Alexandre O'Neill

(1924 - 1986)

Poeta português, descendente de irlandeses. Nasceu e morreu em Lisboa. Autodidacta, fez os estudos liceais, frequentou a Escola Náutica, trabalhou na Previdência, no ramo dos seguros, nas bibliotecas itinerantes da Fundação Gulbenkian, e foi técnico de publicidade. Em 1948 surgem as primeiras manifestações públicas de interesse pelo fenómeno poético. Foi um dos fundadores do Movimento Surrealista de Lisboa.

O'Neill (Alexandre), moreno português, / cabelo asa de corvo; da angústia da cara, / nariguete que sobrepunha de través/ a ferida desdenhosa e não cicatrizada. / Se a visagem de tal sujeito é o que vês / ( omita-se o olho triste e a testa iluminada ) / o retrato moral também tem os seus quês / ( aqui, uma pequena frase censurada...) /No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!) / e tem a veleidade de o saber fazer / (pois amor não há feito) das maneiras mil / que são a semovente estátua do prazer. / Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se / do que neste soneto sobre si mesmo disse...

"Auto-Retrato"

deTomai lá do O'Neill - uma antologia, Círculo de Leitores, 1986

Ler mais:

Wikipedia / página quase pessoalinsónia / arlindo-correia

 

A não perder:

Maria Antónia Oliveira, Alexandre O'Neill - Uma biografia literária, Dom Quixote, 200

Poemas

A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúrio
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça.

 

de Tomai lá do O'Neill- uma antologia, Círculo de Leitores, 1986

1
Não te ataques com os atacadores dos outros.

Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção.
O mesmo deves fazer com os açaimos.

E com os botões.         

2
Não te candidates, nem te demitas. Assiste.
Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira.
Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia.

3
Tira as rodas ao peixe congelado,
mas sempre na tua mão.

Depois, faz um berreiro.
Quando tiveres bastante gente à tua volta,
descongela a posta e oferece um bocado a cada um.

4
Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre
um caixote com serradura à tua espera.
Pode haver. Se houver, melhor...

Esta deve ser a tua filosofia.

5
Tudo tem os seus trâmites, meu filho!
Não faças brincos de cerejas
sem te darem, primeiro, as orelhas.

Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia.

6
Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que
te puseram em cima da cabeça?
Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da.

É provável que te sintas logo muito melhor.

Sai, então, de baixo da pedra.

7
Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra.
Poderias atrapalhar os trabalhos.
Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

Mas dá sempre um «Bom dia!» ao pessoal do estaleiro.
Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa.

8
Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre
com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo
a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia.
Oxalá o consigas!

9
Tens um glorioso passado futurível,
mas não fiques de colher suspensa,
que a sopa arrefece.

10
Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem
de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes.
A criação literária não frequenta o guarda-roupa,
muito menos quando a roupa tem gente dentro.

11
Resume todas estas sentenças delirantes numa única
sentença:
Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.

de Poesias Completas, Assírio & ALvim, 2000

 

 

Se eu pudesse dizer-te: - senta aqui
nos meus joelhos, deixa-me alisar-te,
ó amável bichinho, o pêlo fino;
depois, a contra-pêlo, provocar-te!
Se eu pudesse juntar no mesmo fio
(infinito colar!) cada arrepio
que aos viajeiros comprazidos dedos
fizesse descobrir novos enredos!
Se eu pudesse fechar-te nesta mão,
tecedeira fiel de tantas linhas,
de tanto enredo imaginário, vão,
e incitar alguém – Vê se adivinhas…
Então um fértil jogo amor seria.
Não este descerrar a mão vazia!

