Fernando Assis Pacheco

Fernando Assis Pacheco nasceu em 1937, em Coimbra. A sua ascendência é galega pelo lado materno. Licenciou-se em Filologia Germânica, foi jornalista e crítico literário.
Estreou-se, em 1963, com o livro Cuidar dos Vivos. Em 1972, publicou Câu Kiên: Um Resumo, um livro com título vietnamita para escapar à censura fascista, reeditado quatro anos mais tarde como Catalabanza Quiolo e Volta.

Outros livros se seguiram, até que, em 1991, o poeta reuniu o conjunto da sua poesia, produzida ao longo de vinte e oito anos, num volume único intitulado A Musa Irregular. A sua obra conta também com algumas incursões na ficção.

Livros editados mais recentemente: Respiração Assistida (Assíro & Alvim, 2003 e 2004); Variações em Sousa (Angelus Novus – Cotovia, 2004); Memórias de um Craque (Assírio & Alvim, 2005) e A Musa Irregular (Assírio & Alvin, 2006)

Fernando Assis Pacheco morreu súbitamente, à porta de uma livraria em Lisboa, em 1995.

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Poemas

Nesse ano e mês chamaram de Lisboa
era o pai de meu pai
morrendo velozmente ao telefone

eu ouvia os gritos baterem
nas portas da cristaleira

quis chamar Deus para convencê-lo
a suspender o voo
mas já ia longe para lá de Alfeizerão (1)

espero agora que a monotonia e a chuva
tornem à minha vida

um pouco é de supor mais intrigante

(1) à velocidade soube depois
de 1.500 Mach
como um relâmpago verde

em, Variações em Sousa
Angelus Novus e Cotovia, 2004

Nesse tempo eu já lera as Bronte mas
como era um adolescente retardado
passava a noite em atrozes dilemas
que mais vale: amar, ser doutrem amado?

ainda não descobrira o simples disto
nem o essencial disto que é tão claro
se tudo no amor vem do imprevisto
deitar regras ao jogo pode sair caro

por isso eu amo e sou ou não benquisto
depende do instante bem ou mal azado
amor tem alegria, tem enfaro
o happy end é coisa dos cinemas

em, Variações em Sousa, 2004

Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!

bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p.f. o microfone
ou então tirem o país da ficha

de Respiração Assistida, 2003

Embora me escutasses nada saberás de mim
e fosses à janela

e embora olhasses não me vês que passo
e digas um adeus pequeno

e embora às vezes já sentisses náusea
e afinal te inclinas

e embora seca embora secamente
e finjo que não ligo

e embora as baças ténues luzes das
e eu por timidez sempre apagado

e embora as marés-vivas batendo
e amámos nisso o Verão

e embora lerda a caneta se apure
e tu não entendesses nada

não entendesses nada

de Respiração Assistida, 2003

 

 

 

 

Para o favorito bater o seu máximo
corre a lebre umas quantas voltas
puxando pelo andamento até que
á hora conveniente sai da pista
sem um gesto um adeus o que se diz nada
e da bancada vêm gritos
porém são para o outro que esse sim
pode ficar na história
efémera que seja dos recordes

Também eu tenho pernas
mas nunca tão possantes
e coração
mas o normal da espécie
encosto pois para deixar
passar o favorito: lá vai ele
veloz como uma seta

em Respiração Assistida, 2003

 

Ó quem me dera ter outra vez vint’anos
navegar no ignoto sem portulanos
o peito feito para os da vida enganos
era sensacional ó hermanos

quem dera o brandy com castelo
o dedo ao arrepio do pêlo
o romanticismo do desvelo
e tudo isto fingundo um grande anelo

quem dera agora uma vez mais
o rápido de Irún no cais
a solicitude quente dos pais
ai eu tirando de ouvido muitos ais

ó quem dera e outra vez viera e dera
a ruminante paciência que há na espera
o mistério lento da Primavera
o emblema desenhado pela namorada: uma hera

em Variações em Sousa, Angelus Novus - Cotovia, 2004

Eu cantei este amor sem que soubesses.
Falei de ti com as palavras mais limpas,
viajei (sem que soubesses) no teu interior.
Fiz-me degrau para pisares, mesa para comeres,
tropeçavas em mim e eu era uma sombra
ali posta para não reparares em mim.

