Manuel Gusmão

Manuel Gusmão nasceu em Évora, em 1945. Foi professor na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi deputado na Assembleia Constituinte e na 1.ª legislatura da Assembleia da República, eleito pelo PCP. Tem reconhecida obra no domínio do ensaio, designadamente sobre Fernando Pessoa, Carlos de Oliveira, Nuno Bragança, Maria Velho da Costa, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz. Estreou-se como poeta aos 45 anos, em 1990, com Dois Sóis, A Rosa a Arquitectura do Mundo.

Outras obras: Mapas, o Assombro a Sombra(1997), Teatros do Tempo(2001) (Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores ) e Migrações do Fogo(2004). Toda a sua obra poética foi publicada pela editora Caminho. É autor do libreto da ópera «Os dias levantados», de António Pinho Vargas, que tem como tema o 25 de Abril.

Ao longo da sua carreira recebeu o Prémio do P.E.N. Clube Português para Melhor Obra de Poesia, em 1997,com "Mapas, o Assombro e Sombra", o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e o Prémio de Poesia Luís Miguel Nava relativos a 2001, com "Teatros do Tempo", entre muitos outros.

Em 2011, recebeu o Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho, por "Tatuagem e Palimpsesto: da Poesia em Alguns Poetas e Poemas", e em 2014 o Prémio de Poesia António Gedeão, pelo "Pequeno Tratado das Figuras".

Manuel Gusmão morreu em Lisboa no dia 9 de Novembro de 2023

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Foto: Nuno  Ferreira Santos

Poemas

Um dilúvio que subisse

Há muito que este homem aprendera
a perder coisas pelo caminho. Sabia agora
que perder era uma incisão na pele,
e então uma coisa por aí caía com o som veloz
de um crepitar eléctrico: um pássaro voando
raso sobre o fio de um rio. – Perder é uma falha
na ordem do mundo contíguo ao meu corpo
à mão que escreve a minha voz.

Essas coisas caem como coisas caindo, porque é
da natureza das coisas o caírem na estação antepenúltima e ardente, naquela sazão que ardendo se enfria.

Ou como um braço – antebraço – e mão: assim.
Assim abandonado no fim a mão que esquece.
caem com a tarde unhas e dedos, os dentes frios
descem a sua queda até aos pulmões que explodem.

Essas coisas do mundo, no mundo as perdia;
porque só há o mundo: os mundos – isso que nos faz
e nos sonha e por vezes nos perde. Isso que é feito
do que de nós cai e assim regressa ao lugar onde nascemos.
Isso que declinando é como se partisse em voo. E no ar
se dissolvesse como um pequeno fogo frio; um
imulacro que voa escrevendo-te na pele mais um sulco, um vinco, a linha da vida: uma inscrição ou
a rápida queimadura de uma asa trémula.

É assim: perdes uma coisa – ela cai de ti
e caindo como uma pedra numa página de água
o mundo estremece acende-se e ressoa como
se fosse uma caixa de música, um pouco grande
um pouco antiga. Uma caixa de música que fosse
a verdadeira fórmula do mundo, a pequena forma
como em sonhos ele a si próprio se vê, e não a ti.
Tu que de facto o ouves como se ele fosse
essa caixa de música: uma imagem da tua
da nossa infância de todos,
já um pouco tarde demais pelo século XX dentro.
Pelo século XX fora. – Fora! Fora!
Se fosse hoje um século e trinta anos antes; ou
depois de hoje o tempo que for; tivesses agora 20 anos
e a alma grande e livre de um carregador de pianos
tu: eu plantaríamos essa caixa de música no cimo dos Alpes.

E então ela soaria só para ti e para os bárbaros deles:
os migrantes que acampando invadem submergem
e conspurcam os jardins suspensos da Europa:
os antigos e magnificentes hipermercados.
Mas ao cimo da colina chegaram já os novos deuses
e os quatro cavaleiros que a estrela de urânio guiou.
Isso é mais uma coisa que perdeste: distraído
não viste de Europa o emocionante rapto.