A uma luz perigosa como água
De sonho e assalto
Subindo ao teu corpo real
Recordo-te
E és a mesma
Ternura quase impossível
De suportar

Por isso fecho os olhos

(O amor faz-me recuperar incessantemente o poder da
provocação. É assim que te faço arder triunfalmente
onde e quando quero. Basta-me fechar os olhos)

Por isso fecho os olhos
E convido a noite para a minha cama
Convido-a a tornar-se tocante
Familiar concreta
Como um corpo decifrado de mulher

E sob a forma desejada
A noite deita-se comigo
E é a tua ausência
Nua nos meus braços

Experimento um grito
Contra o teu silêncio

Experimento um silêncio

Entro e saio
De mãos pálidas nos bolsos

Assobio às pequenas esperanças
Que vêm lamber-me os dedos

Perco-me no teu retrato
Horas seguidas

E ao trote do ciúme deito contas
Deito contas à vida.

de Tomai lá do O'Neill- uma antologia, Círculo de Leitores, 1986

Nos teus olhos altamente perigosos 
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz dos ombros pura e a sombra 
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo 
à roda em que apodreço 
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira 
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta pequena dor à portuguesa 
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces 
esta roda de náusea em que giramos 
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio 
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti.

de Tomai lá do O'Neill- uma antologia, Círculo de Leitores, 1986

 

O respeitoso membro de azevedo e silva
nunca perpenetrou nas intenções de elisa
que eram as melhores. Assim tudo ficou
em balbúrdias de língua cabriolas de mão.

Assim tudo ficou até que não.

Azevedo e silva ao volante do mini
vê a elisa a ultrapassá-lo alguns anos depois
e pensa pensa com os seus travões
Ah cabra eram tão puras as minhas intenções

E a elisa passa rindo dentadura aos clarões.

de Tomai lá do O'Neill- uma antologia, Círculo de Leitores, 1986

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora
não querer.

(-Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)

Fala a sério e fala no gozo
Fá-la p’la calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro

Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão

Fala à miúda mas fá-la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe

Fala franciú fala béu-béu

Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância muita e devagar.

Com que então, coração,
poesia-aflição!
Antes poesia-cão
que é melhor posição.

Já que não és capaz
dos efes e dos erres
dessa soletre mão
que é a que preferes,

meu tolo desidério,
talvez seja mais sério
não te tomares a sério:
reduz-te ao impropério.

de Poesias Completas
no Poemário da Assírio & Alvim, 24-11-05

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes

Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.  

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.  

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...  

de Poesias Completas, Assírio & Alvim, 2000

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela !)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

*

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos

Sim
a ratos
 
 
Abandono Vigiado (1960)

Com o silêncio do punhal num peito,
O silêncio do sangue a converter
Em fio breve o coração desfeito
Que nas pedras acaba de morrer,

Vive em mim o teu nome, tão perfeito
Que mais ninguém o pode conhecer!
É a morte que vivo e não aceito;
É a vida que espero não perder.

Viver a vida e não viver a morte;
Procurar noutros olhos a medida,
Vencer o tempo, dominar a sorte,
Atraiçoar a morte com a vida!

Depois morrer de coração aberto
E no sangue o teu nome já liberto…

 

Animais doentes as palavras 
Também elas 
Vespas formigas cabras 
De trote difícil e miúdo 
Gafanhotos alerta 
Pombas vomitadas pelo azul 
Bichos de conta bichos que fazem de conta 
Pequeníssimas pulgas uma sílaba só 
Lagartos melancólicos 
Estúpidas galinhas corriqueiras 
Tudo tão doente tão difícil 
De manejar de lançar de provocar 
De reunir 
De fazer viver

Ou então as orgulhosas 
Palavras raras 
Plumas de cores incandescentes 
Altos gritos no aviário 
E o branco sem uso 
Imaculado 
De certas aves da solidão 
  
Para dizer 
Queria palavras tão reais como chamas 
E tão precárias 
Palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte 
No discurso de fogo
Logo extintas na combustão das próximas 
Palavras que não esperassem 
Em sal ou em diamante 
O minuto ridículo precioso raro 
De sangrar a luz a gota de veneno 
Cativa das entranhas ociosas. 

 

já não é hoje ?
não é aquioje?

já foi ontem?
será amanhã?

já quandonde foi?
quandonde será?

eu queria um jàzinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.