Andei pelas praças anunciando o teu nome,
chamei-te barco, flor, incêndio, madrugada.
Em tudo o mais usei de parcimónia
a que me forçava aquele ardor exclusivo.

Hoje os versos são para entenderes.
Reparto contigo um óleo inesgotável
que trouxe escondido aceso na minha lâmpada
brilhando (sem que soubesses) por tudo o que fazias.

de "Cuidar dos vivos"

Quero voar como os anjos
quero lavar os dentes com triflúor
quero o Belinho sem o Oliveira
quero cornear o duque de Kent

quero 250 de Platão bem passados
quero a destreza do okapi
quero ir ao Douro às vindimas
quero pagar com letrasset

quero vestir de linho (e do Veiga)
quero ser primeiro no Mundial
quero pudim francês com caramelo
quero ler um cabinda em verso branco

quero um sequóia para o quarto
quero voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel Cerdan
quero a Maja Desnuda

quero-te de bicicleta
quero-te outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de bicicleta
quero o som macio que fazia na mata a tua bicicleta
 
lido aqui

A poluição dos escapes
os herbicidas
foram-vos empurrando
para fora
do Pinheiro Novo

antiga minha luz
particular
em noites doces
procuro-vos
e nada encontro
senão lixo
entre as folhas

fazeis-me
tanta falta
neste mundo escuro

 

in “Variações em Sousa”, Hiena Editora, Lisboa, 1987

Vivo com ele há anos suficientes
para poder dizer que o reconheceria
num dia de Novembro no meio da bruma
é como uma pessoa de família

adorava os pais mas tinha medo
quando zangados se punham aos gritos
e se chamavam nomes odiosos
não invento nada vi-o crescer comigo

chorava então desabaladamente
e eu com ele sentindo-nos perdidos
o coberto puxado sobre a cabeça
seria trágico se não fosse ridículo

mesmo depois a noite que urinasse
no pijama era um protesto civil
encharcou assim grande parte das Beiras
não lhe perguntem se foi feliz

em Respiração Assistida

(variações sobre um fado)

Muitas vezes te esperei, perdi a conta,
longas manhãs te esperei tremendo
no patamar dos olhos. Que me importa
que batam à porta, façam chegar
jornais, ou cartas, de amizade um pouco
- tanto pó sobre os móveis tua ausência.

Se não és tu, que me pode importar?
Alguém bate, insiste através da madeira,
que me importa que batam à porta,
a solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.
Um pássaro morto no jardim com neve.

Nada me importa; mas tu enfim me importas.
Importa, por exemplo, no sedoso
cabelo poisar estes lábios aflitos.
Por exemplo: destruir o silêncio.
Abrir certas eclusas, chover em certos campos.
Importa saber da importância
que há na simplicidade final do amor.

Comunicar esse amor. Fertilizá-lo.
"Que me importa que batam à porta..."
Sair de trás da própria porta, buscar
no amor a reconciliação com o mundo.

Longas manhãs te esperei, perdi a conta.
Ainda bem que esperei longas manhãs
e lhes perdi a conta, pois é como se
no dia em que eu abrir a porta
do teu amor tudo seja novo,
um homem uma mulher juntos pelas formosas
inexplicáveis circunstâncias da vida.

Que me importa, agora que me importas,
que batam, se não és tu, à porta.

Do beijo fica um sabor,
do sabor uma lembrança,
um vento leve, uma espuma.

Do beijo fica um sereno
olhar, o amor de coisas
minúsculas e humildes,
um pássaro que vai e vem
da nossa boca às palavras.
Do beijo fica, suprema,
a descoberta da morte.
Um vento leve, uma espuma
salgada, à flor dos lábios.

de A musa irregular

Bato no fundo,
Bato nas pedras do fundo.

Julgava tudo quieto
e vai a corda parte,
caio por aqui abaixo,
digo, até ao fundo.

Levanto os olhos: ai
aquele brando som
que me chega tão cavo;
ai, digo, e estou no fundo.

Bato, bato nas pedras.
Mexo-me pouco. Magoa
respirar.

No fundo, limos, pedras,
sons que se escapam nos...

Limos, por aqui abaixo.

in A Musa Irregular