o vento quer.
há um rumor de velas
que o próprio mar devora.
o meu caminho é onde o mar estiver.

de A lição do vento, ed. átrio,1992

não há mais regresso este Verão
um bosque a prumo
algumas abelhas navegando
pelas sílabas do lume

é a música da tarde que vem
des
cen
do

pela mão do escuro

talvez para brilhar nos ramos
ou
para
saltar o muro

ou ainda

para iluminar o caminho
e florir
no chão.

de Pátria d'água, ed. átrio, 1991

enigma

que a lua me dê a força desta Chave,
que minha vida seja a pupila eterna
que se abre ao mar salgado,
que meus dedos mergulhados em ar raro
abram portas de absinto,
esfinges,

secretas aves.

é meia noite.
as galáxias dormem.
as orquídeas também.

do lado esquerdo
sobe o som dum ramo coroado.

quem vem?
não sei.

perdi a chave.

de mim
restará ninguém.

quase névoa

inclino-me
à luz
que trago das aves

desde
o
céu que vêm comigo

a manhã inicia-me em seu voo
um antigo voo
nele mil vezes morri
mil vezes sem uma palavra na boca
sem uma estrela para iluminar o rosto
ou uma pedra para inclinar o ouvido
e sentir o sangue quente
da amada terra

apenas
o vazio quebrado em seus múltiplos espelhos
em sons quase imperceptíveis
quase alados
quase névoa

só perfume e feridas

andei toda a noite em viagem toda a noite

não encontrei senão o vestido branco
da minha sombra

UM
 
assim de frente
ao espelho

eu tu
ut ue

por dentro

ous
sou

na vida an adiv na morte an etrom

de frente
sem
tempo

tu ut
ue

Um
 

 

nem sempre as palavras chegam

encosto o ouvido
às páginas do livro que nunca escreveste
e sei que és um búzio
ao
anoitecer

mando-te mil recados pelas lâminas do vento
da tua boca brota uma fonte
digo amo-te e às vezes a memória
é onde os pássaros não voam

nem sempre as palavras chegam
para levar as estrelas aos teus olhos

nem eu sei dizer o teu nome

há fotografias como punhais

há fotografias como punhais
e poemas também

todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os escrever em pedaços de argila

neles estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos
e o meu pai e a minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto

e também a rapariga feia e bela
e desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel

talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca foi escrito deste modo
e que foi acontecido durante a guerra sino-japonesa

quase ninguém esteve lá mas eu estive
trouxe-o comigo
é exactamente por isso que os meus poemas
escritos em verso já foram todos escritos
são como chagas alastrando e crescendo
em cristais do fogo

e o recinto do seu destino

está entre a terra e as estrelas

sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel

le bateau terroriste

nunca entrou um barco pela manhã
no teu quarto? os meus dedos cravaram-se
na branca página do ar e tu porventura
não sabes que deles sobrou uma âncora

talvez a encontres sob a forma de lâmina
ou de faca junto à raíz do coração do mar

acolhe-te aqui agora digo bem alto
deixa-me adivinhar a cor do sol na tua boca
nunca nevou tanto lá fora

as palavras doem como o perfume
ensanguentado

dos comboios em Londres

o coração gasta-se

foram escritos a sangue os poemas
que hoje escrevi com o teu nome
todos pintados com as minhas mãos no tear
das ruas/ áridas em vozes/à beira do rio passava
o álbum fresco das folhas mortas
do meu coração/perdidas há tanto tempo/
como os bilhetes que te escrevo sem resposta/

pouco haverá já que me prenda/pouco/

encontrei hoje um cego
que parecias tu nos olhos

poema sem palavras

não tenho palavras
estou tão perto do silêncio
aqui
não há voz falada
nem palavra onde
me sente

