Luís Quintais

Luís Quintais nasceu em 1968 em Angola. É antropólogo social e lecciona presentemente no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra. Nesta qualidade, tem vindo a desenvolver investigação de arquivo e de terreno sobre o exercício e as implicações públicas e forenses da psiquiatria.

Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1995, A Imprecisa Melancolia (Teorema e Lumen). Em 1999 regressa à poesia, publicando Umbria (Pedra Formosa) e Lamento (Livros Cotovia). Posteriormente publicou Verso Antigo (2000), Angst (2003), Duelo (2004),  Canto Onde (2006) e Mais espesso que a água (2008), O vidro (2014), Arrancar penas a um canto de cisne (2015), A noite imóvel (2017), Agon (2028)

Em 2018 publicou um livro híbrido, Deus é um lugar ameaçado, contendo fotografias polaroides e textos em prosa os quais ora se aproximam do gênero ensaio, ora delineiam poemas, ora parecem legendar as imagens, ou ainda a tecer reflexões filosóficas, não ocupando em definitivo nenhuma dessas categorias.

Ler mais: auto / Poesia & Lda / Relâmpago / um mundo imaginado / insónia  / poesia ilimitada / Vortex

foto: Fernando Fontes

Poemas

Arte Privada

Deveria ter feito da minha música um amor mais silencioso
como se de uma arte privada se tratasse.

A ti, a quem falo de poesia, a ti
que assistes ao desenrolar de qualquer coisa que não compreendes,
respondo-te que também eu não compreendo,
que não há que compreender,
porque nada nos condena à fala
antes que as palavras aconteçam.

Por exemplo, esse poema começado numa manhã de Junho
e nunca terminado: um princípio de verão,
a janela que dá para o alcatrão sem tráfego serpenteando pelas colinas.
A rua de dia de semana
e o arquipélago da solidão despertando
para as poucas coisas que procuro
e que o poema irá entretecer
se entretecer. -
A virtude que, cega,
vai conhecendo o seu caminho.

Desprende-se um fio luminoso da impossibilidade das palavras,
e se ficamos tristes não era para ficarmos,
pois não existem momentos irrepetíveis.
Eles aninham-se no sangue
e voltam a mergulhar-nos na experiência:
um dia de verão, um bosque, colinas
onde a serpente de alcatrão se enrola.
A ausência de tráfego como motivo.

A pouco e pouco vou recuperando a gravura.
Agora sei que havia uma ave sobre as colinas,
pois há sempre uma ave, ou a sombra dela,
nos meus poemas. Que havia água,
o cheiro das inusitadas chuvas
pela manhã de Junho.

O rumor da imagem colado aos dedos.
O ocre escuro das areias espalhado na mesa
é um símbolo da infância,
mas não o reconheço ainda.
O poema é uma enumeração que não teve lugar,
que nunca terá. Eu, à beira do fracasso,
não o reconheço ainda.

Enquanto isso tem lugar em mim o advento
do que me define,
e o barro de que sou feito coze por dentro.

de A Imprecisa Melancolia, Teorema, 1995
em Anos 90 e Agora- Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, quasi, 2001

Árvores sem nome e sem recorte entrelaçam-se.
Eis uma imagem que atravessa os meus dias:
a pouca luz sem origem reconhecível
lutando para iluminar um bosque na noite,
e esse espaço para lá dos ramos que posso ver,
esse escuro vórtice sem escala onde a luz se esvai.

É este o intenso medo,
não pelo mundo a desaparecer,
não pelas mágicas sugestões do vazio,
mas pela irresgatável origem da pouca luz que me cerca

de Lamento, Livros cotovia, 1999
em Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, quasi, 2001

Tílias

Alguém me fala de tílias. Conheço uma avenida de tílias. Atravesso-a todos os dias em direcção ao trabalho. E os dias começam bem, penso.

Percorro esta atmosfera que me anuncia a manhã. Bem sei que terminarei o dia dobrado pelo incumprido. Mas agora há uma voz que me fala de tílias e uma avenida de tílias e a sagração do que me espera. Sincero jogo. Precário jogo.

Magma

Recolheremos todos os dividendos da luz onde antes havíamos recolhido todos os dividendos do desespero. O que o inevitável nos traz. Recebê-lo-emos com a temperança dos que esperam sem expectativa, dos que pressentem as fronteiras da música em cada erro do passado, em cada equívoco cultivado, em cada golpe sem premeditação, em cada palavra suspensa antes do arrependimento. Desse magma – rememorando magma – virá o que impele o sangue no delta das artérias.

Oco

II

Alguns anos depois – não se sabe quantos –

regressou àquele lugar – integralmente curado, como lhe disseram – e as árvores, antes frondosas, estavam mortas ou agonizantes. Não sentiu o mais pequeno sinal de nostalgia crescendo no oco em si. Só o oco em si.

 

Breve história do tempo

Vejo numa extensão de líquenes
traços de carros, caminhos
para o que se afigura irrecuperável.

