Bénédicte Houart

Bénédicte Houart, filha de pai belga e mãe portuguesa, nasceu em Braine-le-Conte, uma pequena cidade nos arredores de Bruxelas, em 1968. Mudou-se ainda na infância para Portugal, em 1975, onde tem vivido desde então. Crescendo bilíngue, adotou a língua portuguesa por pátria, como diria Pessoa.

Seus primeiros poemas publicados, após chegarem às mãos do editor André Jorge, dono da editora portuguesa Cotovia, sairiam na sempre atenta revista Inimigo Rumor (n. 15, 2003), no período em que esta funcionava nos dois lados do Atlântico.
A estreia em livro viria então com Reconhecimento (2005), seguido de Vida: Variações (2008), Aluimentos (2009) e Vida:Variações II (2011)  todos pela editora Cotovia.
(...)
A poeta foi docente de Estética na Faculdade de Letras do Porto, mas abandonou a docência para dedicar-se à escrita e ao trabalho de tradução entre as línguas francesa e portuguesa. Bénédicte Houart vive e trabalha em Coimbra.

Ler mais: Modo de usar / Ipsilon / Poesia ilimitada / Angelus NovusDiluvio

Poemas

o elefante apodrece
no exterior do café portugal
ninguém lhe põe moedas
ninguém empoleirado
aos solavancos, ninguém

as moedas mudaram
as crianças cresceram
os adultos ganharam juízo e amealharam
para elefantes de verdade
com bosta e tudo

se não pelo teu próprio nome
por que nome responderás tu então?

***

fui aos perdidos e achados
minha senhora disse-me o polícia
sua o caraças senhora talvez
aqui não recolhemos objectos dessa natureza
tão pouco material
juraria ter ouvido comercial
vá antes à câmara municipal
serviço de saneamento básico
resíduos esgotos sarjetas
em suma, escoamentos
coisa que como podeis ler
não fiz nem farei
se ele se perdeu, compreendi afinal, foi porque quis
nunca se deve contrariar poema tão original

***

tenho um mamilo sempre erecto e
outro sempre murcho
ora bem,
a interpretação que faço do fenómeno
embora duvidando que entusiasme alguém
é a seguinte:
um pressente coisas de que o outro nem suspeita
coitado do primeiro
quando não há nada
coitado do segundo
se quiser arrebitar

in Vida: Variações, ed. Cotovia, 2008

poemas lidos aqui

com os direitos de autor
do meu primeiro livro de poesia
comprei um m&m amarelo
(amendoins cobertos de chocolate)
duvido que alguém tenha saboreado os meus poemas
com tanto alarido

com os direitos do segundo
comprei dois m&ms
fiquei abundantemente contente e
de queixo bem lambuzado
como convém

cada m&m lembrava-me o álvaro
que dizia, e passo a citar
come chocolates, pequena, e
eu, citando novamente,
comia chocolates, pequenos

com os do terceiro
que ainda não escrevi
já me cresce água na boca
reservei m&ms na mercearia
e pus a boca em pause
embora muito a contragosto

bem vejo como este poema é prosaico
as minhas desculpas
os direitos de autor não dão
para mais metáforas do que isto

(e, de resto, ele tinha razão, o álvaro
o mundo é uma gigantesca pastelaria
onde uns comem, outros vêem comer)

***

falou-me com duas pedras na mão
eu atirei-lhas de volta
por pouco não lhe rachei a cabeça
parti o vidro duma montra
ficou parecida com uma teia de aranha
chovesse, então, era uma maravilha
veio um polícia e levou-me
bem lhe expliquei a situação
visivelmente não compreendeu
que uma metáfora por vezes
tem consequências pouco legais
multou-me e aconselhou-me
a não reincidir
coisa que fiz logo de seguida

***

pus-me a escrever um poema que
fosse tal e qual uma pedra e
acertasse sempre no que
eu bem quisesse
se parti alguma coisa, pois
não faço ideia
o que garanto é que
não fui multada
até recebi direitos de autor
ainda que injustamente
a pedra era obviamente um plágio
quanto ao poema, quem sabe

in Aluimentos, Lisboa, Livros Cotovia, 2009

poemas lidos aqui e aqui

são as mulheres que
fazem chorar as cebolas
como se descascassem a própria vida
e, arredondando-se então, descobrissem
um corpo, o seu
uma vida, a sua
e, no entanto, nada que de verdade
pudessem seu chamar
ou talvez sim, mas só
aquela gota de água salpicando
um canto do avental onde
desponta uma flor de pano colorida que
ainda ontem ali não ardia