sou um segredo vivo
ao espelho
escrito muito antes de o escrever

uma pequena luz semeada ao vento
para enviar sinais para o outro
mundo

nada mais
tão natural é eu ter adormecido

olha
as estrelas acenderam-se

e eu respondo talvez

palavras ardentes

primeiro momento

as palavras podem entrar para me visitar
podem ler-me
podem até espreitar-me
com elas posso até fazer um teorema para a opus day
cozinhar até pensar que os pobres são muito ricos
com arquivos e tudo e ficheiros

segundo momento

nunca conheci o senhor Cauchy
nem pessoalmente
nem por correio electrónico
posso até dizer que odeio os grandes espaços com muita gente
porque ficam muito pequenos

terceiro momento

tenho uma chave escondida na palavra gaveta
gosto muito de chaves
gosto ainda mais de gavetas
decidi-me então fazer uma colecção de selos

quarto momento

não quero mesmo saber nada nem quem é o senhor Cauchy
basta-me ter encontrado na praça de londres
o senhor Carrilho que foi ministro de óculos escuros
com uma palavra escondida no sobretudo

quinto momento

é tudo assim a palavra escondida que disse e
que era uma chave na palavra gaveta
não é nehuma gaveta nem nenhuma chave
nem nenhuma palavra perdida

sexto momento

sou mais sensível ao número pi do que às palavras
escondidas em gavetas como por exemplo
o oceano pacífico que é também um programa
que muitas vezes ouço
tudo isto parece muito confuso mas não é bem assim

sétimo momento

hoje expliquei aos meus alunos o teorema de bolzano
àcerca de funções contínuas e do quotidiano
escrevi
toda a função contínua num intervalo fechado
tem aí um máximo ou um mínimo
e fui feliz

último momento

então isto não é mesmo um país?

estranho fogo

(poema inspirado neste sítio da saudade)

vou escrevendo em cima dos andaimes da luz
a tua voz entrou pelas janelas das grandes cidades
aí o tempo ofuscou a memória das casas
e a cor natural dos campos verdes

já não há sinos nem pássaros nas árvores
para anunciar o meio-dia do vento
nem o silêncio tranquilo da tarde para adormecer
nos espelhos do adro

só as pequenas sílabas das abelhas escondidas nas colmeias
vêm em viagem pelo transitório sangue das calçadas
no ventre das pedras ouço o meu nome o teu nome

o estranho fogo de que o amor é feito

despeço-me de mim

despeço-me de mim

a página
é o caminho de regresso a casa


escrevo o meu último poema
no bosque
branco
da
neve

com diamantes nos olhos

nele pousou um cisne
uma romã viva
um lençol negro

no céu
as

nuvens

foram escritos a sangue os poemas
que hoje escrevi com o teu nome
todos pintados com as minhas mãos no tear
das ruas/áridas em vozes/à beira do rio passava
o álbum fresco das folhas mortas
do meu coração/perdidas há tanto tempo/
como os bilhetes que te escrevo sem resposta/

pouco haverá já que me prenda/pouco/

encontrei hoje um cego
que parecias tu nos olhos

 


 

 

 

 

 

pelo esplendor do mar
o olhar parece descansar livre de palavras
apenas paisagem um rumor
e mais nada

parece uma muralha líquida
ali
deitada
na horizontal

esta casa azul de sal

ou talvez uma faca de espuma engastada
que se adivinha
ferida por doces pedras e palavras
para libertar o âmago do sol


meu coração de musgo e prata
ali fixado e exacto
como um coral

se dobrares neste instante
o lugar das palavras lá me encontrarás
conheço o nome de onde vens porque
este é o caminho dos labirintos

escrevo entre os joelhos o desencanto
das metáforas e sei que morreste
entre uma pergunta e o in-verso caminho

trago os olhos límpidos de orvalho de tanto
oscilar o coração no cais
por vezes toma a forma dos barcos ausentes
e o meu corpo é um lugar de redes