Carros puxados por animais (bois,
cavalos?) cruzando-se com o 4 por 4
(Land Rover?). Haverá excursões

para o impossível, pensaste tu.
Os limites do nosso mundo são
esta extensão de líquenes

e os sulcos que resistirão à morte.
Somos interlocutores do eterno,
pensei eu. Todos os tempos se cruzarão

neste lugar como a fúria da ígnea lava
descendo a encosta e revolvendo tempos
em outro lugar. Toda a terra terá

o rosto da mesma terra e a cor
do mesmo movimento. No passado vive o presente
e o futuro, e os carros a tracção animal

cruzam-se sem cessar,
nos limites deste mundo,
com os 4 por 4.

Precipício

As imagens gastas de tão lidas
e os sofisticados lugares comuns da poesia
colam-se-te à pele – pelo incómodo trajo do bom senso
e do bom gosto que repudias.
Vil chegada do que amaste, e que agora recordas.

A poesia faz-se contra o esquecimento?
Melhor seria dizer, contra a memória se faz a poesia.

sem a arruinada ponte não há precipício?
O que conta é o precipício além da arruinada ponte.

Labirinto

O rapaz sentou-se sobre o que restara da árvore cortada,
o seu diâmetro, essa zona de anéis concêntricos
fechando-se uns sobre os outros.

Um sulco a gravitar tempo fora, ou uma espécie
de boomerang que me atinge depois da longa viagem.
As mãos a levitarem sob a manhã – será sempre manhã

porque a luz com que sonho pensando que o evoco
é uma luz exacta, sem a feroz mácula
da nocturna antecipação.

A sua expressão – consigo pressenti-la – é um refúgio
inadiável, precisão súbita sem resgate
contemplando-me.

Nisto não encontro desenlace ou sequer alguma paz.
O rapaz permanece sentado sobre o mapa
do labirinto e interpela-me:

“Não andamos à procura de histórias, pois não?
Onde está o princípio e o fim
de tão elementar acontecimento?

Recupera a visão e a visão somente, o que te cerca existe
quando o vês.”

Bichos

Por métrica audaz,
sonhámo-nos livres.
Afinal seríamos bichos.
Sonhámo-nos livres.
Afinal nem sequer
a quatro patas.

de ANGST, Livros Cotovia, 2002

Mudez

Toco o teu crânio com dedos leves, mortificados pelo medo. Tu dizes algo. A tua voz perde-se no oco de tubos, fios a prumo, corpo adentro. Não percebo o que dizes.
Mudo é o dia e o teu dizer.

Revisitação

Em que poema vives? No da azagaia, naquele em que repartes a morte com uma planta que se acerca, ameaçadora, do tecto, nesse em que descreves uma elipse e eu tento perceber o que é uma elipse quando afinal a lição seria outra, nesse ainda em que repartes o teu crime e a tua desistência com um cão.
Um açude de palavras não sustém a tua voz.

Horror

O que podemos contra o horror?

“Lancei-lhe a breve chama. Ele disparou pelo mar«to adentro. Compadeci-me com o seu sofrimento, mas o fim não tardaria. Que me restava? As muralhas de plasma que cerceariam caminhos? Não me lembro de sons. Apenas de cores, cheiros, seivas, vertigem. O bicho corria silencioso. Sim, por certo desesperado, mas silencioso. As sirenes. Disseram-me que se ouviram durante todo o dia. Não sei como as puderam escutar.O mundo não tinha voz. Ardia sem voz. Nem sequer a sua sombra crepitava.”

Um tecto desaba, e nós sob a sua queda atónitos. Não podemos contemplá-lo sem que se feche em nós. Toda a escuridão da alma, possivelmente.

Nuvens

A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direcção sudeste,
filtrando a luz do sol em obsessiva correria.

O mapa e o território

O tédio era o espaço em que arriscávamos
a batalha das nossas vidas. O professor
falava e nós não escutávamos
presos que estávamos
à presença de um tempo em quadrícula,
às adivinhas e arremesos cruzados,

Sabemos hoje (por hábito ou fuga)
que a metáfora é esta: cega tentativa
em acertar nos objectos que flutuam
na esquadria, vasos de guerra
que irão naufragar, assim tenhamos
êxito no desenho das formas.

A maior parte de nós descobre, porém,
a diferença maior: o mapa não é a realidade,
e esta enovela-se num largo território
para o qual náo há métrica.
A densa sombra cobre a pouca verdade
que recuperamos, e, móvel,
destrói o seu legado.

Nada sabes porque nada lembras"

Nietzsche e Coltrane

N.

O assentimento da noite dionísiaca
percorre o arco da tua vida.
Ergue-se uma vaga.
O seu estrondo
assinala o derruído tempo.

C.

Gostava de contemplar o Pacífico.
Os surfistas cruzavam
o mapa da sua rebentação.
Eu permanecia na praia.
Amava o seu risco. Transportava-o
como lição para cima do palco
em noites em que já não compreendia
a minha música, nem sequer
a encenação dela.

Ontologia
Para a Sandra

Serei eu o cartógrafo sem linguagem e escala?

Este mapa que a minha experiência de ti desenha
não contém as invisíveis coordenadas do teu nome.

Este mapa teme as descrições por inteiro
e ama-te.

