Luiza Neto Jorge

Luiza Neto Jorge nasceu em 1939. Estudou em Lisboa e viveu em Paris entre 1962 e 1970. A Noite Vertebrada, o seu primeiro livro, foi dado à estampa em 1960. Luiza Neto Jorge esteve ligada ao chamado grupo da Poesia 61 que procurou, no início da década de sessenta do século XX, contribuir para renovar a linguagem poética, explorando novas potencialidades gramaticais e semânticas no interior do discurso e na sua inscrição na página.

Consciência feminina da escrita e invenção de uma poesia crua em que o corpo da linguagem se confunde com o corpo do sujeito poético são alguns traços a destacar na sua escrita. Além de poetisa, Luiza Neto Jorge desenvolveu intensa actividade no domínio da tradução e escreveu para teatro e cinema. Faleceu em 1989, tendo deixado sete títulos de poesia publicados, entre os quais figuram «O Seu a Seu Tempo» (1966), «Os Sítos Sitiados» (1973) e «A Lume» (1989).

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Poemas

o sangue o suor
a água lustral
o leite do sol
retido na mama
o sangue sangrando
com o vinho
o pranto o rito
líquido o vinho
tinto no mijo
de deus no sangue
descendo na urina
subindo água
benta no sangue
o filtro do amor
filtrando o suor
um licor dividindo
o choro do pus
 
poema encontrado aqui

As sofridas amoras
dos valados
os fogosos espinhos
que coroam os cardos

Saltam ao caminho
a sangrar-me a veia
do poema.

lido aqui

A exaltacão do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem a forma
o meu esplendor.

Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.

A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.

 

lido aqui

I

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

II

Prometeu ser virgem toda a vida
Desceu persianas sobre os olhos
alimentou-se de aranhas
humidades
raios de sol oblíquos

Quando lhe tocam    quereria fugir
se abriam uma porta
escondia o sexo

Ruiu num espasmo de verão
molhada por um sol masculino

V

Louca como era a da esquina
recebia gente a qualquer hora

Caía em pedaços e
vejam lá convidava as rameiras
os ratos os ninhos de cegonha
apitos de comboio bêbados pianos
como todas as vozes de animais selvagens

 

lido aqui

Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objectos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sanguíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.

Desses «em guerra» vos falo falo dos que me seguem
não os chamámos seguiram-nos
todos descremos e rimos por dinheiro não trocámos
projectados para a morte não traímos

Eu e ele somos a espaços
improváveis veículos (eu e vós)
mestres voadores numa convulsão de cigarros mestres
reptantes redemoinho meu ressaca viva oculto vinho
oculto amor

o nosso vedado o mundo tão exíguo e o dos outros
(luzes água planetas mecanismos ambíguos) mais
exíguo

Amamos o mundo (quem?) o tempo (qual?) a luz (quando?)
a treva (onde?) tudo (?) todos (?!)
trepidantes trémulos
com a ajuda mental de partículas
de merda

ou simples estados, frenesis, convulsivos, objectos,
alibis, a pique, patológicos,
risos, redundâncias, aços, lascados, alarmados,
conhecemos — além de nós, reais, —
os reis, os resíduos, o dente liliputiano
no sorriso do arcanjo.

 

dezanove recantos, 1970

I

Um livro crepita
um gémeo pendura-se
no seu fogo

(aparato lírico do fogo
queimando o labirinto)

II

Escorregam as linhas descendentes
de um poeta.

E as chuvas caminham noutra direcção
para uma página menos escrita.

III

Compare-se o que se diz
com o silêncio que circunda a boca
de um ser desconhecido.

 

os sítios sitiados, assírio & alvim, 1993

a jarra tombou
a água correu sobre a mesa

as flores calaram-se aos poucos
o espantalho tocou o acordeão

a criança cansou-se do vento
desatou as sandálias
o mar meditou duas vezes
qual o horizonte

do sotão a galinha presa
viu um avião voar

uns quantos vestiram-se de negrfo
viveram da morte dos outros

suicidou-se uma sombra
debaixo do meu pé

a mulher calçou-se de branco
para a ressurreição

no Poemário Assírio & Alvim, 2006