Não o raptus em que ela seria um arco de som
um acidente da voz que vibrasse e entrançaria
a curvatura dos mundos. Não o grande salto em altura
sobre a irisação solar e a tez escura e misturada das gentes nas duas margens do Mediterrâneo. Não, é apenas o velho ardil do espírito absoluto que ascende de elevador e abençoa a imagem do mundo que a lepra devora: a falsa Eurídice, Cassandra a escrava e a perdida Dinamene.

Folhas caducas, órgãos de nada, as coisas deiscentes
caem segundo o seu nome. Afundam-se como vermes
saciados no leito dos rios que secaram e são agora riscos nas mãos desertas de onde a invenção emigrou.
Perdeste a caixa-de-música, perdeste a terra e a dança.
Assim um homem se desmorona: palavra
por palavra. E é então a surda ruína de uma árvore
uma árvore arruinada: um realejo de palavras roucas.

Canção última

b.

É um tempo em que já não haveria memórias partilháveis partilhadas. Ou só enterradas nas areias dos poços. Vestígios no deserto: a surdez dos ecos – a água só imaginada. 

Chegou esse tempo.

Não aquele outro em que a espécie, o humanop citaria
como suas todas as impossíveis imagens de todods os mundos que habitara, perdera e inventara: a declinação da rosa disparando e constelando o fogo sem nome e sem número.

Não esse tempo em que o humano devolveria à espécie
o horizonte do imenso poema inacabado que no perpétuo regresso de cada verso repete a origem.

Antes este tempo do constante regresso ao tempo que nos dividiu e divide e dividirá ainda; que uns contra os outros atira os nossos e os vira de costas, herdeiros perdidos da sua herança.

Chegou esse tempo.

Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo de ninguém.

E se alguém viesse agora ao teu encontro?

E com toda a música que do mundo resta chegasse?
A mais ténue que fosse: essa seria só a memória
de uma flauta nocturna ou aquela que lembrasse o eco
dessa viola chinesa e não chinesa que ele ouvia
e não ouvia dentro de si, vinda em vão do lado de lá
dos desertos oceânicos, da pátria falsa, e do nome
de amor que tantas vezes em falso ao amor damos.

Ou só que levíssima uma aragem fosse por entre os juncos.

Se alguém viesse     pudesse vir
Poderiam ser estes jovens de minas vestidos e explodindo.
Estas crianças que ríspidas e assombradas crescem velozmente no desastre do ódio.

Nos seus braços transportam, por todo o corpo se vestem de amorosas armas poucas, de explosivos que são as suas almas.
Como vimes que se enfloram cedo e cedo ardem entre ruínas.
Minuciosas vão, plantando em seu redor o sangue estilhaçado.
Depois irão ocupar os seus retratos sagrados
que já depois de mortas serão ainda beijados pela morte que entre os seus sem tréguas sem cessar floresce por vontade dos deuses pestilentos.

- Mas é isto uma criança? Um filho dos humanos?

Serão elas e o seu povo os bárbaros? Mas quem
o diz? De quem se não de bárbaros poderiam ser elas
e ele “os bárbaros” se sequer o fossem?

Como pagarão aqueles que assim os tendo feito assim os chamaram?

Chegou. Não pára de chegar o tempo extremo
o tempo da ofensa e do extermínio. O tempo
das grandes migrações.

O tempo de ninguém.

 

de migrações do fogo, Caminho, 2004

 

Variações do Branco

Ergues o olhar: surpreendes por instantes essa hora
em que o mundo envelhece: ténues as variações do branco
parecem dissolvê-lo numa longínqua música, anterior à chuva

Ou será então a imagem submersa de um filme a preto e branco

Há próximo um branco vibrante: o da cal ainda recente
mas que a humidade salina já a espaços mordeu,
recortando as feridas cinza na varanda a que vens.

Não há ninguém aqui. Quem te chame, digo.

Há o branco baço na parede que em frente em vão separa
rua e praia. Tendo já transposto essa fronteira incerta
ou erguendo-se para lá dela há o branco pobre da areia:

As dunas plenárias sustentam os corpos deitados de mar e céu.
Aí é agora o grande branco: o clarão velado e difuso
que guarda e distribui a memória embaciada do azul
e do verde, do oiro e da prata — uma lembrança vã.