Dá-nos os passos os teus passos
de manhã triunfal de cidade à solta
os gestos que devemos ter
quando a alegria descobrir os dedos
em que possa viver toda a vertigem
que trouxer da noite
os primeiros dedos do sonho
do teu sonho nosso sonho mantido
mesmo no mais íntimo abandono
mesmo contra as portas que sobre nós:
em silêncio e noite
em venenosa ternura
em murmúrio e reza
se fecharam já
mesmo contra os dias vorazes
que por todos os lados nos assaltam
e consomem
mesmo contra o descanso eterno
a viagem fácil
com que nos ameaçam vigiando
todo o percurso do nosso sono
interminável sono coração emparedado
no muro cruel da vida
desta que vivemos que morremos
assim esperando
assim sonhando
sonhando mesmo quando o sonho
ignorado recua até ao mais íntimo de cada um de nós
e é o gemido sem boca
a precária luz que nem aos olhos chega

Não digas o teu nome: ele é Esperança
vai até aos que sofrem sozinhos
à margem dos dias
e é a palavra que não escrevem
sobre as quatro paredes do tempo
o admirável silêncio que os defende
ou o sorriso o gesto a lágrima
que deixam nas mãos fiéis

Não digas o teu nome: quem o não sabe
quem não sabe o teu nome de fogo
quem o não viu entrar na sua noite
de pobre animal doente
e tomar conta dela
mesmo só pelo espaço de um sonho

O teu nome
até os objectos o sabem
quando nos pedem um uso diferente
os objectos tão gastos tão cansados
da circulação absurda a que os obrigam

As coisas também gritam por ti

E as cidades as cidades que morreram
na mesma curva exemplar do tempo
estão hoje em ti são hoje o teu nome
levantam-se contigo na vertigem
das ruas no tumulto das praças
na espera guerrilheira em que perfilas
o teu próprio sono

*

Nesta luz quase louca
que se prende aos telhados
às árvores aos cabelos das mulheres
aos olhos mais sombrios
falamos de ti do teu alto exemplo
e é com intimidade que o fazemos
falamos de ti como se fosses
a árvore mais luminosa
ou a mulher mais bela mais humana
que passasse por nós com os olhos da vertigem
arrastando toda a luz consigo

 

Cadernos de poesia, Campo das Letras, 2004
Reprodução fac-similada dirigida por:
Luís Adriano Carlos; Joana Matos Frias

 

Ah
onde estão os relógios que nos davam
o tempo generoso
os dedos virtuosos os pezinhos
musicais do tempo
as salas onde o luxo abria as asas
e voava de cadeira em cadeira
de sorriso em sorriso
até cair exausto mas feliz
na almofada muito azul do sono

Onde está o amor a sublime
rosa que os amantes desfolhavam
tão alheios a tudo raptados
pela mão aristocrática do tempo
o amor feito nos braços no regaço
de um tempo fácil
perdulário
vosso

Hoje não é fácil o tempo
já não é vosso o tempo
viajantes do sonho que divide
doces irmãos da rosa
colunas do templo do Imóvel
prudentes amigos da vertigem
deliciados poetas duma angústia
sem vísceras reais
já não é vosso o tempo.

Noivas do invisível
não é vosso o tempo
Relógios do eterno
não é vosso o tempo

*

Que torpe compromisso necessário
o das palavras comigo
quando quero dizê-las
e dizer-te
Animais doentes as palavras
também elas
vespas formigas cabras
de trote difícil e miúdo
gafanhotos alerta
pombas vomitadas pelo azul
bichos de conta bichos que fazem de conta
pequeníssimas pulgas uma sílaba só
lagartos melancólicos
estúpidas galinhas corriqueiras
tudo tão doente tão difícil
de manejar de lançar de provocar
de reunir
de fazer viver
Ou então as orgulhosas
palavras raras
plumas de cores incandescentes
altos gritos no aviário
e o branco sem uso
imaculado
de certas aves da solidão
Para dizer-te
queria palavras tão reais como chamas
e tão precárias
palavras que vivessem só o tempo de dizer a sua parte
no discurso de fogo
logo extintas na combustão das próximas
palavras que não esperassem
em sal ou em diamante
o minuto ridículo precioso raro
de sangrar a luz a gota de veneno
cativa das entranhas ociosas
Queria palavras
imagens que ferissem de mortal surpresa
os corações que há tanto tempo esperam
um outro desenlace