conheço as portas dos teus cabelos
e a certeza de que vou ardendo

dizem que a noite é um bosque azul
e é lá que se ouve a respiração dos mortos
às vezes os seus nomes gritam tanto tanto
que rebentam poemas para dentro dos poços

então começo a desenhar os seus nomes
nomes que seguram os degraus da solidão
nomes onde as cidades dançam descalças sangram
vertendo o alfabeto numa página em chamas

chove tanto tanto dentro do poema
deus chora nos meus ombros
a dor do universo
(disse-o Panero)

saberás que escrevo agora o que é a dor do homem
com um chapéu de chuva em cada mão

poema recebido nas sombras errantes

quando acordei já não estava
ao colo de minha mãe.
tinham fechado as janelas da casa.
as portas eram agora grandes muralhas.
e eu sentada sobre uma pedra
fiquei para sempre do lado de fora.
muito alto muito alto o tecto
traça o gesto que destrói
as estrelas de há milénios.

há um punhal cravado no jardim da sala
onde minha mãe me pegava ao colo.

para não ouvir os gritos das gotas de água
que caiem ainda hoje das torneiras
desço os degraus da chuva
não páro de descer
e num ritual muito antigo e sábio
acendo uma vela

espero a solidão de deus no incenso a arder...

os meus dias são cercados por harpas
é dessas cordas que o meu coração fala
calculo o ritmo
exacto
para o dividir com os amigos

soubesse eu atravessar o branco
para não adormecer nos muros

sigo a herança dos cisnes

pousada está a palavra na fonte
para
o silêncio mais puro

Olhou o pão na mesa e deixou cair
as mãos como sementes
para que tudo crescesse a partir
do chão

olhou o mar

e viu as lágrimas
das trevas
iluminadas pelo céu

depois sentiu que se fechasse os olhos
por um pequeno instante
tudo voltaria ao caos

as mães têm as mãos grandes

 

PRIMEIRA FOLHA

VI

Não tem importância nenhuma escrever um poema
a não ser a possibilidade de o não ter escrito

abrigo-me entre árvores prestes a parir gritos em flor
na materna ciência do silêncio
onde só o amor flutua

IX

Um ramo de acácias
a terra perfumada:

o Alcorão dos bosques

SEGUNDA FOLHA

VII

A árvore

nua

de peito amplo

retira da sombra da noite
a ciência do manto

TERCEIRA FOLHA

II

Desde que aluz se fez artificial ficámos orfãos
juntaram-se nas cidades os solitários
para pôr em comum a solidão
-fumadores de papel, como diria Pavese-
puxados pela corda negra da fome.
há livros de olhos postos no corpo. vêem-se de noite.
de vez em quando gritam. e nascem folhas que
uma vez abertas não se conseguem mais fechar

V

Estou na página, neste falso regaço materno
neste assombro de navegar e dar a volta ao mundo
da maneira mais estranha

as crianças vêm aconchegar-se aqui
quase sempre tristes,

esmagam a luz nos olhos
de tanto sonho e escuridão

só quero sentir esta luz.esta luz que amei
e perdi

QUARTA FOLHA

IV

Canto a luz,
o silêncio triunfante da mão esquerda dos bosques,
os abetos e as pedras as núpcias da manhã
as suas alongadas sombras surpreendidas pelo piano das fontes
- cantante coração de águas exiladas.

e levantam-se do chão. cobrem-se com uma gota de orvalho celeste
o solo absorve o seu rasto luminoso sob a cortina das trevas
há gnomos e magos plantados em carruagens de turmalinas
afogam a espessura das palavras no grito de um peixe cego
- vocábulos cerzidos no alvor das chuvas.

QUINTA FOLHA

VII

A primavera abre mil flores num sopro

livre
na flecha e no arco
escolhe o domínio das cores.

de um espelho a outro
multiplica o jogo.

Auto-retrato

O meu caminho é um barco sem memória.
O meu destino é o que o vento quer.
Há um rumor de velas
que o próprio mar devora.
O meu caminho é onde o mar estiver.

