Yorgos Seferis

Yorgos Seferis — pseudónimo de Yorgos Stylianos Seferiadis — nasceu em Esmirna, em Fevereiro de 1900. Aos 14 anos partiu para Atenas e depois para Paris onde frequentou as faculdades de Letras e Direito. Em 1925 regressou à Grécia e enveredou na carreira diplomata. Em 1942 a ocupação alemã levou-o ao exílio. Terminada a guerra desempenhou cargos diplomáticos em diversos países, nomeadamente em Inglaterra onde viveu de 1957 a 1962.

Em 1969 declarou publicamente a sua oposição ao regime ditatorial de Papadopoulos, depois do golpe militar de 1967. Seferis manifestou também os seus receios quanto ao triunfo da cultura comercial. Viveu os últimos anos exilado no interior da sua própria casa, em Atenas. Quando morreu, a 20 de Setembro de 1971, milhares de jovens compareceram no enterro, para homenagear um homem que sempre lutou pela liberdade. É um dos poetas gregos mais conhecidos. Foi galardoado com o prémio Nobel em 1963.

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Poemas

Poucas foram as noites de luar de que gostei.
O a-bê-cê dos astros que se soletra
Tal como o traz o penar do dia que se fina,
Dele se tirando novos sentidos e novas esperanças, mais claramente pode ler-se.
Agora que aqui estou desocupado a meditar, poucas luas me ficaram na memória;
As ilhas, a dorida cor da Virgem, o lento declinar
Do luar nas cidades do norte, que por vezes lança
Nas ruas agitadas, nos rios, nos membros dos homens,
Um pesado torpor.
No entanto, ontem à noite, neste nosso último cais
Onde aguardamos que amanheça a hora do regresso
Como uma antiga dívida, uma moeda que ficasse durante anos
No cofre dum avarento, e por fim
Chegasse o momento de pagar e se ouvissem
Os cobres a tilintar na mesa,
Nesta aldeia tirrena, por detrás do mar de Salerno
Por detrás dos portos do regresso, no fim
Duma borrasca de Outono, a Lua furou as nuvens
E as casas na encosta da outra margem fizeram-se esmalte.
Silêncios que a lua ama.

Também isto é um rosário de pensamentos, um modo
De começarmos a falar das coisas que se confessam
Dificilmente, quando já não se aguenta mais, a um amigo
Que se escapou às ocultas e traz
Novas das casas e dos companheiros,
E nos apressamos a abrir-lhe o coração,
Não vá o exílio alcançá-lo e mudá-lo.
Viemos das Arábias, do Egipto, da Palestina, da Síria;
O estado de Comagena, que se apagou como uma pequena lanterna
Muitas vezes volta ao nosso espírito,
E as grandes cidades que viveram milhares de anos,
Delas só restando pastagens de búfalos,
Campos de cana-de-açúcar e de milho.
Viemos da areia do deserto, do mar de Proteu,
Almas maculadas de públicos pecados,
Cada um com seu cargo, como o pássaro na gaiola.
O Outono chuvoso nesta fossa
Inflama a ferida de cada um de nós
Ou, por outras palavras talvez, o destino fatal
Ou simplesmente os maus hábitos, a fraude e o embuste,
Ou ainda a cobiça do sangue dos outros.
Facilmente se tritura o homem na guerra
O homem é frágil, é um molhe de ervas,
Lábios e dedos que desejam branco peito,
Olhos semi-cerrados no esplendor do dia
E pernas que correriam, mesmo tão cansadas,
Ao mais pequeno assobio do lucro.

O homem é frágil e sedento como a erva,
Insaciável como a erva, e os seus nervos são raízes que alastram.
Quando é tempo de colheita,
Prefere que as foices silvem em seara alheia,
Quando é tempo de colheita,
Uns gritam para esconjurar o demónio,
Outros perdem-se nas riquezas, outros peroram;
Mas, esconjuros, riquezas e retórica,
Quando os vivos estão longe, de que servem?
Talvez o homem seja outra coisa?
Talvez não seja isto que transmite a vida?
Há um tempo para semear, há um tempo para colher.

De novo e sempre o mesmo, dir-me-ás, amigo.
Contudo, o pensamento do exilado, o pensamento do prisioneiro, o pensamento
Do homem que também se viu reduzido a mercadoria
Tenta mudar-lho, que não consegues.
Queria, se calhar, ser rei dos antropófagos
Desbaratar forças que ninguém procura
E passear pelos campos de agapantos
E ouvir os batuques debaixo dos bambus
Enquanto os cortesãos dançam com máscaras grotescas
Mas a Terra que massacram e queimam como um pinheiro e que vês,
Ou no vagão escuro, sem água, partidas as vidraças, durante noites e noites,
Ou no barco incendiado que há-de naufragar como ensinam as estatísticas,
Tudo isso criou raízes no espírito e não muda,
Tudo isso floriu imagens parecidas às árvores
Que lançam na floresta virgem seus ramos
Que voltam a cravar-se na terra e a florir
E lançam ramos e voltam a florir e galgam léguas e léguas,
Uma floresta virgem de folhas mortas é o nosso espírito.

E se te falo por fábulas e parábolas,
É porque assim são mais doces ao teu ouvido e porque o terror
Não se fala, que é coisa viva,
Que é coisa muda e avança sem parar;
Goteja todo o dia, goteja durante a noite
A dor das recordações.

