António Salvado

António Forte Salvado nasceu a 20 de Fevereiro de 1936, em Castelo Branco. Poeta, ensaísta, antologista, crítico, editor e tradutor. Licenciado em Filologia Romântica pela Faculdade Clássica de Lisboa, foi professor e museólogo. Colaborou com vários jornais e revistas portuguesas e estrangeiras. É membro da Cátedra de Poética Fray Luís de León, da Universidade Pontifica de Salamanca.

Estreou-se como poeta em 1955 com A FLor e a Noite e conta já com mais de trinta e cinco livros publicados. Grande parte da sua obra encontra-se reunida em três volumes, editados pela A Mar Arte. Alguns dos seus poemas foram musicados por Maria João Pires e Cristina Branco. Foi distinguido com vários prémios em Portugal, Espanha e Brasil.

António Savado morreu no dia 5 de Março de 2023

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foto: JAM

Poemas

Gramática

Esperar: conjuguei todos os modos,
inventei novos tempos: à semente
afiancei futuro quando o sol
gelava a terra inteira agonizante.

Fidelidade    crença    confiança
surdiram outras vozes conjugadas,
pessoas    radicais    e desinências
e formas de sujeito incrementado.

Porém   só no vazio os atributos
arrimaram respostas, com sentido
arfado em ilusão e desencanto;

nomes incríveis afumaram sulcos
na minha face imbele arrefecida
a parolar intransitivamente.

Que marcas são …

Que marcas são depositadas
no areal do estremecer
quando o frémito    prolongado
distancia a permanecer

quando o zunido   transparente
volteia como vento solto
e repercute pelo som dentro
o que jamais afluiu morto

que pegadas no chão da bruma
cintiladas pela lembrança
conciliam assim tão juntas
a persistência com a distância

que sinais teimam aguilhoar
um horizonte asserenado
quando no peito dissipados
ferem acesos a pulsarem.

EPIGRAMAS

A conversão …

A conversão do olhar:

de surpresa em surpresa,
essas minúsculas coisas
tão ausentes
tão remotas
tão gravadas
nas pupilas do vivido …

de Certificado de Presença  (1ª ed. 1996)
poemas incluídos em Obra III, A Mar Arte, 1999

Presos à superfície do quadrante
em seis partes iguais    desigualmente
repartimos o sol    e dissonantes

acoitamos nas sombras os fragmentos
desviados    roubados:    esquecendo
a harmonia da luz sobre o quadrante.

E entristecem os campos semeados,
o ar trepida no seu aclarar,
são mais lentas as águas a correr:

à espera que no breu do pensamento
um rasgo se demova e em nós lamente
esses raios de sol que obscurecemos.

Tentar não fadigar o pensamento
com denodos que nunca serão fruto
com latejos que apertam a nascente

da ribeira na belga do futuro...
Penumbrar cercanias do desejo
que em labareda vívida serpeja

até romper a íris do olhar...
Agonizar o falso gineceu
da primavera que já foi sonhada

sem raízes na terra aves no céu...
E na certeza do fluir: ser livre,
alçando a pequenez do dia a dia.

de Castalia (1ª ed. 1996)
poemas incluídos em Obra III, A Mar Arte, 1999

BRANQUEAR A SOMBRA

Enigma

Rememoro as ausências que não tive
quando o amor a elas obrigava:
foram muitas chegadas sem partida
De comboio avião ou de navio
quantas ‘stações e quantos cais de embarque
quantos aeroportos: um desfile
de bilhetes comprados e viagens.
Estranha comunhão: amor/ausência
irmanavam em tal mesma presença
como se a dor beirasse as alegrias.
Nem sei porquê razões de tantas fugas:
levo as mão ao meu rosto, conto rugas,
mas não recordo agora o que seria.

Rio veloz

Rio veloz do meu entardecer
onde me levam tuas águas mudas?
a que mar correm no agraz murmúrio
do leito que abre fendas a cederem?

porque se calam estes lábios dúcteis
esta boca moída que pragueja
contra a cor transparente da tristeza
contra a luz frouxa que reluz inútil?

Os ramos secos tombam nos lameiros
da friagem nascente…Rio rio
do meu entardecer –foz do receio-
sinuoso caudal sem harmonia,

onde me levam tuas águas turvas?
a que mar correm    por neblinas   nuvens?

BRANQUEAR A FADIGA

Rosas

Porque hão-de fenecer
as rosas se o desejo
as pode embelecer
continuar…
Efémeras
dentro de si florescem
como perfil –na véspera-
do futuro a brilhar.
Agasalho fascínio
ancoram incertezas
e fiam o destino:
porque hão-de fenecer
elas que são caminho…

Em ti regressarão:
orvalho a resplender
nas tuas secas mãos.

