Konstantínos Kaváfis

Constantine P. Cavafy (Konstantínos Petrus Kaváfis), nasceu em Alexandria (Egipto)  em 1863. Depois da morte do pai, em 1870, foi para Inglaterra com a mãe e os seus oito irmãos, onde viveu até aos 16 anos. Em 1979 regressou a Alexandria. Trabalhou durante 30 anos na Bolsa de Valores Egípcia. Kavafis escreveu os primeiros poemas em inglês e toda a sua obra denota familiaridade com a tradição poética inglesa, em particular com autores como  Shakespeare, Browning e Oscar Wild.

A sua obra foi divulgada no círculo literário inglês em 1919, pela mão do escritor E.M. Forster, com grande sucesso. Na Grécia só viria a ter algum reconhecimento, depois da publicação da sua primeira antologia poética, em 1935. Kavafis morreu na sua cidade natal em 1933.

Kavafis ficou conhecido pelo uso prosaico das figuras e das metáforas, pelo seu perfeccionismo, pelo seu vanguardismo no tratamento das questões homosexuais, pelo seu esotérico mas brilhante sentido da história, pelo seu compromisso com o helenismo acoplado à sua crítica política, pela sua própria criação de um rico, unificado e mítico mundo.

Estes atributos e a sua recusa em entrar no mercado literário, nem mesmo para ganhar prestígio, (nunca vendeu um poema seu, preferindo oferecê-los em panfletos aos amigos), talvez o tenham privado de ver reconhecida a sua obra, ainda em vida, como genial. Konstantinos Petrus Kavafis é hoje considerado um dos maiores poetas gregos do século XX e ocupa um local de grande destaque na literatura mundial.

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Poemas

Da Escola do Filósofo de Renome

Foi aluno de Ammonius Sakkás dois anos;
mas aborreceu-se quer com a filosofia quer com Sakkás.

De seguida entrou na política.
Mas largou-a. Era estulto o Eparca;
e os da sua roda mamarrachos solenes e pedantes;
superbárbaro o grego deles, os reles.

A sua curiosidade foi atraída
um pouco pela Igreja; baptizar-se
e passar por Cristão. Mas depressa
a sua opinião mudou. Faria por certo agastar
os seus pais, ostensivamente gentios;
e cortar-lhe-iam - coisa horrível-
imediatamente os tributos assaz generosos.

Todavia tinha além disso que fazer algo. Tornou-se frequentador

dos locais depravados de Alexandria,
de cada antro escuso de deboche.

A sorte nisto foi-lhe favorável;
deu-lhe feições extremamente formosas.
E ele disfrutava o dom divino.

Pelo menos mais dez anos
a sua beleza havia de durar. Depois -
talvez fosse de novo para Sakkás.
E se entretanto o velho expirasse
ia para outro filósofo ou sofista;
sempre se encontra alguém conveniente.

Ou por fim, também era possível à política
regressar - recordando louvadamente
as tradições da família,
o dever para com a pátria, e outras sonoras coisas semelhantes.

Da Loja

Embrulhou-as com cuidado, ordenadamente
na seda verde excelente.

Lírios de pérolas, rosas de rubis,
violetas de ametista. Tais como ele as quis,

as apreciou, as viu belas; não como na natureza há
as viu e as estudou. Dentro do cofre as deixará,

amostra do seu trabalho eficaz e sem temor.
Se na loja entrar um qualquer comprador

tira outras dos estojos e vende — jóias singulares —
pulseiras, anéis, cordões e colares.

Muros

Sem circunspecção, sem mágoa, sem pejo
Grandes e altos em redor de mim construíram muros.

E fico e desespero agora no que vejo.
Não penso noutra coisa: na minha mente esta sina rasga furos;

Porque tantas coisas havia a fazer lá fora por ti.
Quando construíam os muros como é que não reparei, ah.

Mas nunca o estrondo de pedreiros ou som ouvi.
Imperceptivelmente cerraram-me do mundo que está lá.

Num Livro Velho

Num livro velho - mais ou menos de há cem anos -
por entre as suas folhas esquecida,
encontrei uma aguarela sem assinatura.
Devia ser a obra de artista assaz forte.
Levava por título, «Apresentação do Amor».

Mas antes lhe convinha, «- do amor dos ultra estetas».

Pois era evidente quando se via a obra
(com facilidade se sentia a ideia do artista)
que para quantos amam um tanto higienicamente,
mantendo-se dentro do permitido de todas as maneiras,
não era destinado o adolescente
da pintura - com olhos castanhos de cor profunda;
com a beleza selecta do seu rosto,
a beleza das atracções perversas;
com os seus lábios ideais que levam
o prazer a um corpo amado;
com os seus membros ideais moldados para leitos
a que chama depravados a moral corrente.

Um Velho

No café no lugar de dentro na zoeira turva
senta-se um velho na mesa se curva;
com um jornal diante dele, sem companhia.

E no desdém da velhice miserável
pensa como usou tão pouco o tempo deleitável
em que força, e eloquência, e beleza possuía.

