António Ramos Rosa

António  Ramos Rosa, poeta, crítico literário, tradutor e ensaísta, nasceu em Faro, a 17 de Outubro de 1924. Autodidacta, cedo desenvolveu interesse pela literatura lendo obras dos principais autores portugueses e estrangeiros e dando uma preferência especial aos poetas. José Régio e Fernando Pessoa marcaram-no durante a adolescência. No ano de 1945, mudou-se para Lisboa a fim de exercer a profissão de empregado comercial.

Dois anos depois volta para Faro, onde se integra nas fileiras do M. U. D. Juvenil, tendo estado preso devido a essa militância. Regressado a Lisboa, manteve o seu emprego como empregado de escritório mas também deu aulas de Português, Inglês e Francês. Paralelamente iniciou uma carreira como tradutor para a editora Europa-América. Colaborou em revistas literárias como Árvore, Seara Nova e Colóquio de Letras, entre outras. Nos anos 50 acaba por se dedicar a tempo inteiro à literatura.

Como poeta, estreou-se em 1958, na colectânea O Grito Claro. Nos seus textos, está frequentemente presente uma reflexão sobre o próprio acto da escrita e a natureza da criação poética, a questão do dizível e do indizível. A sua obra, reflecte diversas tendências, desde o subjectivismo inicial ao cultivo puramente objectivo, com elementos neo-realistas, surrealistas, neo-clássicos e neo-barrocos.

Urbano Tavares Rodrigues considerou-o como o empolgante poeta das coisas primordiais, da luz, da pedra e da água. O seu nome foi apontado como candidato ao Prémio Nobel da Literatura. Em 1976 recebeu o prémio de tradução da Fondation de Hautvilliers e em 1988 foi-lhe atribuído o Prémio Fernando Pessoa.

Faleceu em Lisboa no dia 23 de setembro de 2013. 

 

Ler mais: Insónia / Insónia / livro/ escritas / bio / blogletras

foto: Nuno Ferreira Santos

Poemas

Não alteres nada
Não comeces
Ouve o murmúrio do ovo
no lodo negro.
A boca não quer palavras
apenas quer ser o ó
da coincidência
do círculo interior
com o círculo do universo

Vi-lhe os flancos delicados 

Vi-lhe os flancos delicados
como se tocasse o nome
de um navio.
Eram sílabas talvez de um verso puro
ou a dócil matéria
firme
de uma ilha adolescente.

Entre um círculo de ramos
vi-lhe a tímida luz do rosto
e as duas pequenas luas dos seus seios
que estavam vivos e novos
no eléctrico pudor do seu desejo.

Vi-lhe tremer os lábios
como se quisesse suster a iminência
de um gesto eloquente
e ser apenas o murmúrio de uma folha
contra as cálidas palavras
que eu corria o risco de dizer.

de Os volúveis diademas

Sei que nunca soube e que nunca saberei 

Sei que nunca soube e que nunca saberei
porque  ninguém conhece o mundo e eu só vivi vivendo
como qualquer e como único Quis ser livre
apesar da violência do destino
Mas o que é a liberdade? Obscuramente procurei
o seu espaço e despi-me em terraços que davam para o mar
A liberdade era a pulsação da terra
e o esplendor da sua substância e das suas formas
Eu vi como uma figura da terra uma mulher despir-se numa praia
e vi-lhe o largo dorso branco a sua voluptuosa inclinação
Mas quem poderá manter a visão iluminada
entre  as virilhas da sombra entre as tenazes do tempo?
Mais do que saber quis ser o lume natural
que nos transcende em ébria plenitude
de respirar a imensidade em íntimo abandono
Assim só o amor e a liberdade aliviam a tenebrosa pressão
da dura e grave quilha do destino
É esse espaço no espaço em dilatação voluptuosa
que eu procurei e algumas vezes conheci
e tantas vezes foi a maré grávida de um torso
de um ser que poderia ser um deus ou uma mulher
e que eu transformei em sílabas tremendo deslumbrado
para que na espessura da terra eu fluísse e na transparência da
[água eu fosse

de Deambulações Oblíquas

As estradas leves

Um deus que brinca e que nada quer,
que sonha ou canta, é ele próprio um sonho
que na areia cintila. Fogo ou desejo,
menino que corre no vento entre estrelas verdes,
a mão ondula e quase escreve e quase dança,
e na violência azul incendeia e apaga
as estradas leves suspensas sobre o abismo.

A Palavra

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais

de Acordes

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra

poemas encontrados aqui

 


 

Uma palavra te procura
ao nível desta existência suave
dura
uma palavra não para ostentação mas para seguir na estrada
no seu ágil correr de fogo
para te abrir o dia
para te fazer mais pequeno do que o buraco
para te dar um breve crepitar
de um insecto
a fuga precipitada ou o vagaroso pêlo
o imperceptível movimento
da água na vereda
a existência ínfima
de qualquer animal
ou folha
uma partícula de poeira
ou sulco
um estalido
uma palavra como uma chama um pouco mais clara do que o dia
só levemente mais clara do que a tua mão
e escura ou parda como a estrada

de Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade,  Campo das Letras, 1999

Qual é a verdade que não nos engana
se a verdade mais verdadeira é a que mais nos engana
qual é a verdade mais sublime
se a sublimação é a mais falsa elevação
a verdade que não nos engana é a ilusão mais ilusória
a mentira mais verdadeira é a mentira mais mentirosa
a eternidade mais eterna é a eternidade do instante efémero
a do instante do amor efémero
a verdade mais importante é a da insignificância
a verdade inerente à passagem do tempo
é a luz que não se separa da sombra
a claridade mais pura e mais nua
é a de um ventre de mulher entre cabelos negros
o que vale a pena ganhar é o que se perde
na grande fenda obscura
e vermelha
onde a delícia do amor morre
onde nada se perde na consumação da perda

10 de Março de 2001

Escrevo-te com o fogo e a água

Escrevo-te com o fogo e a água. Escrevo-te
no sossego feliz das folhas e das sombras.
Escrevo-te quando o saber é sabor, quando tudo é surpresa.
Vejo o rosto escuro da terra em confins indolentes.
Estou perto e estou longe num planeta imenso e verde.