Mostrador

Entre lamentos   acinzentamos horas,
os dias bafejamos de receios:
antes da tempestade   jordaneiam
os restos salvos do naufrágio   em nós.
E os ponteiros ilesos do relógio
do coração em saltos incendeiam
o cais de embarque ao mar   ou nublam leitos
de rios que não sabem onde a foz.
Assim peregrinamos   ofegantes
do ruído que ainda não fizemos
ao latejar perante a incerteza:
um jogo de surpresas   em meandros,
um esse a desatar dum outro esse,
a constrição que aperta na surdez.

 

de O Gosto de Escrever (1ª ed. 1997)
poemas incluídos em Obra III, A Mar Arte, 1999

ELEMENTOS

Palavras cruzadas

Não se nega a sombra
que a alma faz:
itinerário
fugaz e longo.

Na terra se treme,
no mar se naufraga:
verão   primavera
desencontrados.

Inverno   outono
contrariamente:
o real no sonho
do sono lento.

Quem sabe o contorno
do universo?
Pra que tombam as folhas
das árvores, os versos?

Ladeiam-se as margens
dos rios: medo
de penetrar neles,
e aí navegar.

É banal…

É banal dizer-se:
o que foi   será –
mas do que há-de ser
como assegurar-se?

Os tempos se mudam,
trocam-se vontades:
que estranho futuro
súbito passado!

Quem morrerá ontem,
morreu amanhã?
Que d’ondes p’ra ondes
cristalizarão?

SÁTIRAS E SÁTIROS

Bucolismos

Afaga os olhos pelos prados lindos:
o verão continua a primavera…
As abelhas (matreiras) e zunindo
sobre as flores pousadas   enlouquecem
o gineceu que ora se fecha   abrindo.

A doçura de mais bombardeamentos!
A beleza dos corpos pelo chão
sulcados por estilhaços! O lamento
dos semi-vivos contorcendo as mãos
como encanta a paisagem tão amena!

E a brancura dos lírios! O sossego
deste feliz (alvar) alheamento!
Ah como é bom viver longe de medos:
deixar que haja crianças pelo ventre
rasgadas   como trapos sobre esterco.

Hoje, o Inverno

a António Lourenço Marques

Hoje, o Inverno bateu à minha porta.
Olhei pela janela – seus cabelos de neve
brilhavam alinhados numa brancura enorme
e dele a compostura tinha algo de eterno.
Sempre respeitador, cumprimentei-o e disse:
“Não poderei acolher-te, bom e amável velho,
pois por certo que aqui não acharias abrigo
nesta casa de luz chamada primavera”.

Ouvi de novo algumas pancadas secas.
Ele quem batia – da cabeça aos pés molhado,
cercado pelos trovões e muitas nuvens negras
que em relâmpagos e coriscos amedrontavam.
Acenei-lhe deferente com as duas mãos
mas gritei-lhe: “Como virias aqui sentar-te
entre as árvores de fruto e os trigais a ceifar
nesta casa de calor chamada verão?”

Estremunhado, eis quando pelas frinchas da porta
soaram ruídos uivadores de ciclone,
e abri nos olhos: teimara em se não ir embora –
sem forças, esquálido, dobrado sobre si próprio.
Tirado assim sacudidamente do meu sonho,
pois era calmo o sono do meu corpo em pousio,
bradei: “Desculpa, é cedo: nada quero contigo
nesta casa de sossego chamada outono”.

de O Extenso Continente (1ª ed. 1998)
poema incluído em Obra III, A Mar Arte, 1999

até onde

Chamas. eu ouço, aqui no meu lugar
silencioso porque nada freme
na secura indelével
da solidão. De novo se chamares
gaudinarei à espera do pedido
para que siga o teu apelo em mim:
então hei-de envolver este destino
que levará a ti.
E só então me voltarei. Atenta:
é muito pouco ouvir
palavras a fluírem
sem que saiba porquê o chamamento.
Se me queres    entrega-me o segredo
da súbita vontade
e roga-me que vá
até onde encontrar-te. Com enlevo.

fragrância

Tu foste a hora alcançada
que afaguei ceifando o tempo;
minuto a minuto andando,
ânsia a nascer d’ânsia    sempre.

Súbito sinal surgindo
quando já nada alegrava
a branquejar o caminho
por onde amarrar os passos.