Sabe que envelheceu muito; sente-o, é visível.
E contudo o tempo em que era novo ao mesmo nível
do de ontem. Que espaço apressado, que espaço apressado.

E considera como burlava dele a Prudência:
e como nela tinha confiança sempre - que demência! -
a perjura que dizia: «Amanhã. O tempo é demorado».

Lembra-se de impulsos a que punha freio; e sem medida
a alegria que sacrificava. Cada história perdida
agora troça da sua desmiolada sageza.

... Mas do muito que foi pensando e não esquece
o velho atordoou-se. E adormece
no café apoiado sobre a mesa.

Vestes

Dentro de um caixote ou dentro de um móvel de ébano precioso vou pôr a guardar as vestes da minha vida.
As roupas azuis. E depois as vermelhas, as mais belas de todas. E a seguir as amarelas. E por fim de novo as azuis, mas muito mais desbotadas estas últimas do que as primeiras.
Vou guardá-las devotamente e com muita tristeza.
Quando vestir as roupas negras e quando morar dentro de uma casa negra, dentro de um quarto escuro, abrirei de vez em quando o móvel com alegria, com desejo e com desespero.
Verei as roupas e lembrar-me-ei da grande festa - que será nesse momento de todo finda.
De todo finda. Os móveis espalhados desordenadamente dentro das salas. Pratos e copos partidos no chão. Todas as velas gastas até ao fim. Todo o vinho bebido. Todos os convidados idos. Cansados alguns estarão completamente sozinhos, como eu, dentro de casas escuras - outros mais cansados terão ido dormir.


tradução: Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis

de Poemas e Prosas,  Relógio D'Água, 1994.

Disse Mirtias (estudante sírio
em Alexandria, sob o reinado
de Constante Augusto e Constâncio Augusto;
em parte gentio e em parte Cristão):
"Fortalecido pela contemplação e o estudo,
não temerei, como um covarde, minhas paixões.
Entregarei meu corpo aos prazeres,
aos gozos mais sonhados,
aos mais ousados desejos eróticos,
aos impulsos lascivos de meu sangue, sem
medo algum, pois quando quiser
- e hei de querer, fortalecido
como estarei pela contemplação e o estudo -
encontrarei de novo nos momentos mais críticos
meu espirito ascético de outrora."


tradução: Jorge de Sena

Quando Elas Despertam

Procura guardá-las, Poeta,
por poucas que sejam de guardar,
do teu amar as visões.
Coloca-as no meio ocultas nas tuas frases.
Procura detê-las, Poeta,
quando em tua cabeça elas despertam,
de noite ou na luz crua do meio-dia.

Tão Longe

Tão apagada agora... quase nada resta
porque ficou tão longe, nos meus anos primeiros de ser homem.

Uma pele como de jasmim... Na noite
de Agosto... Era de Agosto?... Mal relembro
os seus olhos... Eram, suponho, azuis...
Ah sim, azuis. Azuis como safira.

No mesmo espaço

Ambiente da casa, dos cafés, do bairro
que vejo e percorro: ano após ano

Criei-te de alegrias e tristezas
de tantas circunstâncias, tantas coisas.

E já não és senão como te sinto.


tradução: Jorge de Sena

em 90 e Mais Quatro Poemas, edições ASA, 3ª ed., 2003 

Devia ser uma hora da noite
ou uma e meia.
                         A um canto da taberna,
atrás da divisória de madeira.
Sós ainda na deserta sala
que um candeeiro mal iluminava.
O criado, obrigado a esperar, adormecera à porta.

Ninguém nos teria visto. Mas, embora,
estávamos os dois tão excitados,
que nada nos faria ter prudência.

A roupa se entreabria... — muito pouca
na ardência de um divino mês de Julho.

Prazer da carne,
por entre a roupa;
o rápido surgir da carne — e a imagem dela
cruzou vinte e seis anos, até vir
a estes versos, para ficar.


tradução
: Jorge de Sena

 Quando partires de regresso a Ítaca
deves orar por uma viagem longa,
plena de aventuras e de experiências.
Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,
um Poseidon irado – não os temas,
jamais encontrarás tais coisas no caminho,
se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime
teu corpo toca e o espírito te habita.
Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,
Poseídon em fúria – nunca encontrarás,
se não é na tua alma que os transportes
ou ela os não erguer perante ti.

Deves orar por uma viagem longa.
Que sejam muitas as manhãs de Verão,
quando, com que prazer, com que deleite,
entrares em portos jamais antes vistos!
Em colónias fenícias deverás deter-te
para comprar mercadorias raras:
coral e madrepérola, âmbar e marfim,
e perfumes subtis de toda a espécie:
compra desses perfumes quanto possas
E vai ver as cidades do Egipto,
para aprenderes com os que sabem muito.

Terás sempre Ítaca no teu espírito,
que lá chegar é o teu destino último.
Mas não te apresses nunca na viagem.
É melhor que ela dure muitos anos,
que sejas velho já ao ancorar na ilha,
rico do que foi teu pelo caminho,
e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.

Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.
Sem Ítaca, não terias partido.
Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.

Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.
Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,
terás compreendido o sentido de Ítaca.


tradução: Jorge de Sena

em 90 e Mais Quatro Poemas, edições ASA, 3ª ed. 2003

Num quarto pequeno e nu, quatro paredes somente,
recamadas de muito verdes panos,
um belo candelabro brilha incandescente;
e em cada uma das chamas se acende
uma lúbrica paixão, um lúbrico ardor.

Na pequena alcova, que ilumina refulgente
a forte luz que vem do candelabro,
não é vulgar fogo esta luz ardente.
Não foi feita para os corpos tementes
a volúpia que há neste calor.


tradução: Manuel Resende

em DiVersos N.° 6

Addition

I do not question whether I am happy or unhappy.
Yet there is one thing that I keep gladly in mind --
that in the great addition (their addition that I abhor)
that has so many numbers, I am not one
of the many units there. In the final sum
I have not been calculated. And this joy suffices me.

Half an hour

I never had you, nor will I ever have you
I suppose. A few words, an approach
as in the bar yesterday, and nothing more.
It is, undeniably, a pity. But we who serve Art
sometimes with intensity of mind, and of course only
for a short while, we create pleasure
which almost seems real.
So in the bar the day before yesterday -- the merciful alcohol
was also helping much --
I had a perfectly erotic half-hour.
And it seems to me that you understood,
and stayed somewhat longer on purpose.
This was very necessary. Because
for all the imagination and the wizard alcohol,
I needed to see your lips as well,
I needed to have your body close.

The City

You said, "I will go to another land, I will go to another sea.
Another city will be found, better than this.
Every effort of mine is condemned by fate;
and my heart is -- like a corpse -- buried.
How long in this wasteland will my mind remain.
Wherever I turn my eyes, wherever I may look
I see the black ruins of my life here,
where I spent so many years, and ruined and wasted."

New lands you will not find, you will not find other seas.
The city will follow you. You will roam the same
streets. And you will age in the same neighborhoods;
in these same houses you will grow gray.
Always you will arrive in this city. To another land -- do not hope --
there is no ship for you, there is no road.
As you have ruined your life here
in this little corner, you have destroyed it in the whole world.

Their Beginning

Their illicit pleasure has been fulfilled.
They get up and dress quickly, without a word.
They come out of the house separately, furtively;
and as they move off down the street a bit unsettled,
it seems they sense that something about them betrays
what kind of bed they've just been lying on.
But what profit for the life of the artist:
tomorrow, the day after, or years later, he'll give voice
to the strong lines that had their beginning here.

Return

Return often and take me,
beloved sensation, return and take me --
when the memory of the body awakens,
and an old desire runs again through the blood;
when the lips and the skin remember,
and the hands feel as if they touch again.

Return often and take me at night,
when the lips and the skin remember....

As much as you can

Even if you cannot shape your life as you want it,
at least try this
as much as you can; do not debase it
in excessive contact with the world,
in the excessive movements and talk.

Do not debase it by taking it,
dragging it often and exposing it
to the daily folly
of relationships and associations,
until it becomes burdensome as an alien life.

- Mas que esperamos nós aqui n'Ágora reunidos?

É que os bárbaros hoje vão chegar!

- Mas porque reina no Senado tanta apatia?
Porque deixaram de fazer leis os nossos senadores?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
Que leis hão-de fazer os senadores?
Os bárbaros que vêm, que as façam eles.

- Mas porque tão cedo se ergueu hoje o nosso imperador,
e se sentou na magna porta da cidade à espera,
oficial, no trono, co'a coroa na cabeça?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
O nosso imperador espera receber
o chefe. E certamente preparou
um pergaminho para lhe dar, onde
inscreveu vários títulos e nomes.

- Porque é que os nossos dois bons cônsules e os dois pretores
trouxeram hoje à rua as togas vermelhas bordadas?
E porque passeiam com pulseiras ricas de ametistas,
e porque trazem os anéis de esmeraldas refulgentes,
por que razão empunham hoje bastões preciosos
com tão finos ornatos de ouro e prata cravejados?

É que os bárbaros hoje vão chegar.
E tais coisas os deixam deslumbrados.

- Porque é que os grandes oradores como é seu costume
não vêm soltar os seus discursos, mostrar o seu verbo?

É que os bárbaros hoje vão chegar
e aborrecem arengas, belas frases.

- Porque de súbito se instala tal inquietude
tal comoção (mas como os rostos ficaram tão graves)
e num repente se esvaziam as ruas, as praças,
e toda a gente volta a casa pensativa?

Caiu a noite, os bárbaros não vêm.
E chegaram pessoas da fronteira
e disseram que bárbaros não há.

Agora que será de nós sem esses bárbaros?
Essa gente talvez fosse uma solução.


tradução: Manuel Resende

lido aqui