Amadeu Baptista

Amadeu Baptista, poeta e tradutor, nasceu no Porto a 6 de Maio de 1953. Frequentou a Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É membro da Associação Portuguesa de Escritores. No ano de 1994 integrou o Júri do Grande Prémio de Poesia APE/CTT, relativo à edição portuguesa de poesia de 1993. Tem colaboração dispersa em jornais e revistas em Portugal, Espanha, França, Brail, Uruguai, Costa Rica, EUA e México.

Fundou e co-dirigiu (com Álvaro Holstein Ferreira e Vergílio Alberto Vieira) a publicação Babel – fascículos de poesia, e co-organizou (com Egito Gonçalves) a revista Orfeu 4.Tem poemas seus  traduzidos para Castelhano, Italiano, Inglês, Francês e Romeno. É divulgador em Portugal de poetas espanhóis e hispano-americanos, entre os quais destaca: Amparo Amorós, Ángeles Dalúa, António Beneyto, António Gamoneda, Juana Castro.

Está representado em diversas Antologias e Livros Colectivos de Poesia. Obras publicadas: As Passagens Secretas, Fenda Edições, Coimbra, 1982; Green Man & French Horn (in A Jovem Poesia Portuguesa /2, em colaboração com Helga Moreira e Jorge Velhote), Limiar, Porto, 1985; Maçã, Limiar, Porto, 1986; Kefiah, Centro Cultural do Alto Minho, Viana do Castelo, 1988; O Sossego da Luz, Limiar, Porto, 1989; Desenho de Luzes, Ed. Amigos de Azertyuiop, A Corunha, Galiza, Espanha, 1997 (edição galaico-portuguesa); Arte do Regresso, Porto, Campo das Letras, 1999; e O Claro Interior (com ilustrações de Rogério Ribeiro), Íman edições, 2004

ler mais: alfarrabio / a fabrica da preguiça 

Poemas

a afeição às sombras é como o tempo
em que a vigília se prolonga
algo exaspera intimamente e desce ao corpo
para aproximar a vida ao itinerário
da pedra com o rastilho
que o homem há-de acender
para que a chuva de estrelas inicie
a suavidade e o acolhimento
e a amazona venha a esta praia
onde as marés se enchem de fascínio
e o silêncio pulsa carregado de emoções
que a memória envolve em bruma e em brancura
para ressuscitar os ecos e na luz
despertar as palavras da solidão do mundo -

de O Claro Interior, com ilustrações de Rogério Ribeiro, Íman edições, 2004

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Entre as mil e seiscentas disponíveis
escolhí esta manhã a pedra para o meu trabalho,
a única com o mistério de um coração a pulsar-lhe
nas entranhas e a que só poderei responder com a dimensão
do silêncio. Quando posicionar o escropo
sei que irei ver a luz jorrar desse primeiro orifício,
depois a treva incontornável, mais tarde
uma espécie desconhecida de linguagem que me avassalará
e atingirá também o silêncio
o meu coração. Por muito que me perscrute a memória,
por mais evocações que procure na alma, sei bem como tinge
as mãos
este inefável sentimento de abandono, esta voz
silenciada que sinto na cabeça
como um puro sinal de asfixia, uma marca
áugure de nascença. O que resultar da pedra,
tal como o pó regressa ao pó, hei-de ser eu a morrer
pelo tempo dos tempos, como algo pensado para além de mim
a agir sobre o que fui quando já não existir eu próprio, a pedra,
a linguagem com que comuniquei com que os talvez
não entendessem
que foi o amor que fez esculpir a vida
nesta pedra, que só aparentemente está no coração
que pulsa.

encontrado aqui

Com um só fósforo ilumino o infinito.
E muitas vezes o infinito é algo
muito próximo, um livro, uma chávena
de chá, o teu rosto escondido
na penumbra, o retrato de alguém desconhecido
que de uma praça, acena,
um fio de tabaco, um monograma
num lenço muito branco.
O infinito o mais das vezes é
não mais do que o que toca o coração,
uma leve poeira pelo ar, um ponto fixo
que a mão ousa tocar, esta chama
que de repente amplia a escuridão
e me torna visível a quem passa
e no clarão acende o seu cigarro.

publicado na revista aguasfurtadas 4 + 5

O armário onde guardo os botões cor-de-rosa
fica neste lado da casa, coloquei-os
dentro de um boião azul e sempre que os vou procurar
encontro coisas de outra cor, quer dizer,
encontro botões com outras tonalidades
que nada têm a ver com o azul ou com a cor
rosa, mas antes com a cor que tem um prado
meia hora antes de amanhecer, ou com um rio
que se esqueceu de adormecer depois da hora combinada,
exactamente dois minutos antes da meia-noite.
Por esta razão a minha mãe desistiu de me ensinar os tons
do arco-íris e diz que sempre que eu quiser aprender as cores
devo ir procurar no relógio de pulso do meu pai
que, como toda a gente sabe,
nunca se atrasa nem nunca se adianta.

