Sebastião Alba

Dinis Albano Carneiro Gonçalves (Sebastião Alba), poeta Moçambicano, nasceu no dia 11 de Março de 1940, na freguesia da Cividade, Braga. Em 1949 partiu com a família para Moçambique, onde viveu e escreveu durante muitos anos. Em 1965 publica o seu primeiro livro, Poesias. Exerce jornalismo. Em Outubro de 1974 dá à estampa O Ritmo do Presságio, na colecção O Som e o Sentido, da Livraria Académica de Lourenço Marques.

Em 1978, publica A Noite Dividida. Cinco anos depois, abandona Moçambique, passando a viver em Braga. Em 1987, muda-se para Miratejo. Publica poemas na revista Colóquio/Letras. Em 1988 regressa a Braga, passando a viver só em quartos de aluguer. Torna-se andarilho e alcoólico.

A 14 de Outubro de 1994, dá a sua mais longa entrevista a Michel Laban, professor universitário francês, que a inclui no volume: Moçambique - Encontros com Escritores (Edição da Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1998).

Durante este período, vai dando forma definitiva aos poemas que virão a constituir a sequência inédita O Limite Diáfano. Em 1996, reúne num só volume, A Noite Dividida, o que considera ter ficado da sua poesia e que graças à iniciativa de Herberto Helder, foi posteriormente publicado pela Assírio & Alvim.

Sebastião Alba morreu no dia 14 de Outubro de 2000, vítima de atropelamento;. Postumamente foi publicado Uma Pedra ao lado da Evidência.(Campo das Letras, 2000).

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Poemas

A pomba para o cheina

Pontos de vista
entrecruzam as balas
e nós ensaiamos a pomba
desenhando-a encurvando-lhe
o dorso antes do voo
largando-a no prisma puro
dos olhares da multidão
Logo uma estrela fugaz
se lhe cola ao bico
Rodopiará no céu entre colunas
colossais de cogumelos
e sóis que a inflectem
mas bem aninhada no oco
habitáculo de penas
com a chave em nossa mão.

Trecho da Praia

Como por um ralo atrás da pupila,
vêem-me agir:
nada divide o caranguejo, dividindo
os lodos em seu sulco,
e também suas pinças se amotinam
à passagem, com sombra,
duma ave marinha…

E antes da chegada ascendente do mar,
ou que alguém module a voz
pela que da nuvem soou
no paraíso, amam-se na areia.
Enquanto do largo
o halo dum navio nocturno
se expande e irisa em seu redor.

Na sua primordial existência…

Na sua primordial existência
a poesia deixar-me-á da ternura
só o que é defensável

e à margem do papel em que escrevi
as cidades e os campos
através dos quais me acenou

apartará do meu paladar
o sabor do sagrado
com que ainda a nomeie

já não buscarei nos ensaios que cerco lhe moviam!
e nos ideais por que alheada
roçagou
que da janela eu não deslinde
de um cão em paz
a visagem ancestral
e a minha emoção seja enfim sedentária

e recém-chegada a noite finde
sem dar acordo de si.

A Guerrilheira

Eis a ocasião em forma de mulher
com a ponte do lábio galgando
a voz Seus cabelos ondulam
por dentro das estrofes

Na mesma noite dividida ao meio
como se um lado reflectisse no outro
a sombra que na folha me adelgaça os dedos
verte ainda alguns versos e pára
Para quê
Pergunta a sucessão dos meus perfis iluminados
pelo volteio das luzes contrárias
E desatam-se das luzes os seus reflexos
a noite desdobra-se em metades imperfeitas.

poema publicado aqui: Nunca Mais é Sábado – Antologia de Poesia Moçambicana, Organização e prefácio por Nelson Saúte; Dom Quixote, 2004

de A noite dividida, Edições 70, 1981

 

[envelheces, rapaz]

Palavras, cascalho desabrido
que em cada manhã, suspirande,
realinho nos canteiros
e que, sem fé, sagro
de cal idílica.
A vizinha chega-se ao muro,
diz "bom dia".
Vem duma comunidade
com juízo; apercebe-se
de que a minha saudação
carreta as pedras
dum mutismo lavrado.
Acabará por julgar
que há ali uxoricídio, e eu velo
para que ele não fique a descoberto.
Há-de ver
o meu bilhete de identidade, auge
de quem sou,
santo-e-senha, vínculo
que nem a morte pui.
Nada feia. No dia em que
um giro de andorinhas nos aureole,
dir-lhe-ei que tive
relações conjugais, sim!,
mas com a beleza, etc.
Não tardará que ela me escolha
as palavras e os chinelos
a seu gosto.