Campo de batalha

E dispôs da linguagem
como quem dispõe de um campo de batalha:

a terra queimada, o opressivo cheiro a pólvora,
entre céu e solo a impossível carne exposta.

Tudo isto são vestígios, lâminas de osso, cartilagens,
a pulverização do anónimo sangue.

Sobre o tabuleiro dispersa-se a gramática,
a cronologia dos sonhos por abandonar.

O sonho da linguagem

Escreverás sobre a sujeição dos animais.
Mas não hoje. Lembra-te de como se move
a pantera, ainda, na jaula sem literatura

que lhe legaram. Lembrar-te-ás. Mas não hoje.
Porque hoje é o dia em que as metáforas
despertam, a arca se abre, e a linguagem

se assemelha a uma invenção em aberto.
Uma vigília de metáforas preenchendo a noite,
como um Fogo-de-Santelmo que, eternamente,

a cobrisse, a si e ao seu manto e aos seus símbolos.
Hoje é o dia em que a noite se faz dia,
em que a linguagem celebra os animais

depois dos animais terem perecido,
mas sem que haja memória disso,
sequer nostalgia disso. Apenas linguagem,

apenas sentido e som a ressoar dentro
do sentido, sem que a hipótese de um princípio
se imponha, sem que a hipótese de um fim
se imponha.

Haverás de despertar, tu também,
para a vigília das metáforas,
para o sonho da linguagem.

Viagem

Curtos são os passos
que conduzem
ao sem regresso.

de Duelo, Livros Cotovia, 2004

No cortejo das sombras,
incapaz de te encontrar,
tão irreal que és,
como uma manhã de inverno
ou uma rua deserta,

no cortejo das sombras
distingo
o pavor de te desconhecer

 

lido aqui

Vou falhando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitados pelo pensamento.

 

in «Lamento», 1999

É a mão direita que domina.
A esquerda obedece
cegamente.
É a mão direita que fere.
A esquerda consola.
É a mão direita que disciplina,
brutaliza.
A esquerda, é o exercício
próximo e doméstico
de afagar
o que a comove, o que
recatadamente a silencia.

Esta é a terra,
os modos de nela me orientar:
as minhas mãos, a proeminência
da direita sobre a esquerda,
o que toda a vida quis negar.

Crença

II

Imagino que o amor se manifesta por certos indícios ou formas muito gerais que tornam o mundo um lugar de perigo, de morte, de salvação.

Tu estás sentada, eu reparo nos simples gestos, nos olhos. Reparo nas palavras que dizes. Estou preso ao que se encontra para lá delas, algures nesse interior só presumido. E por uma misteriosíssima semelhança ou analogia, escuto-te saciando-te, saciando-me de atenção. É a analogia da atenção que me permite antecipar o que ocorre algures entre ti e mim, no lugar ocluso que evoquei.

Dir-se-ia que tu e eu vamos de mãos dadas visitar o invisitável, e que o descobrimos como quem descobre um palácio há muito abandonado, e que nos guiamos, como cegos, um ao outro, reconhecendo detalhes e formas do que em nós julgávamos perdido, ou simplesmente impossível.

Talvez esse comércio de sombras não dure, porque nada dura. Mas, entre ti e mim, a analogia é perfeita, epifânica, ou assim quero crer.

Iniciação no escuro

III

O rio escurecia
e depois aclarava e depois escurecia.
As árvores gravitavam nas margens
da tua memória,
faziam correr estilos de morte e promessa.
As personagens do inscrevível
seriam afinal mais monstruosas
do que se suspeitara,
e os insectos emudeciam
enquanto o outono regurgitava as suas vítimas.

E tu, tu? E tu fazias abolir
o sentido para fazer eclodir de novo
o novo sentido. E tu procuravas entre despojos
um arco de bicicleta partido,
um casaco com bolsos que dessem para o improvável,
em qualquer outro achado preso à cega geometria
e à circunstância do procurar.

VII

Um equívoco, outro ainda.
Uma versão, apenas uma versão.
A vilolência campeia.
A violência que surge
Da plena ilegível fronteira
Deste mundo.
Só, aguardo que uma sombra
me cubra.

Irei habitá-la.

Os animais que morrem

O peixe agoniza no aquário.
A criança aproxima-se e interroga-o.

A beleza é a desmedida razão.
O vidro quebrar-se-á.

Tocas-lhe, tocas-lhe outra vez,
e a visão cerca

a agonia na sua sombra.
Criança, aprendes

que a luz se dobra
e na densa escura noz

fecha os animais que morrem.

A metafísica será talvez
uma indisposição que se quer passageira.

Porém, eu continuo a inquietar-me
com as nuvens que são arrastadas,

violentamente arrastadas, na direcção sudeste,
filtrando a luz do sol em obsessiva correria.

em Di Versos nº 9

A selva escura, vejo-a agora nítida aos 40.
Numa antecipação do caminho que não meço
e que se abre de tão denso à minha frente,
numa escuridão que é apenas ignorância,
despropósito, aventura ―
certeira morte em incerto tempo.   

de Mais Espesso que a Água, ed. Cotovia, 2008