Fiama Hasse Pais Brandão

Fiama Hasse Pais Brandão, poetisa, dramaturga,  ficcionista e ensaísta, nasceu em 1938, em Lisboa. Frequentou o curso de Filologia Germânica, até ao 3º ano, na Universidade de Lisboa. Exerceu crítica de teatro, estagiou em 1964 no Teatro Experimental do Porto, frequentou um seminário de Teatro de Adolfo Gutkin na Gulbenkian em 1970. Em 1974, foi fundadora do Grupo "Teatro Hoje". 

Traduziu autores como John Updike, Bertold Brecht, Antonin Artaud, Novalis, Anton Tchekov e o Cântico Maior, atribuído a Salomão. Revelou-se como uma das principais vozes poéticas da sua geração, depois de dar os primeiros passos no movimento Poesia 61.

A partir dos anos 80, Fiama enveredou por uma via mais discursiva em que se salienta a sua atenção à "metafísica humilde" da natureza, alcançando uma sabedoria cada vez mais unida aos elementos naturais. Autora de livros de poesia como Em Cada Pedra Um Voo Imóvel (1958), Morfismos (1961), Cenas Vivas (2000) e As Fábulas (2002). Escreveu várias peças de teatro, algumas das quais já representadas em Lisboa, Rio de Janeiro e Nancy. Fiama morreu em Lisboa, no dia 19 de Janeiro de 2007.

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Poemas

Rias

O caminhar pela areia sem caminho,
indo ao sabor dos recortes e marinhas.

Ao sul ou norte de um país marítimo,
era um tempo passageiro esse
do caminhar pela areia sem caminho.

Baixa se estendia a água.
Deitada no chão, a sombra era bebida
por essa água pouca, areia ávida.

Leituras em Novembro

O mar bate como se o sopro
do separar das águas de novo
rasgasse a terra alcantilada.
Não o vejo, mas ao longe
oiço, no êxtase, o rumor
das ondas infinitamente.
Depis calamo-nos ouvindo
a voz interior apenas e pensamos
nos livros que consubstanciam
a separação entre a terra e a água.

Espaços

Todas as coisas e seres
são dados aos poemas e exigem estar.
Próximas paisagens distantes,
seres presentes.
Entre o aparo e a escrita.
Próxima, não a respiração
mas a presentificação das coisas,
infindos riscos.

Nuvens

Nuvens mostram-nos ao longe
a ficção de serem formas cénicas.
Mesmo rostos podem nascer ali
debaixo de madeixas claras.
Risos podem rasgar-se, entre
raios de sol e sombra. Essa,
por vezes, a vida frágil dos risos.

O Urogalo

O urogalo não cantou toda a manhã.
Despida de sentimentos, procuro
os nomes e os mitos. E a grande sombra
da árvore de palma veio pousar
sobre a relva nua e o decepado coto.
Não mais interiorizo a Natureza próxima.
Que o morto aloendro leve consigo
anos de infância e juventude, carícias
do vento, para sempre e em todo o lugar.

O urogalo viria em vez do melro,
cujo corpo sacode o restolho de velhas folhas,
cujo assobio se abafa na hera invasora.
Seria o sinal do último cantor da casa,
o desconhecido urogalo, que apagaria
esta tristeza de nada desejar, aqui e agora,
entre estes cepos, esta terra revolta
e os mortos tão absolutos e esquecidos,
depois de tão eternamente vivos.

Resposta

"Eu vinha para a vida, e deram-me dias"
vivos com os seus lugares e espaço.

Ontem nasci sem fim, e alimentei-me
nesta mesa que em duas se reparte.
Uma aba no mar, vagante à toa,
trouxe os sabores de ondas, de orlas.
Outra aba na terra mostrou-me as pedras
polidas, úberes, gastas. Pedras
densas que me encheram o ventre
e me criaram similar à Terra.
No mar tive cristais quebrados, jóias;
na terra, tão nítida poeira branca
que fundi as formas das flores visíveis.

E hoje é este olhar profundo,
deriva das imagens pelo mundo.