Tu escreves no visível do mundo essa névoa branca e desolada

que o motor da paisagem produz. As folhas do ar são como
se fossem as levíssimas pétalas, as vagas sílabas de uma neve –
e essa névoa engolfa, atrasa e apaga na travessia os simulacros

das coisas supostas e imaginadas que o mundo te envia
enquanto esperas por alguém que não virá

 

encontrado aqui

 

 

Uma criança interrompida

Esta criança é uma lâmpada que assustada
se apagou. Nem mapas nem paisagens já
nada a espanta; nada a pode já espantar -
o mundo conhece-o pequeno: é uma prisão
tão apertada ao corpo que lhe tolhe os desejos
e o riso, os jogos e a invenção.

O seu poço, os ecos que nele teriam
brilhando, o labirinto fragrante dos tecidos,
dos arcos e das portas casa após casa
são agora ruínas sobre ruínas, escombros
que já caiadas salas e quartos foram, ruas
fendidas sob o céu estéril dos assassinos.

Esta criança tem nas costas tatuada a origem
que se cola ao seu futuro, empurrando-a
para lá, para o destino destinado - de onde vens tu?
- venho de lá e vou para lá. - Não tem origem
que lhe dê p'ra muito mais que uma morte
repetida que cala os lugares e apaga as vozes.

No cinema que ondula a negro entre o seu crânio
e a abertura solar dos olhos - é sempre a catástrofe
um desastre que regressa. Os bárbaros desta vez
vieram numerosos e diversos mas nem sequer
eram parte da solução. Não eram parte de nada
apenas iam e vinham do outro lado deste lado.

É difícil mas supõe que esta criança terá conhecido
uma glória um tempo: Andava de bicicleta
numa paisagem de palha; com os seus se batia
em alta grita. Apedrejava pássaros, cães e soldados.
Agora só uma pequena víbora se deita com ela
no sono e no sonho a morde e a interrompe.

Esta criança é breve.

Põe uma pedra

uma pedra sobre a infância

 

Para que de vez se cale essa respiração

contida suspensa no escuro

 

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre

essa infância essa fala ininterrupta essa

 

falagem que falha e promete e inventa

os sonhos e as promessas o riso sem porquê

 

Para que de vez se interrompa a esperança esse

mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

 

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa

que é a infância, as vozes da noite do poço.

 

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada

e para sempre trocou já os desejos e os medos.

 

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio

as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

 

Para que se cale de vez essa respiração que se ri

na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

 

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre

a infância e ouve a era a folhagem que cobrem

 

o céu em ruínas.

 

Também então havia uma pedra no canto do quarto

Alio onde a noite começava, era uma pedra e depois

crescia, petrificava-se no seu coração de pedra

dividia-se e eram várias crescendo; ocupando

todo o espaço do sono, do sonho do mundo.

Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos

que de pedra ficavam e o grito era uma pedra

que na garganta subia contra a outra pedra.

O próprio ar golpeado era e dividia a voz

pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

 

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma

outra infância de que possas recordar-te.

Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:

nada acontece. Não há


nenhuma voz na voz dos condenados.

 


lido aqui

 

Revolução orbital: vai-se a rosa transformando
na coisa múltipla, amante e amada, na acção
que assim a faz e nos acidentes mínimos – paisagens,
estações dos dias e das noites, dos anos da história.
Ondula no cérebro a fronteira que as margens da luz
desenham. E a rosa é uma hélice que vibra
no ar que a respirar obriga(s): torção dos pulmões,
do tronco e do sexo, dos nomes e dos vocativos
que se respondem: como um coração que deflagra
a rosa faz do ar que te falta a terra de onde nasces
e o chão sobre que danças.

 in 'Dois sóis, a Rosa – a Arquitectura do Mundo'