publicado na revista aguasfurtadas 4+5

ORAÇÃO NO HORTO

Bem-aventurado seja o inferno que há na terra
e o trabalho nos campos cada dia,
e o gado nos redis que nos aguarda,
e as aves que chegan dos confins
dos desconhecidos lugares que manteremos
na frágil proximidade dos segredos. A inocência
inútil seja bem-aventurada
quando além do caminho só existe
um outro abismo, e água, e nada mais.
Bem-aventurada seja a treva infinda,
este travo na língua a desespero,
este rastro de fumo que nos chega
dos confins do deserto e seus oásis.
Glorificada seja essa cabeza
que insidiosamente foi degolada
e o poder do Pai não protegeu
da essência da infâmia e do esquecimento.
Sob o silêncio outro silêncio arde.
Glorificado seja o que comigo chora.

PRISÃO

Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.
Seque a figueira e o fruto prometido,
estaque o vento para todo o sempre,
não seja nunca mais o mar o mar.
Recebo a mão sobre o ombro que aqui me vem
prender como a mão de um amigo.

CEIA EM EMAÚS

Não se sequestra o mar, como se
sequestra o céu? Línguas de fogo
erguem-se sobre as cabeças, esta ceia
sacia-nos, como se sequestra a fome do mundo?
Esta é a noite ilegítima, em que a insónia contempla
uma culpa sem tempo, esta culpa perdida.
Como se sequestra a luz que há no espírito, a dor
pela treva irremissível?

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AS PASSAGENS SECRETAS (fragmentos)

A navegabilidade é o ofício das mãos, embarcamos em ti,
germinas
e o mel progride pelas sombras do quarto, a roupa nua, o fogo
circular
que principia nas nucas –

argila, brisa, pálpebras que soluçam, cortam a neblina, gastam
a angústia até ao último centavo, a frescura dos lenços, o aroma
dos pássaros vermelhos, os pátios e as algas que nos pedem
auxílio desde a areia,

vê:

acenam-nos desesperadamente com refúgios.

Corremos pela praia com a nossa nudez porque deixamos algures
os mantimentos escassos de que a nossa tristeza se mantém.

Corremos pela praia e as mãos deslizam para um cobertor lavado
pelo mar,
o oiro magnífico, a distância
mais curta entre dois pontos. É noite,

e corremos porque o tacto é uma promessa, casam-se os búzios,
conchas
azuis habitam o olhar, barcos,

homens que bebem a água como se fosse terra, pequeninas
sementes,
dissumulam a sede a que deus nos condena.

A respiração avança através de um gladíolo, as mãos
encrespam-se de silêncio, minerais dolorosos asfixiam a noite,
riscam
como se fossem fósforos as sardas do teu rosto. Vens

com os dentes branquíssimos, o peito aberto aos ninhos, barco
que balouça na névoa, é tecto, casa, cama. Dar-te-ia

a cereja do bolo, a serenidade do mar, uma praia de colmo,

se os dias não fossem transitivos e os objectos íntimos, ó ave,
insuportáveis.

Setembro principia com cúmulos no céu, jogos de água,
o inquietante
desenho de uma víbora projectado no chão. Respondes

com perguntas às perguntas que faço, reacendes a sede, fumas
nervosamente.
A esperança é um ídolo, somos imolados, a espessura do sangue
acaba por dizer-nos que é demasiado. Que cães

estabelecem contra nós a aliança feroz que nos persegue?
Que estrela risca
os limites possíveis dos nossos pés precários? Que cortejo
é este?

Ainda que a preservação seja um estímulo, e chova, confessamos
ou não
que temos medo?

METAMORFOSE E MASSACRE (fragmentos)

Os dedos demoram-se na sombra.

Suspendem-se no sangue poeiras germinantes, turvos
fluidos, fios translúcidos de sal e deslumbramento
que detêm o silêncio e estancam a luz.

Desvenda o coração o que o coração oculta. 


A sombra revela o significado oculto desse ritual que o fogo
acumula no obscuro sinal de uma ruína sem nome.

Chamam-lhe escrita, outros preferem nomeá-la como infinito
exercício de adivinhação, dizem-na outros arte,
enigma redentor a que se entregam os que crescem
para o abismo e perturbam as trevas.

Recompensa ou castigo, eis o que obstina.

Por essas horas as mulheres arrastam pelas praias o espesso
manto da escuridão, convocam os mortos às encruzilhadas,
libertam trémulas luzes de obscuros papéis e sombras
calcinadas.