Nessa parede verde da hera

Nessa parede verde da hera
o teu rosto cada vez ganha mais forma,
entre as mãos de verdura estendidas
aos ventos que as dobram e movem.

Quando te vejo na luz ou nessa sombra
estar vago e ser tão próximo,
só tu sendo não sabes onde te vejo,
só eu muda não digo onde te guardo.

 

de Cenas Vivas, Relógio D'Água, 2000

Sei que o cérebro o coração e o ventre
são uma só forma. O mesmo ponto claro
no alcatrão profundo da abóbada.
Que o cérebro murmura
como o estorninho que devora a verdura
que se estende diante dos olhos.

O ventre, esse, pernoita e imita-o
ao som do ritmo do coração
que digere os vegetais túrgidos
a que pude aconchegar os lábios.
Nada mais bascula no tecto
onde um vapor prende os intervalos.

Costelas, harpa da noite, com um som
de osso cristalino em que não toco
senão quando o cadáver se desenvolver
deste corpo ornamentado por flores frescas.
Assim um tronco esvaziado
pelo formigueiro por vezes confunde-se
com o meu cérebro, o coração e o ventre.

O luar eterniza-se como fundo
deste pensamento acerca das formas.
É uma pequena cabeça de formiga,
tão negra que a agradeço aos mestres clássicos
pelo negrume descrito nas cosmogonias

 

lido aqui

Na névoa, a cidade,ébria
oscila,tomba.
Informes, as casas
perdem o lugar e o dia.
Cravadas no nada,
as paredes são menires,
pedras antigas vagas
sem princípio,sem fim.

 

lido aqui

 

Em Galafura

Os povoadores da beira Douro
conhecem o pó e as pedras.
E sabem que o Universo
concebe cerejais e parras.
Vivem como vermes magníficos,
iluminados por dias soalheiros,
obscurecidos pelas invernias.

A Matéria Simples

Os brilhos que na noite vêm
são dos olhos dos que sonham,
viagens pelos mares de outras águas.
São os que não gostam de se elevarem
no ar sobre os antigos oceanos
e amam os pequenos riachos
e o fundo invisível dos poços.

Do Raio de Sol

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.

 

de As Fábulas, Quasi, 2002

 

 

CANTO DA CHÁVENA DE CHÁ

Poisamos as mãos junto da chávena
sem saber que a porcelana e o osso
são formas próximas da mesma substância.
A minha mão e a chávena nacarada

se eu temperar o lirismo com a ironia .
são, ainda, familiares dos pterossáurios.
A tranquila tarde enche as vidraças.
A água escorre da bica com ruído,
os melros espiam-me na latada seca.
É assim que muitas vezes o chá evoca:
a minha mão de pedra, tarde serena,
olhar dos melros, som leve da bica.
A Natureza copia esta pintura
do fim da tarde que para mim pintei,
retribui-me os poemas que eu lhe fiz
de novo dando-me os meus versos ao vivo.
Como se eu merecesse esta paisagem
a Natureza dá-me o que lhe dei.
No entanto algures, num poema, ouvi
rodarem as roldanas do cenário,
em que as palavras representavam
a cena da pintura da paisagem
num telão constantemente vário.
Só o chá me traz a minha tarde,
com a chávena e a minha mão que são
o mesmo pedaço de calcário.
Hoje a bica refresca a água do tanque,
os melros descem da latada para o chão,
e as vidraças devagar escurecem.
As palavras movem-se e repõem
no seu imóvel eixo de rotação
o espaço onde esta mesa de verga
gira nas grandes nebulosas.

CANTO DOS LUGARES

Tantas vezes os lugares habitam no Homem
e os homens tantas vezes habitam
nos lugares que os habitam, que podia
dizer-se que o carcere de Socrates,
estando nele Socrates, nao o era,
como diz Seneca em epistola a Helvia.

Por isso cada lugar nos mostra
uma vida clara e desmedida,
enquanto o Tempo oscila e nos oculta
que e' curto e ambiguo
porque nos da' a morte e a vida.

