Charles Simic

Charles Simic nasceu a 9 de Maio de 1938 em Belgrado, Jugoslávia. Em 1953 emigrou para os Estados Unidos. Viveu em Chicago até 1958, ano em que se mudou para Nova Yorque. Publicou os primeiros poemas em 1959, aos 21 anos.

Estudou na Universidade de Nova Yorque, como trabalhador estudante. Em 1967 publicou What the Grass Says. Desde então publicou mais de 60 livros de poesia e ganhou vários prémios literários, nomeadamente o  Pulitzer Prize for Poetry, em 1990.

Também escreveu 4 ensaios e traduziu poetas franceses, sérvios, croatas, macedónios e eslovacos. Em 2000 foi eleito para a Academia de Poetas dos Estados Unidos da América. Desde 1973 viveu em New Hampsire onde deu aulas de Inglês na Universidade.

Simic morreu aos 84 anos, no dia 10/01/2023

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Poemas

Tapeçaria

Está pendurada do céu à terra.
Há nela árvores, cidades, rios,
porquinhos e luas. Num canto
a neve cai sobre uma carga de cavalaria,
noutro mulheres plantam arroz.

Também se pode ver:
um frango arrastado por uma raposa,
um casal nu na sua noite de núpcias,
uma coluna de fumo,
uma mulher de mau olhado cuspindo para um balde de leite.

O que está por trás dela?
- Espaço, um enorme espaço vazio.

E quem está agora a falar?
- Um homem que adormeceu com o chapéu posto.

O que acontece quando acordar?
- Ele irá a uma barbearia.
Raparão a sua barba, nariz, orelhas e cabelo,
para que se pareça com todos os outros.

Laranja cor de sangue

Está tão escuro que o fim do mundo pode estar próximo.
Convenço-me que vai chover.
Os pássaros no jardim estão silenciosos.
Nada é o que parece,
Nem nós mesmos.

Na nossa rua há uma árvore tão grande
Que podemos esconder-nos todos nas suas folhas.
Nem precisaremos de roupas.
Sinto-me tão velho como uma barata, disseste.
Imagino-me passageiro de um navio-fantasma.

Agora nem um suspiro lá fora.
Se alguém abandonou uma criança no nosso patamar,
Deve estar a dormir.
Tudo está a vacilar na borda de tudo
Com um sorriso polido.

É porque há coisas neste mundo
Sem qualquer solução, disseste.
Nesse instante ouvi a laranja cor de sangue
Rebolar pela mesa e com um baque
Cair no chão rachada ao meio.

O lugar

Eles conversavam sobre a guerra
Sentados a uma mesa ainda por levantar.
Do outro lado da rua, a primeira janela
Da noite já estava iluminada.
Ele estava sentado, curvado, imóvel,
o velho medo acometendo-o...
Escureceu. Ela levantou-se para levar o prato -
Agora desagradavelmente branco - para a cozinha.
Lá fora nos campos, nos bosques
Um pássaro falava por provérbios,
Um Papa saía ao encontro de Átila,
A fossa estava pronta para o seu pelotão.


Os prazeres da leitura

No seu leito de moribundo o meu pai lê
As memórias de Casanova.
Eu vejo a noite cair,
Algumas janelas que se iluminam na rua.
Numa delas uma jovem lê
Junto ao vidro.
Há muito tempo que não ergue os olhos,
Mesmo com a escuridão a chegar.
Enquanto ainda há um resto de luz,
Desejo que ela levante a cabeça,
E eu consiga ver-lhe a cara
Que já consigo imaginar,
Mas o livro deve ser intrigante.
Além disso, que silêncio,
Cada vez que volta uma página,
Consigo ouvir o meu pai, que também volta uma,
Como se eles lessem o mesmo livro

Álgebra no início da noite

A louca prosseguia desenhando Xs
Com um pau de giz escolar
Nas costas de pares inadvertidos,
De mãos dadas rumo a casa.

Era inverno. Já escurecera.
Não se conseguia ver-lhe a cara,
Embuçada como estava e furtiva
Como se fosse levada pelo vento, com asas de corvo.

O giz ter-lhe-ia sido dado por uma criança.
Tentava-se descobri-la na multidão,
Esperando que fosse muito séria, muito pálida,
Com uma lasca de ardósia negra no bolso.

 

Tradução: José Alberto Oliveira

de Previsão de tempo para Utopia e Arredores, Assírio & Alvim, 2002.

 

 

 

 

 Budas verdes
Na prateleira das frutas
Nós comemos o sorriso

E cuspimos os dentes

ler aqui a versão original

Foi isto que vi - restos de neve no chão,
Três melros a espanejar-se,
E a minha vizinha que sai de casa em combinação
A pôr camisas do marido a secar.

A aragem da manhã torna-lhe difícil pendurá-las.
Levanta-lhe a roupa bem acima dos joelhos,
Ela teve de parar o que estava a fazer
E deu uma bela gargalhada, enquanto se tapava

Tradução: José Lima

Clouds Gathering

It seemed the kind of life we wanted.
Wild strawberries and cream in the morning.
Sunlight in every room.
The two of us walking by the sea naked.