***

vestem-se as dores
nos bastidores da minha memória
esta é a puta
que estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a ingénua
não estendeu a mão
após descruzar as pernas
esta é a nostálgica
traz a mão estendida
nunca descruzou as pernas
despem-se as dores nos
bastidores da minha memória

***

liga-me à sua maneira, diz do marido
uma mulher cheia de nódoas negras
ainda ontem me ofereceu
um ramo de margaridas
foi depois desta
e levanta a blusa e aponta
para uma negra na barriga
e antes desta, mostra outra
um ramo de violetas
bem cheirosas, ainda não murcharam
vai variando nas flores para
ver se me mantém entretida
que quer que quer é a vida...

***

ó boa ó amor ó querida
ah se eu não fosse pedreiro, mas
senhor arquitecto
construía uma catedral no teu coração e
tornava-me sino nos teus ouvidos
sepultava em vida o teu corpo
para que ninguém mais
ah pedreiro sou e minhas mãos
aprenderam das pedras a resignação

***

mulher alguma é melhor do que
mulher nenhuma dizia o meu avô que morreu
esquecido num guarda-fatos
mulher alguma dispunha as bolas de naftalina e foi assim que
o meu avô foi primeiro lembrado pelas traças
tudo isto aconteceu há muito tempo mas
a alma não esqueceu
o nariz reconheceu

o ultimo poema foi publicado na revista inimigo rumor  nº15,2003, citado aqui

os outros podem ser lidos aqui

 

 

 

se ainda ontem foi hoje
hoje, porém, vai sendo e
amanhã já era
muito embora ainda não

assim são os dias
ora atrasados
ora adiantados, mas
sempre a horas

***

nós, os inconsoláveis que
perdemos a fala ainda antes de
ganharmos direito à palavra, que
sentimos tão demasiado que
ficámos para sempre calados, que
haveremos de escrever, agora

que alcançámos o direito
a morrer sem pedir desculpa, e
mortos, embora, constituiremos
a maoria que à superfície da terra
sem trégua vos derrotará

***

os sonhos que tive, tive-os
já ninguém mos tira
não deram em nada, é certo, mas
esse era o seu destino mais provável
eram lindos, se são
ainda hoje pasm-e-me o corpo de dó
perante tanta aflição

ainda hoje ainda agora ainda já

***

quando quero morrer pinto
as unhas de verniz
azul turquesa
made in china

não há nada de metafísico nisto,
pois não
pois sim

graças a deus, a acetona
adia a questão para
outro dia

***

de modo que sim
vamos reunindo
certidões certificados declarações
todas bem copiadas e conformes
assinadas seladas recomendadas
como se sofrêssemos de alzheimer desde crianças
ou, enfim, na eventualidade de tal acontecer
de qualquer modo estávamos tramados
só não o sabíamos

que a única coisa que não podíamos de todo reunir
éramos nós, me, I, and myself, together

***

dependo dos dias dizem
um dia mais e outro menos e
embora a dor nunca me abandone
a alegria também não e
embora eu já não saiba distingui-las e

embora outras coisas
poucas ou nenhumas
que um dia destes descreverei
ou muito certamente não

***

a mulher bebeu 4 finos e despiu-se
começou por descalçar-se, depois
pensou e já agora, e
entregou o corpo ao ar
jorrando da ventoinha do café
alguns riram outros lamentaram
quase todos a invejaram enquanto
ela a passos largos nuíssima se afastava
no dia em que cumpriu setenta primaveras e
todas eclodiram um tanto ou quanto subitamente
 
***
 
amoleceram-me o palato
as suas palavras, rapariga
ainda ontem meti valium álcool haldol e
mais o raio que o parta, mas nada me
pôs assim em ponto de rebuçado

***

hoje tive uma ideia na banheira, mas
por pouco tempo: infelizmente
não me apareceu no cérebro, como é habitual, mas
sim à tona da pele
de modo que a água do chuveiro a
levou ralo abaixo
dela restando apenas flocos de espuma e
outra ideia irresistível
quantas não andarão por aí mergulhadas
nos esgotos nas estações de tratamento de água
(algumas bem precisam de ser desinfectadas)
sem mencionar rios riachos ribeiros mares e
à conta de tudo isso
quantas ideias não bebemos num simples copo de água