O que procuro é um coração pequeno, um animal
perfeito e suave. Um fruto repousado,
uma forma que não nasceu, um torso ensanguentado,
uma pergunta que não ouvi no inanimado,
um arabesco talvez de mágica leveza.

Quem ignora o sulco entre a sombra e a espuma?
Apaga-se um planeta, acende-se uma árvore.
As colinas inclinam-se na embriaguez dos barcos.
O vento abriu-me os olhos, vi a folhagem do céu,
o grande sopro imóvel da primavera efémera.

de Volante Verde , 1986

Nascimento último

Como se não tivesse substância e de membros apagados.
Desejaria enrolar-me numa folha e dormir na sombra.
E germinar no sono, germinar na árvore.
Tudo acabaria na noite, lentamente, sob uma chuva densa.
Tudo acabaria pelo mais alto desejo num sorriso de nada.
No encontro e no abandono, na última nudez,
respiraria ao ritmo do vento, na relação mais viva.
Seria de novo o gérmen que fui, o rosto indivisível.
E ébrias as palavras diriam o vinho e a argila
e o repouso do ser no ser, os seus obscuros terraços.
Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.

de No Calcanhar do Vento, 1987
em Antologia Poética, Selecção de Ana Paula Coutinho Mendes

Não desisti de habitar a arca azul

Não desisti de habitar a arca azul
do antiquíssimo sossego do universo.
A minha ascendência é o sol e uma montanha verde
e a lisa ondulação do mar unânime.
Há novecentas mil nebulosas espirais
mas só o teu corpo é um arbusto que sangra
e tem lábios eléctricos e perfuma as paredes.
Aos confins tranquilos entre ilhas mar e montes
vou buscar o veludo e o ouro da nostalgia.
Deponho a minha cabeça frágil sobre as mãos
de uma mulher de onde a chuva jorra pelos poros.
Ó nascente clara e mais ardente do que o sangue,
sorvo o cálice do teu sexo de orquídea incandescente!
A minha vida é uma lenta pulsação
sob o grande vinho da sombra, sob o sono do sol.
Há bois lentos e profundos no meu corpo
de um outono compacto e negro como um século.
Com simultâneas estrelas nas têmporas e nas mãos
a deusa da noite, sonâmbula, desliza.
Ao rumor da folhagem e da areia
escrevo o teu odor de sangue, a tua livre arquitectura.
Prisioneiro de longínquas raízes
ergo sobre a minha ferida uma torre vertical.
Vislumbro uma luz incompreensível
sobre os campos áridos das semanas.
Elevo o canto profundo do meu corpo
sob o arco das tuas pernas deslumbrantes.
Escrevo como se escrevesse com os meus pulmões
ou como se tocasse os teus joelhos planetários
ou adormecesse languidamente no teu sexo.

de Três,1975

Poema de Um Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só.

Uma Voz na Pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

Não posso adiar o amor
para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque
na garganta
ainda que o ódio estale
e crepite e arda
sol montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não, não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese
séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore,
não posso  adiar
para outro século
minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de
libertação
Não posso adiar o coração

de Viagem através de Uma Nebulosa, 1960

O espaço do olhar é tão claro e aberto
que nós estamos no mundo antes de o pensarmos
e nada nele indica que exista um outro lado
de sombras incertas de silêncios abismais
Vivemos no seio da luz onde o inteiro vibra
com a sua evidência de claro planeta
e ainda que divididos vivemos no seu espaço uno
porque é o único em que podemos respirar
As nossas sombras não nos acolhem como folhas
envolvendo o fruto o nosso desamparo vem de mais fundo
e nele não podemos manter-nos temos de ascender
ao móvel girassol do nosso olhar
ainda que seja só para ver a fulva monotonia do deserto
A vocação da pupila é o imediato universal
quer caminhemos numa rua quer viajemos pelo mundo
quer ainda diante duma página em branco
A palavra pode anteceder a visão mas também ela é atraída
para o luminoso espaço em que desenha os seus contornos
Como poderia a palavra cingir o que lhe foge
sem a superfície de um solo iluminado?

poema inédito publicado no PúblicoSuplemento Mil Folhas de 23/10/2004

Vejo o teu rosto quotidiano
como se a penumbra
tivesse olhos
ou como se as raízes pudessem ver
através da sombra

Estou no húmus da casa
no húmus do silêncio
e vejo através das vértebras
de uma luz subterrânea
o teu rosto de terra

Há sempre muros e muros
e o nevoeiro dos dias
mas tu és uma chama
sobre a mesa posta

Vem a noite e as serpentes
envolvem as lâmpadas
e reduzem o espaço
Cada um procura
na palma das mãos
os grãos verdes do mar
O monstro vago da noite
desfoca o nosso olhar
e os joelhos vacilam
O teu rosto persiste
como se o teu torso fosse
o tronco de uma árvore

de O Teu Rosto, 1994
em António Ramos Rosa : Poemas escolhidos, Contexto Editora, 1997