Impossível

Impossível cantar-te
como cantei o amor adolescente
colorindo de ingenuidade
paisagens e figuras reduzindo-o
à mesma atmosfera rarefeita
do sonho sem percurso no real
Impossível tomar o íngreme caminho
da aventura mental
ou imaginar-te pelo fio estéril
da solitária imaginação

Tão-pouco desenhar-te como estrela
neste céu infame
dizer-te em linguagem de jornal
ou levar-te à emoção dos outros
pela voz contrafeita da poesia

Impossível

Impossível não tentar dizer-te
com as poucas palavras que nos ficam
da usura dos dias
do grotesco discurso que escutamos
proferimos
transidos de sonho no ramal do tempo
onde estamos como ervas
pedrinhas
coisas perfeitamente inúteis
pequenas conversas de ferrugem de musgo
queixas
questiúnculas
arrotos comoventes

*

Mas de repente voltas
numa dor de esperança sem razão de ser

Da sua indiferença
agressivamente as coisas saem
Sentimo-nos cercados
ameaçados pelas coisas
e agora lamentamos o tempo perdido
a dispô-Ias a nosso favor

Porque é tempo de romper com tudo isto
é tempo de unir no mesmo gesto
o real e o sonho
é tempo de libertar as imagens as palavras
das minas do sonho a que descemos
mineiros sonâmbulos da imaginação

É tempo de acordar nas trevas do real
na desolada promessa
do dia verdadeiro

 

Neste espaço a si próprio condenado
Dum momento para o outro pode entrar
Um pássaro que levante o céu
E sustente o olhar.

...

Com a tristeza acender a alegria
Com a miséria atear a felicidade
E no céu inocente da visão
Fazer pulsar um pássaro por vir
Fazer voar um novo coração.

Que queriam fazer de mim?

Uma palavra, um gemido obsceno,
Uma noite sem nenhuma saída,
Um coração que mal pudesse
Defender-se da morte ,
Uma vírgula trémula de medo
Num requerimento azul, azul,
Uma noite passada num bordel
Parecido com a vida , resumindo
Brutalmente a vida!

A chave dos sonhos , o segredo
Da felicidade, as mil e uma
Noites de solidão e medo,
A batata cozida do dia-a-dia,
O muscular fim-de-semana,
As sardinhas dormindo,
Decapitadas , no azeite,
O amor feito e desfeito
Como uma cama
E ao fundo - o mar ...

Mas defendi-me e agora escrevo
Furiosamente, agora escrevo
Para alguém:

Lembras-te meu amor, dos passeios que demos
Pela cidade? Dos dias que passámos
Nos braços da cidade?
Coleccionamos gente, rostos simples, frases
De nenhum valor para além do mistério
Também simples do nosso amor.
Inventámos destinos, cruzámos vidas
Feitas de compacta vontade ,
De dura necessidade, rostos frios
Possuídos por uma ausência atroz,
Corpos extenuados mas sem nenhum sono para dormir ,
Olhos já sem angústia, sem esperança, sem qualquer
Pobre resto de vida!
Seguimos a alegria das crianças, agressiva
Como carvão riscando uma parede,
Aprendemos a rir ( oh! que vergonha!...)
Com a gente " ordinária", e calados
Descemos até ao rio - e ali ficámos
A ver !

 

 

 

 


 

O amor continua muito alto,
Muito acima, muito fora
Da vida, muito raro
E difícil : maravilhoso
Quando devia ser fiel,
Fiel em cada dia,
Paciente e natural em cada dia,
Profundo e ao mesmo tempo aéreo,
Verde e simples,
Como uma árvore!

Ganhámos juntos o que perdemos separados:
A luz incomparável, esta luz quase louca
Da primavera, esta gaivota
Caída dos ombros da luz,
E a leve , saborosa tristeza do entardecer,
Como uma carta por abrir,
Uma palavra por dizer...

Ganhámos juntos o que vamos perdendo
Separados:
A alegria - inocente
Cidade,
Coração aberto pela manhã,
Pequeno barco subindo
Nitidamente o rio,
Fumegando, fumando
Com o seu ar importante de homenzinho....
E a ternura - beijo obrevoado
O teu rosto fiel,
Fogo intensamente verde sobre a terra,
Intensamente verde nos teus olhos,
Pequeno " nariz ordinário"
Que entre os meus dedos protesta
E se debate....