Falemos de heróis, falemos de heróis: o Michális
Que fugiu com feridas abertas do hospital
Talvez estivesse a falar de heróis, na noite
em que, arrastando os pés pela cidade velada,
Gritava e tocava a nossa dor: “Pela escuridão
È que vamos, pela escuridão avançamos…”
Os heróis avançam na escuridão.

Poucas são as noites de luar de que gosto.


Tradução: Manuel Resende

Compilado por Amélia Pais em Antologia de Poetas Gregos em Tempo de Jogos Olímpicos, Atenas 2004

poema encontrado aqui

 

Narração

Este homem caminha a chorar
ninguém sabe dizer porquê
às vezes pensam que são os amores perdidos
como aqueles que tanto nos atormentam
à beira-mar no verão com os gramofones.

A outra gente cuida dos seus trabalhos
papéis intermináveis crianças que crescem, mulheres
com dificuldades em envelhecer
ele tem dois olhos como papoilas
como primaveris papoilas cortadas
e duas pequenas fontes na cavidade dos olhos.

Caminha pelas estradas nunca se deita
galgando pequenos quadrados no dorso da terra
máquina de um tormento infindo
o qual acabou por não ter importância.

Alguns outros ouviram-no falar
sozinho enquanto passava
de espelhos quebrados anos antes
de figuras quebradas dentro de espelhos
que já ninguém pode juntar.
Outros ouviram-nos dizer do sono
imagens de horror no limiar do sono
rostos insuportáveis de ternura.

Habituámo-nos a ele bem arranjado e tranquilo
acontece apenas que caminha a chorar continuamente
como os salgueiros à beira do rio que vês do comboio
quando acordas mal disposto numa alba cheia de nuvens.

Habituámo-nos a ele não representa nada
como todas as coisas às quais vocês se habituaram
e falo-vos dele porque não encontro
nada a que vocês não estejam habituados;
as minhas vénias.

A folha do choupo

Tremia tanto que o vento a levou
tremia tanto como não a levaria o vento
lá longe
um mar
lá longe
uma ilha ao sol
e as mãos apertando os remos
morrendo no momento em que o porto apareceu
e os olhos fechados
em anémonas do mar.

Tremia tanto tanto
procurei-a tanto tanto
na cisterna com os eucaliptos
na primavera e no verão
em todas as nuas florestas
meu deus procurei-a.

O último dia

Estava o dia nublado. Ninguém se resolvia
soprava um vento ligeiro: «Não é o grego é o
siroco» disse alguém.
Alguns ciprestes esguios cravados na encosta e o
mar
cinzento com lagoas luminosas, mais além.
Os soldados apresentavam armas quando começou a chuviscar.
«Não é o grego é o siroco» a única resolução que
se ouviu.
Todavia sabíamos que na alba seguinte não nos restaria
mais nada, nem a mulher bebendo ao nosso lado o sono
nem a memória de que fomos homens alguma vez,
mais nada na alba seguinte.

«Este vento traz à mente a primavera» dizia a amiga
caminhando a meu lado olhando para longe «a primavera
que de repente caiu no inverno perto do mar fechado.
Tão inesperadamente. Passaram tantos anos. Como vamos
morrer?»

Uma marcha fúnebre vagueava por entre a chuva miudinha.
Como morre um homem? Estranho ninguém refletiu
nisso.
E os que pensaram nisso era como memória de crónicas
velhas
da época dos cruzados ou da - em Salamina - batalha
naval.
Todavia a morte é algo que é feito; como morre
um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte,
que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
Baixava a luz sobre o dia nublado, ninguém se
resolvia.
Na alba seguinte não nos restaria nada; tudo entregue;
nem sequer as nossas mãos;
e as nossas mulheres trabalhando para outros nos fontanários e
os nossos filhos
nas pedreiras.
A minha amiga cantava caminhando a meu lado
uma canção amputada:
«Na primavera, no verão, escravos...»
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram
órfãos.
Uma casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»

XXIII

Um pouco mais
e veremos florescer as amendoeiras
os mármores brilharem ao sol
o mar a ondear

um pouco mais
para nos levantarmos um pouco mais alto.

 

tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratisinis

de Poemas Escolhidos, Relógio d'água

poemas encontrados aqui

O ar de um dia há dez anos vivido em terra estranha,
de um momento remoto que adeja e vai-se, anjo de Deus;
voz de mulher por cautela esquecida, a duras penas;
desolação do fim, crepúsculo de pedra num Setembro.

Casas novas, clínicas poeirentas, janelas leprosas, lojas funerárias…
Quem sabe o que sofre um farmacêutico sensível no plantão da noite ?
O quarto em desordem: gavetas, janelas, portas bocejam, feras más.
Um homem fatigado deita as cartas, mede os astros, perquire-se, procura,
inquieta-se. Batem à porta: ah, quem vai abri-la? Aberto o livro,
quem lê? Aberta a alma, quem vê?

Onde o amor que desconcerte o uno tempo e o corte em dois?
Palavras só, e gestos, mudo monólogo ao espelho, sob a ruga.
Gota de tinta num lenço, o tédio espalha-se.
Morreram todos a bordo, mas o barco persegue a ideia que o segue
desde o porto.
As unhas do capitão, como cresceram…E o armador barbudo que
tinha três amantes em cada escala…
O mar incha sem pressa, as velas pavoneiam-se e o dia já se abranda.
Três golfinhos negrejam, cintilantes; a sereia sorri; um marinheiro
esquecido acena lá da gávea.


Tradução: José Paulo Pães

de Rosa do Mundo – 2001 Poemas Para o Futuro, Assírio & Alvim, 2001