Some evenings, however, we found ourselves
Unsure of what comes next.
Like tragic actors in a theater on fire,
With birds circling over our heads,
The dark pines strangely still,
Each rock we stepped on bloodied by the sunset.

We were back on our terrace sipping wine.
Why always this hint of an unhappy ending?
Clouds of almost human appearance
Gathering on the horizon, but the rest lovely
With the air so mild and the sea untroubled.

The night suddenly upon us, a starless night.
You lighting a candle, carrying it naked
Into our bedroom and blowing it out quickly.
The dark pines and grasses strangely still.

Parecia o género de vida que queríamos.
Morangos silvestres com natas pela manhã.
Em todos os quartos a luz do sol.
Nós os dois a passear nus na praia.

Certas noites, porém, descobríamo-nos
Incertos do que viria a seguir.
Como actores de um drama num teatro em chamas,
As aves volteando por cima de nós.
Os pinheiros escuros estranhamente quietos,
Todas as pedras em que tropeçávamos
Ensanguentadas pelo sol poente.

E voltávamos para o terraço a beber vinho.
De onde nos vinha este pressentimento de um final infeliz?
Nuvens de aparência quase humana
Adensavam-se no horizonte, mas tudo o resto tão lindo
O ar tão brando e o mar tão manso.

A noite caía subitamente sobre nós, uma noite sem estrelas.
Acendias uma vela, levava-la nua
Para o nosso quarto e apagáva-la depressa com um sopro.
Os pinheiros escuros e os arbustos estranhamente quietos.

Tradução  José Lima

em diversos nr. 2

Afiaram-te bem aguçado
Com uma lâmina ferrugenta.
Depois uma mão desconhecida varreu as aparas
Para a palma húmida
E desapareceu da vista.

Repousas agora na secretária
Junto desse documento de ar oficial
Com uma longa lista de nomes.
Cabia-nos a nós imaginar o resto:
O tecto alto com rachas
E manchas de humidade irregulares:
A janela de onde se avistam
Os telhados cobertos de neve.

Um mundo vário e inconcebível
Rodeando de todos os lados
A tua severa presença!
Ponta de lápis vermelho

Tradução: José Lima

em DiVersos N.° 2 

Onde diz neve leiam
marcas dos dentes de uma virgem
Onde diz faca leiam
atravessaste os meus ossos
como uma sirene de polícia
Onde diz mesa leiam cavalo
Onde diz cavalo leiam o meu fardo de emigrante
As maçãs devem permanecer maçãs
Cada vez que aparecer chapéu
pensem em Isaac Newton
lendo o Velho Testamento
Eliminem todos os pontos
são cicatrizes deixadas pelas palavras
que não consegui escrever
Ponham um dedo sobre cada nascer do sol
para que ele não vos cegue
Aquela maldita formiga ainda mexe
Será que vai sobrar tempo
para corrigir todos os erros
mãos que disparam armas de contrabando
florestas consumidas como charutos
aquela garrafa de cerveja o meu maior erro
a palavra que deixei ficar escrita
quando devia ter gritado
por ela

Lido aqui 

O dedo tremente de uma mulher
Vai percorrendo a lista das baixas
No entardecer do primeiro dia de neve.

A casa é fria e a lista longa.

Todos os nossos nomes lá estão.

lido aqui
tradução: José Lima - in DiVersos nº 2

 

Cresci inclinado
Sobre um tabuleiro de xadrez.

Apaixonava-me a palavra xeque-mate.

Todos os meus primos pareciam apreensivos.

Era uma casa pequena
perto de um cemitério romano.
Aviões e tanques
sacudiam os seus postigos.

Um professor de astronomia jubilado
ensinou-me as regras do jogo.

Deve ter sido aí por 1944.

No jogo que utilizávamos
a pintura havia quase saltado de todo
das pedras negras.

Ao Rei branco deu-lhe um sumiço
e houve que substituí-lo.

Disseram-me mas não acredito
que naquele verão vi
homens enforcados nos postes de telefone.

Recordo-me da minha mãe
tapar-me os olhos muitas vezes.
Tinha um modo de enfiar-me a cabeça
repentinamente sob o seu sobretudo.

Também no xadrez, disse-me o catedrático,
é comum os mestres jogarem de olhos tapados,
os maiores em várias partidas
ao mesmo tempo.

tradução:  António Cabrita
de Looking for trouble, Construções Portuárias # 1
 

The obvious is difficult
To prove. Many prefer
The hidden. I did, too.
I listened to the trees.

They had a secret
Which they were about to
Make known to me--
And then didn't.

Summer came. Each tree
On my street had its own
Scheherazade. My nights
Were a part of their wild

Storytelling. We were
Entering dark houses,
Always more dark houses,
Hushed and abandoned.

There was someone with eyes closed
On the upper floors.
The fear of it, and the wonder,
Kept me sleepless.

The truth is bald and cold,
Said the woman
Who always wore white.
She didn't leave her room.

The sun pointed to one or two
Things that had survived
The long night intact.
The simplest things,

Difficult in their obviousness.
They made no noise.
It was the kind of day
People described as "perfect."

Gods disguising themselves
As black hairpins, a hand-mirror,
A comb with a tooth missing?
No! That wasn't it.

Just things as they are,
Unblinking, lying mute
In that bright light--
And the trees waiting for the night.

lido aqui