Corre implacável o curso da impaciência sob a ofendida
serenidade do poema

de O Sossego da Luz

PAINEL PARA ROSALIA DE CASTRO

É um frio tremendo.
A água gela nas torneiras, a solidão
cresce com uma unha, uma sombra
atrai todas as camisas de silêncio, arde, é uma noite
encerrando os perigos da perdição, os ferros agudíssimos
do silêncio.

É um frio tremendo.
Perde-se o caminho de casa, a luz extingue-se,
pergunta-se pelo sangue e o sangue não responde, o sangue
perde-se aos borbotões na vida, não há caminho, não há
regresso, a sereia canta
no denso nevoeiro, mas não há esperança, a tempestade
é o único lugar, o único lençol, a voz velocíssima
entregando-nos sem rendição, entregando-nos.

Como uma agulha fecha-nos os lábios, ata-nos
as mãos, como uma agulha de silêncio, feroz, terrível,
cose-nos
contra as paredes e os olhos saltam, saltam, é um frio tremendo
onde tudo arde,
arde antiquíssimo, flecha no coração, solidão
descendo o braço, descendo devagar, espraiando-se

na terrível superfície do silêncio.

SITUAÇÃO DA INDÚSTRIA PORTUGUESA NO INÍCIO DA DÉCADA

Às vezes, quando a pressão das entregas aumenta,
ajudo a carregar os camiões,
mas o envenenamento é o fim-de-linha, onde cada tarefa
é como a execução de um castigo. Pagam-me mal,
mal tenho tempo para comer um pão ao meio-dia, sinto
que a força
dos meus dezasseis anos não corresponde ao parco
salário que me devem. De aqui a uns anos, irei cumprir
o serviço militar, perderei a precaridade do emprego, ainda ontem
uma das mulheres quase ficou sem um braço no sector
velocíssimo
da transformação. Servir a pátria é, começo a não ter dúvidas,
sofrer esta amargura endémica, a pobreza a alcançar-nos
em pouco mais de um passo, os olhos corrompidos
pelo vinagre da luminosidade, a consciência das coisas
ilegítima na compreensão da linguagem, eu calo-me,
os outros falam por mim. Olho em volta, sinto
inexplicavelmente a natureza fortuita das coisas, embrenho-me
aos domingos na multidão triunfante, gasto em vinho a humilde
alegria
que as pequenas vitórias me consentem, tremem-me
as mãos só de pensar que existe amor no mundo, algures,
longinquamente,
no infinito da nossa ignorância. Gostava de saber o nome
deste usufruto da terra, quais as cumplicidades
que tornam tudo isto possível, em que lugar de fogo e de agrura
o rosto corresponderá ao rosto e o silêncio
a esta forma de fome secular. Tudo é assim
liminarmente sujo, carregado de sangue e de arestas, e duvido
das proféticas sentenças sobre a vida que me oferecem, sem que
as contemple, ao menos um instante. Ao fim da noite,
aconchego-me ao sol da praia predilecta do meu coração,
tudo me dói,
é um lençol de luz e solidão o que recebo, creio na morte
como única solução, maldito quem por minha vez alguma vez
pecou
sem que ratificasse a estranha recompensa de ter aberto
uma passagem para nenhum lugar.
Agora estou aqui e não posso pensar, uma outra carga
chama-me,
obedeço cegamente ao encarregado geral, ninguém suspeita
mas tenho dentro de mim uma indústria onde ninguém produz
porque não vale a pena.

Uma troca simples de mãos para que a melodia vingue
no andamento em que nos reconhecemos.
Uma fracção de tempo, um disparo
para que se entreteçam as pedras, os blocos de fogo.

Hoje disponho o mar ante os teus olhos, a tempestade,
a crueza sistemática das coisas, essa chuva que arde
neste efémero instante
que corta a costa, a barra, o farol.

De onde venho? Correspondo a que uivo
nesta solidão entre o abismo e coisa nenhuma?

 

lido aqui

De anjos falo – os seres
que por aqui transitam
entre a recepção e a psiquitria
e durante horas se enredam em novelos
onde as cores misturadas ampliam
os berros e as carícias sob as sombras.

Os seres que se masturbam
na solidão do mundo e sem lágrimas
rebentam com o peito contra as grades, fulminados
da azáfama dos pássaros nos cabelos
e a ausente presença de Deus
sobre os ombros

De anjos falo – no aterrador silêncio
perscruto-os em busca do refúgio
que não pode encontrar-se neste tempo
em que a vertigem fere as asas
imortais dos seres proscritos.

em Poesia Digital- 7 poetas dos Anos 80, Campo das Letras, 2002