E os lugares somente acabam
porque e' mortal cada homem
que houve em si algum lugar.

*

Este diurno Amor está em corpo,
e num e noutro, como o pão partido
no banquete dos convivas silenciosos
que é o de cada um consigo e os outros.
Nenhuma coisa ausente o partilha,
quando as estações do tempo passam
por nós depois da Primavera e param
na longa mesa posta para o Verão.
Tudo é presença aqui, e o tempo é dia.

de Cantos do Canto, Relógio d'Água, 1995

 

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças,
começo devagar a reescrever o mundo quedo
que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo.
Ninguém me deu outras formas que não minhas
mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa.
E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos
mas autores cada um no seu frasear, generosos
quando me reconheciam em muitos anos de vida.
Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera.
Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos
de cada olhar de imagens próprias de cada um.
Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol,
os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver,
que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra,
quando o dorso de prata e o gume passavam
nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas,
de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças,
emprestai vosso vidro e revérbero à luz
do farol extinto, em outras vidas que antes
narravam que eu era já nascida,
quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas
com a noite embebida, tantas vezes co-substancial.
É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos,
diariamente somando anos, minutos indivisos.
Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.

 

lido aqui

Embora adormecida, sei
que a noite está queda e sem rumor.
mas o meu fiel amante, Hypnos,
leva-me a um solo cor de sépia,
encerra-me, cega, num espaço opaco.
E quando oiço, no fundo do silêncio,
as pancadas fortíssimas na abóbada,
gemo de gratidão e de ódio.

 

lido aqui

 

Outras andorinhas voltam, não as que
partiram dos beirais, no Outono.
Mudaram no deserto as suas imagens,
e as que volteiam hoje sobre esta água
no passado conheceram outro destino.
Que lugar trarão na memória dos olhos?

de DiVersos N.° 5

Quando sofro possuo a Natureza configuro
até à exaustão o recesso da rocha
involuntariamente em que imagino
o gorjeio. Escolho repleta de camélias
a vereda sem nenhum resíduo alheio
só o das imagens da flor de lótus
vim até à muralha. É um Museu

Romântico, no muro do musgo, no baixo-relevo
está o perfil egípcio, oiço o tenor,
o da sintonia, do regresso das expedições,
confundo o buxo das camélias com um labirinto
róseo.

Que figura de flor tem o sentido mais próximo
ou coevo?
O único hino, tanto o som o dissipa,
perde-se.
Era nítido o espaço rodeado pelo cedro,
pedra corporizada,
uma síntese no estado presente
do tempo do espírito.

lido aqui

Cada voz tem o seu contraponto
num ruído natural. Cada silêncio,
no silente espaço que rodeia, por vezes,
cada coisa. À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois, no sono,
abrem-se como qualquer flor. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.

À beira do berço as bocas
percutem sobre a criança. Depois no sono
adensam-se como qualquer árvore. Sobre
os cílios da adolescente tecem frases.
Cada silêncio corporiza-se no espaço.
As coisas têm eixos e rodam
com ruídos diferentes do seu nome.
E o Sol tramonta entre vestígios,
além dos montes e vales e o mar.

E o Sol tramonta sobre as nossas casas
e os montes e vales e o nosso mar.
Quando um verso marca o lugar das coisas
elas aí ficam para sempre. O Sol
que perpassa em cumes e em cristas
nasce nas arestas serranas do nascente
e vai até ao mar em sete versos.

 

lido aqui

Estou só, na zona das metáforas
(que é todo o pensamento),
em nenhum resíduo nada exprimo
(mas sempre metaforizo).
Não sinto a solidão total
dos poemas, talvez grutas,
o mar quieto, nem silêncio.
Apenas espero o outro,
um amor esplêndido,
alheio e desejável.

 
de "Visões Mínimas"
 
lido aqui

Os povoadores da beira Douro
conhecem o pó e as pedras.
E sabem que o Universo
concebe cerejais e parras.
Vivem como vermes magníficos,
iluminados por dias soalheiros,
obscurecidos pelas invernias.

lido aqui