Fim de Poema

Para que nem tudo vos seja sonegado,
cultivai a surdina.
Eu fico em surdina.
Em surdina aparo
os utensí­lios,
em surdina me preparo
para morrer.
Amo, chut!, em surdina:
a minha vida,
nesga entre dois ponteiros, fecha-se
em surdina.


poema encontrado aqui

de Uma Pedra Ao Lado Da Evidência, Campo das Letras, 2000

 

Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos de papel dos nossos lagos
podem obrigá-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje do mesmo lado
Mas ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.


poema encontrado aqui

não sou anterior à escolha

Não sou anterior à escolha
ou nexo do ofício
Nada em mim começou por um acorde

Escrevo com saliva
e a fuligem da noite
no meio de mobília
inarredável

atento à efusão
da névoa na sala.

há poetas com musa. Muitos.

Há poetas com musa. Muitos.
Eu, neste jardim do Éden,
a cargo do município,
onde um velho destece a sua vida
e, baixando o olhar,
ainda lhe afaga a trama,
quando a poesia se afoita,
amuo
na agrura de, ao acordar,
tê-la sonhado.

 

lidos aqui

ao Rui Knopfli

Como os outros discípulos da noite
frente ao quadro negro
que é exterior à música
dispo o reflexo Sou um
e baço

dou-me as mãos na estreita
passagem dos dias
pelo café da cidade adoptiva
os passos discordando
mesmo entre si

As coisas são a sua morada
e há entre mim e mim um escuro limbo
mas é nessa disjunção o istmo da poesia
com as suas grutas sinfónicas
no mar.


de O Ritmo do Presságio

em Nunca Mais é Sábado – Antologia de Poesia Moçambicana,
organização e prefácio por Nelson Saúte; Dom Quixote, 2004

 

 

 

 

Com dedal, agulhas, pano cru
já me urdiam o signo.
Desse velado feito de colossos,
eis o indício, no tempo,
alarmando a casa toda:
um dedo que o sangue perla.

Ainda têm o fio da meada;
eu apuro o da navalha.
 

poema encontrado aqui

Não sei que luzes a bordo
escurecem de sentido a noite larga
e em mim perfilam solenes
as sensações na sombra

flébeis costas
devolvem o mar disperso
e nos flancos do casco
um monótono som singra

só minhas ânsias embaladas
fremem
a cada indefinido promontório
se resignam hirtas
na amurada
ou, se volve um farol,
são nucleares e brancas

mas amanhece
vagam flocos de círios
um sol de adolescência e de novela
descobre a amante insulada

e um sino toca para o pequeno almoço.

 

lido aqui

Preciso de qualquer objecto dos teus, uma coisa de que possas já desfazer-te, mas tenha sido tua, para trazer comigo, nestes dias.
Não me lembro se já te disse que o escritor norte-americano Ernest Hemingway andava com uma pata de coelho na algibeira. Os antepassados de teu pai, os meus, eram mágicos, bruxos, fetichistas.
Deixa-o à porta, eu hei-de vê-lo, querida.
Virei sempre com uma carta para ti. Quando não vier, é porque os sinos de Braga me estavam a ensurdecer, e fui dar uma volta.
Toma lá o orvalho e a rosa, meu amor.

lido aqui

Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam
os espaços aéreos de países castos
e se dissipam além dos limites naturais
um laivo incendiando as espirais do rasto
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mas de uma província de incerta geologia
com uma história sem crónicas ou reis absolutos
a única a que a constituição se refere numa clave de sol
onde os cidadãos de todos os burgos
pulam à rua das mãos estendidas de deus
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.


lido aqui

Quando não te vejo, o meu relógio “anda” sem corda; os sapatos andam trocados, de ternura (esqueço-me de os calçar bem, de manhã), não compro tabaco, eu, que fumo locomotivamente; pardais acercam-se, entram no saco de plástico e levam-me o pão. Sem ti, sou a minha estátua.
Há um friso na minha consciência – o da mitologia católica; é como uma catedral. Bem tento prender-me a ti, para salvar-me. É inútil. Há qualquer coisa que não me dá tréguas. Não posso lutar contra um inimigo que não distingo bem, na bruma.


lido aqui