Sons de canção invisível
acarinhando-me o rosto
na palpitação ouvida:
sol que não teve sol-posto
e que o Amor eterniza.

Tu foste a fragrância casta
do brilho da primavera:
a rosa a desabrochar
que serena resplandece.

Que sem mágoa permanece.

de Coisas Marinhas e Terrestres; Aríon , 2003

São frutos as palavras –

e pinto no seu rosto
um tal perfume intenso
que o murmúrio da casca
na minha mesa acende
a cupidez do fogo.

de Flor Álea; ulmeiro, 2001

DISTÂNCIA

O rumor que transcorre
do natural mistério:
do fundo da corola
o perfume discreto.

Secreto flua o canto:
e como flor silente
apregoe à distância
o que dele tem dentro.

LUZES

Se alguma vez em ti olhaste a Chama,
se queimaste os teus dedos nesse brilho,
não aguardes laradas    negras cinzas.

Longe    p’ra lá do longe    mais distante
vozeiam outras luzes que matizam
as pedras    encontradas    no caminho.

FUMO

Tanto que desmaiam
na luz que declina
as sombras que pintam
o céu sempre mais.

O fumo a crescer
pela tarde fora –
fugazes prazeres
que nem sempre foram.

E o amor que foge
à voz do amor.

TUDO / NADA

Agora que não desejas
o meu desejo, que resta
das alegrias dispersas
que nenhum de nós almeja…

O labirinto confuso
não deixa nele passar…,
e de que tudo o que foi tudo
é quase nada. Ou é nada.

CRUZAR

Encheu o caudal    súbita
constante    inesperada
e repentina chuva
que nada anunciara.

Não sei como cruzar
tão encrespadas ondas –

é débil minha barca
ameaçando rombos.

de entre pedras, o verde; Palavra em Mutação, 2004

 

“ DE QUANDO EM QUANDO…”

De quando em quando habito
desprevenidamente
certa casa vazia
que me aparece à frente.

Com apertada porta,
sem nítidas janelas,
de quando em quando moro
nos amplos quartos d’ela.

Tacteio   para andar
no corredor  a esmo,
pois não sei onde aclara
luz que possa deter-me.
Se afloro uma cadeira
e nela me sentar,
d’aranhas acres teias
cobrem a almofada.

O que move o silêncio
naquele pesadelo
é o ruído apenas
de bichos a roerem.

Nem o vento se escuta
a retinir lá fora
na casa inane escura
onde eu às vezes moro.

Nesta perene angústia
porém consigo abrir
a porta para a rua
de tal casa vazia.

“POR TANTO OLHAR…”

Por tanto olhar   o que jamais eu vi,
por tanto ver   o que jamais olhei –

que aparências desvelei?
que certezas consegui?

“ RECÔNDITO…”

Recôndito   no pó   alteia o fogo.
Resta buscá-lo na centelha ardida:

na cinza descobrir   surdo   o contorno
de cauta luz que aguarda ressurgir.

de PALAVRAS PERDIDAS seguido de OITO ENCÓMIOS; Sirgo, 2004

 

(…)

Solamente la fidelidad se gravo en los pétalos muertos, las horas huyendo al tiempo, a la magia perenne circulando en los ocasos: la influencia del inútil susurro y del gesto pasivo. Fue la partida para el continente sin fronteras, para el centro brumoso del destino.

(…)

Enciendo, entonces, los libros de la biblioteca: árboles aquí y allí, como si la tierra huyese la ordenación natural de la casualidad, arroyos reducidos al mínimo caudal de agua que en ellos no corría, espigas ondulantes pero no al capricho apacible del viento, sino al brillo ansioso del calor, la inmovilidad confidente del azul del cielo – y el murmurar de las cigarras, y los pasos de regreso… Amaba deshojarme así, dialogando con la soledad de los troncos, atravesando deslumbrado gotas de sudor, de perderme deleitado en los puntos cardinales, de resplandecer en el perfume de las flores silvestres – recatado…

(…)

Tradução de A.P. Alencart

de Malva; Trilce Ediciones- Colección Fray Luís de Léon, Salamanca, 2004

Que nos trazes a não ser
lágrimas cada vez mais,
natal eterno a nascer
de outros natais…
Ligeira esperança que toca
os nossos olhos molhados
e o sangue da nossa boca,
amordaçados…

Ah bruxuleante luz
acenando ao longe em vão
e que a dor nos reproduz
em ilusão…
Ternura dum breve instante
que o próprio instante desterra,
morta no facto constante
de tanta guerra…
 
poema encontrado aqui