As mãos

olhou o pão na mesa e deixou cair
as mãos como sementes
para que tudo crescesse a partir
do chão

olhou o mar

e viu as lágrimas
das trevas
iluminadas pelo firmamento

depois sentiu que se fechasse os olhos
por um pequeno instante
tudo voltaria ao caos

as mães têm as mãos grandes

Hoje falaram-me de amor

hoje falaram-me de amor
gritaram-me aos ouvidos a palavra amor
disseram-me que o amor é amor e
as pessoas choram em casa fechadas
na televisão que trazem dentro do peito

com a palavra amor fazem-se grandes coisas
não sei se já ouviram
mas hoje falaram-me de amor

as folhas descidas em maio chovem nos passeios
podem ser gravadas numa caixa de lágrimas
lembram gotas da chuva que caiem em cima dos pobres
porque há amor e pobres para amar na palavra amor

habito desde sempre um lugar de pedras
dou-me conta que a palavra amor
deve custar muito dinheiro

Quase tudo foi escrito

quase tudo foi escrito é certo
grandes homens o fizeram muito antes
e da melhor maneira
mesmo assim surpreende-me o milagre da luz nos dedos
na escrita contínua da areia
precipitando mares impossíveis
e asteróides em chama

pela imprevisibilidade
acho ser possível acrescentar ou suprimir uma vírgula
ao lugar vazio do texto
ou retirar talvez algum ponto de interrogaçao ao deserto
onde navegamos em frágeis barcos de sombra

é ainda razoável
cantarmos a solidão juntos

e todavia tudo isto
não deve durar mais do que um instante

Há fotografias como punhais

há fotografias como punhais. e poemas também.

todos os poemas que escreverei já foram escritos
dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila

neles todos estão impressos a chuva e o vento
e as folhas noviças dos séculos e
meu pai e minha mãe que já partiram
esvoaçando num passado remoto.

e também a rapariga feia e bela desfigurada pela varíola
que nunca fora amada porque não era bela
e que numa noite na taberna de Vladivostoque
se ofereceu derradeiramente a Joseph Kessel

talvez pouca gente saiba deste verso
que nunca terá sido dito deste modo
e foi acontecido durante a guerra sino-japonesa

quase ninguém esteve lá para o ver
mas eu estive. trouxe -o comigo.
é exactamente por esta razão que os meus poemas
já foram todos escritos.


são como chagas alastrando e crescendo em searas de fogo
entre a terra e as estrelas.

sei apesar de tudo porque li Juan Gelman
que cada lágrima é um problema insolúvel

Abril dói

quando abril chega e nunca mais vem
por traição por silêncio ou por vileza
o mar já não regressa e nada tem
para além de uma praia de incerteza
nada nos resta. nem sequer o vento
neste país cortado pela bruma
sem estrelas nem bússolas de frente
aves que foram caindo uma a uma

feito de palavras adormecidas e confusas
semelhante a um tempo onde ninguém se cruza
vai morrendo lentamente nas ruas
no rumor da tarde reclusa e nua
abril caminha obscuro. não vem mais.
a chuva tropeça na palavra sem projecto
quebrou-se este país antigo e puro
conduzido por homens de má fé e cegos

extinguiram-se os mares e os areais
já ninguém espera
ninguém vem honrar a terra com o rosto dos cereais
cultivam-se a troco de falsas moedas
campos de trigo
vendem-se os rios como quem vende animais

quebrado é o tempo

abril dói.

Desde que a luz se fez artificial

desde que a luz se fez artificial ficámos orfãos
juntaram-se nas cidades os solitários
para pôr em comum a solidão,
- fumadores de papel, como teria dito Pavese -
puxados pela corda negra da fome.
há livros de olhos postos no corpo. vêem-se de noite.
de vez em quanto gritam. e nascem folhas que
uma vez abertas não se conseguem mais fechar

doem os olhos
de tanto lhes sentir a foice.