Havia séculos
e eram florestas sobre florestas escritas.
O canto cantava: era o incêndio do vento

folheando a memória da terra

    essa maranha de raízes aéreas que nasciam enterrando
mais fundo as árvores anteriores;
    essa teia nocturna de troncos e lianas, de ramos e folhas,
nervuras que os versos enervam irrespiráveis;
    esse mapa em relevo lavrado pela paciência da luz
que atrasando-se recorta
    estas estranhas esculturas do tempo:
os poemas selvagens

o máximo excesso de uma rosa aquática e frágil
sempre a nascer desfiladeiros
e falésias, fendas, quebradas, ravinas
vulcões que deflagram em écrans sucessivos

Havia séculos
e o cinema dos astros
acendia ampolas e bagas, campânulas, cápsulas, lâmpadas;
punha em música a infinita noite dos versos que longamente
escutam
aqueles que muito antes ou muito depois vieram ou virão
até estes anfiteatros que os desertos invadem.

Havia séculos
e / atravessando as ruínas dessa terra quente, as páginas
de água dessa rosa alucinada / havia esse:
o comum de nós que dos seus se dividindo, verso
a verso, procura ainda alguém. E assim
era de novo o início.

A grande migração das imagens — havia séculos —
desde há muito começara, desde sempre, já.
E sem cessar migrávamos nós, inquietos e perdidos

sem paz e sem lei, sem amos nem destino.

 

lido aqui

O espelho está lá mas ninguém lá está
É uma cena deserta. O piano e a estante de música
estão vazios; são contornos da sombra
Do lado direito de quem olha daqui, há
uma ampla porta-janela que dava para
uma varanda que daria para uma selva imaginada.

A música que ouves não vem desta sala
Nasce e vem do maciço de árvores escuras
que brilham mais no escuro da noite ultramarina.
Vem do mar que está depois da selva que
está a seguir às árvores de um parque
que é uma memória de pedra que já começou a ruir.

É uma música poderosa mas lenta; feroz e densa
e voraz; selvagem mas não primitiva.
Nos arredores do império, num condomínio
colonial antigo e novíssimo, podes pela música
que sem resgate os dissolveu imaginá-los. Fora
pouco antes de desaparecerem

Eram já extremos conspiradores sem conspiração,
de si mesmo exilados, perdida a juventude,
perdidos dessa selva em que teriam sido feras
e fora já a sua própria memória. A maturidade
apodreceu-nos como uma floresta que se desfaz
na água nostálgica do desejo. A música

essa música num espelho longe foi o que sobrou
fala de um crime passional em que ninguém afinal
morreu, de um segredo partilhado e sem sentido
que ouves uma vez mais nessa voz abafada ou
rouca – como se diz? – nessa voz que te transporta
a essa cena deserta onde nunca terás estado.

No espelho longe num oriente extremo não podes ver-te:
não é a tua história; não é a história de ninguém. Mas
podes ver a música que através deles te envenena o sangue.

 

em migrações do fogo

Há uma rotação do teu corpo
ou de uma parte dele que está pelo todo
e fora dos eixos do mundo.
Rodas a partir da cintura, estendes um braço,
há um músculo que se ilumina, uma onda
vertical em que tu própria te subisses;
então uma perna flecte-se, e o outro pé fica em ponta
oblíquo sobre o mundo que nesse instante
se suspende.

 

de Teatros do Tempo, Editorial Caminho, 2001

g;
Livre é o dom nas mãos do mundo: a alegria.
Nunca saberás dizer como se move sobre as águas a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.
Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste
comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.
l;
Quando não estás a olhar é o mundo
que te olha. Nunca saberás o que vê.
Obscuramente imaginas que testemunhará
por ti, mas ignoras de todo - e que importa? -
onde, a que propósito e perante quem.
z;
O mundo quando não estamos a olhar: as paisagens
mudam de lugar, vão mudando o mundo. Quando
olhamos só os vestígios ficam
da mudança. E não sabemos antes a figura
em que o pouco se demoram as paisagens. Só o poema
a dá enigmática e evidente.
Dirão que é esse o rosto da morte que no olha, mas
não o creias e canta antes a figura do que desapareceu
como a própria doação da figura enquanto as paisagens
mudam o mundo. Para a frente há ainda a noite
da terra que apaga e acende a última praia
e o seu elogio por quem se despede enquanto dura.
in A terceira mão ,  2007