Carlos Alberto Machado

Carlos Alberto Machado nasceu em Lisboa, em 18 de Novembro de 1954. É Licenciado em Antropologia pela FCSH/UNL (com tese sobre a morte em Portugal) e Mestre em Sociologia da Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação pelo ISCTE (com tese sobre o Teatro da Cornucópia). Tem-se dedicado desde 1969 à actividade teatral (actor, produtor, dramaturgo e encenador) e à concepção e gestão de eventos culturais. Nos últimos anos dedica-se à escrita, investigação e docência universitária.  Foi colaborador da Escola Superior de Teatro de Lisboa e actualmente é professor na Licenciatura em Estudos Teatrais da Universidade de Évora.

Publicou vários livros, de que se destaca, no ensaio: Teatro da Cornucópia: As Regras do Jogo (Prefácio de Alexandre Melo, Lisboa, frenesi, 1999); Cuidar dos Mortos, Sintra, Instituto de Sintra, 1999; no teatro: Transportes & Mudanças (Prefácio de Eugénia Vasques, Lisboa, frenesi, 2000), Três Peças em Um Acto, (Prefácio de Eugénia Vasques, Lisboa, frenesi, 2000), Os Nomes que Faltam, Porto/Lisboa (Cadernos Dramat, Nº 6, Teatro Nacional São João / Cotovia, 2001), e na poesia: Mundo de Aventuras, Évora, atægina, 2000; Ventilador, Espinho, Elefante Editores, 2000. Mito (Prefácio de Manuel de Freitas, Lisboa, & etc, 2001), antologia Poetas sem Qualidades (Lisboa, Averno, 2002), A Realidade Inclinada (Lisboa, Averno, 2003). Talismã (Lisboa, Assírio & Alvim, 2004). Registo Civil. Poesia Reunida (Assírio & Alvim, 2010), Pôr as Pernas do Lado da Cabeça e Partir (poesia, edições 50kg, 2015), Pés no Charco, (Do Lado Esquerdo, 2017)

Organizou ainda obras sobre a história do teatro em Portugal. Vive nos Açores.

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Poemas

I
Palavras
para te contar uma ausência
perdidas
palavras na desolação da ilha
palavras presas
e eu nelas.

II
Disseste há palavras forradas de silêncio
mas os homens acreditam nas palavras
com significados ou nos significados das palavras
nas falésias batidas pelo vento e pelo mar no Inverno
descobrimos vestígios de esponjas multicolores
antigos pensamentos
cedendo à força dos nossos desejos.

III
Agora que tenho o lápis na mão
paro para pensar como será a pedra
imóvel perante o desejo branco
abandono por momentos o desvario
olho o teu seio raiado de azul
a boca sôfrega que engole destinos
deixo deslizar à toa o bico do lápis
guio-me por vozes sussurradas longe
falam-me da matéria e das suas formas
a vontade desusada macula os sentidos
o meu tempo está a chegar ao fim
no papel desvendam-se mapas os rios
de sangue da minha mão incendiada.

IV
Desconheço por onde as palavras me levam
talvez pela escuridão dos açougueiros
estas palavras delidas como as carnes
corrompidas nas bancas do Mercado Velho
quero desfeiteá-las uma a uma arrancar-lhes
esperanças sonhadas embebê-las em venenos
sentidos da noite onde a sua matéria se inventa
despedaço entre os dedos uma jaca madura
na garganta o vinho da palma alivia-me
de uma aspereza antiga digo
por onde me levam as palavras
entre carreiros de dejectos
procuro a foz.

V
Datas todos os teus poemas
mas omites a hora e o local
exactos
como nos crimes
os dias as horas os locais
vão-se arrumando a desjeito a tua obra
nunca há-de ser Completa
precisas sempre de imagens novas
para a vida se descompor mais a teu gosto
o próximo passo será o da decomposição
os corpos mergulhados em ácidos novos
eis como a ideia se adapta a preceito
de uma necessária renovação da palavra.

VI
Assinaste o teu nome
em papel sufocante
impressão bem à vista
xix escudos por página
um livro repleto
de palavras amestradas
pra oferecer no Natal
ou isso ou umas peúgas.

de Ventilador, Elefante Editores, 2000

Olhamos o amor e a morte
desdobrando-se no tempo
nas rugas das suas estações
demasiado tempo mantemos
a ilusão de uma diferença
mas o tempo comprime-se
naquele momento breve
em que a nossa vontade
julga poder prescindir dele.

de poetas sem qualidades, Averno, 2002

Um dia guardei num caderno
o caderno escolar que a senhora maria
me ofereceu no primeiro dia de escola
uma palavra na verdade perdida
porque o caderno se perdeu
e a senhora maria coitada
sempre me perguntava pelo caderno
onde ela não sabia que houvera uma palavra
guardada a senhora maria envelheceu
morreu e eu percorro o mesmo caminho
esquecido já do caderno onde perdi
uma palavra cujo único valor
era o de poder ser guardada não
acontece isso com todas as palavras
e por isso são muito raras
as palavras que se oferecem
em cadernos com a eternidade garantida.

de A Realidade Inclinada, Averno, 2003

Leves sulcos na dureza da pele. Talvez palavras.
Sob as pedras negras jazem palavras. Possuem a intensidade da luz de uma estrela morta há milhões de anos.
Fica sempre qualquer coisa por dizer. Por fazer. E nunca sei a diferença entre uma e outra indecisão.

encontrado aqui

 

 

Ofício nobre
É o de escrever o mundo
E raro também já se sabe
Difícil como poucos e rude
Escrever o mundo
Escrevê-lo mesmo
Ouvindo vozes tecidas
Na contracção dos silêncios
Metafísicos e outros
Nobre ofício em desuso e por isso raro
Ou raro por ser de nobreza exercê-lo
Ou por ser raro o mundo
De cuja nobreza
Se possa escrever
Ou por isso a escrita
Substitui o mundo
Que já não se escreve.

de A Realidade Inclinada, Averno, 2003

Não sei para que lado da noite me hei-de virar
onde esconder de ti o rio de fogo das lágrimas
quase a transbordar e acendo mais um cigarro
e falo atabalhoadamente de um futuro qualquer
e suspiro de alívio porque não ouves o que digo
ou se calhar também não sabes onde te esconderes
esperamos que se ilumine o lado certo da noite
é quando se esgotam as palavras e os silêncios
e a minha mão procura a tua que a recebe
e a noite se unifica e todos os rios secam
menos um por onde navegamos
para abolir a noite.

de Talismã, Assírio & Alvim, 2004