Duas árvores de avanço,
Uma corrida louca ....
... E o teu coração na minha boca !

E o amor,
Não o que destrói, o que não é amor,
Não a fúria dos corpos quando trocam
Desespero por desespero,
Não a suprema tristeza de existir ,
A obscena arte de viver,
A ciência de não dar e receber,
Mas o amor que se traduz
Pela bondade, a confiança,
A pureza , a fraternidade,
A força de viver, de triunfar da morte,
De triunfar da sorte,
A vertigem de conhecer
Necessidade e liberdade!

Ganhámos juntos o que vamos perdendo separados.

Flechas Velocíssimas
Nos sonhos voavam
Em direcção à vida,
E era na vida que queriam acertar,
Era na vida que queriam morder,
Era à vida que nos queriam ligar!

Nos nossos sonhos entrava gente viva,
Entravam cartas, poeams , versos
Tão cheios de sentido como ruas
E ruas plenas de ritmo e sentido,
Como os melhores versos.
Entravam amigos, desejos lutas
E esperanças comuns,
Recordações, amores antigos
Como navios perdidos muito ao longe
Ou já imóveis sob anos e anos de silêncio,
Leituras discutidas, evocadas: sonhos
E destinos próximos , tristezas e alegrias semelhantes,
Vidas exemplares,
Vidas fulgurantes de vida !

Michaud, o que dizia
A cada passo : " Et comment!"
Par exprimir o seu apego à vida,
A sua indomável alegria!
e N-2 e Berta, 
Um ao outro presos
Como fantasmas,
Mas vivendo e ajudando a viver!
E Éluard, os seus poemas
Simples como gestos de alegria,
Directos como palavras
De justa cólera,
Irreprimíveis como beijos
Quentes de ternura,
Completos como pássaros
Rápidos no azul !
E muitos outros ainda,
Muitas outras vidas,
Reais ou inventadas
Exemplarmente do real!

Nos nossos dias entravam dúvidas e erros,
A terrível solidão de certas horas
Sem um ombro amigo,
O coração abandonado, flutuando
Como um peixe morto, um resto
De calor dentro do frio.

Dúvidas, erros,
E a tentação de levantar andaimes,
De entrar " em obras", de instalar
Em cada dia um " problema"
E de dourar
O " problema" de cada dia ...

Mas não só a dúvida e o erro
O coração entornado, a cabeça perdida
Entravam nos nossos dias ,
Porém
Tratava-se de realizar.

"Realizar" : fazer passar
Para a realidade,
Pôr em prática os sonhos,
Ideias, teorias.
Por exemplo : a indústria,
A agricultura realizam
Certas teorias
Químicas, físicas,
Biológicas.
Por exemplo : hoje
Estão a ser realizados
Os mais velhos
Sonhos do homem.
Por exemplo - mais pessoal
Mas não menos importante :
Em ti
Via realizados os meus sonhos !

"No Reino da Dinamarca"

em A Única Real tradição Viva - Antologia da poesia surrealista portuguesa, Assírio & Alvim

Ofélia

Cantando vai Ofélia pelo rio,
A caminho do nada - e não tem frio!

De flores coberta, ei-la morta de amor,
Olhos espelhando do céu o livor.

- Ofélia, ó triste, quem te segue empós?
- Um amor sobre-humano e um pai atroz…

- Cumpriste, não foi, teu dever de filha?
- E agora não sou mais do que uma ilha…

- De Hamlet a doideira acaso não temias?
- Doido por mim, fazia-me poesias…

O que mais temo, cá no outro mundo,
É o mano Laertes furibundo!

Tremo por Hamlet, meu Príncipe querido!
Temo Laertes, que é tão insofrido…

Eu não quero mais mortes, lá na Dinamarca.
Levo a minha a bordo - e não desembarca!

Assim se expressou, tristíssima, Ofélia,
Baixando a juzante, humanal camélia!

Anos 70 - poemas dispersos, Assírio & Alvim, 2005