Ingeborg Bachmann

Ingeborg Bachmann nasceu em 1926, na Áustria. Conviveu com Günter Grass, Martin Walser, Hans Magnus Enzensberger, Thomas Bernhard, Paul Celan, Heinrich Böll e Max Frisch. A sua obra é um dos marcos importantes da literatura germânica da segunda metade do século XX. Publicou os primeiros poemas, “O tempo a surgir”, logo após a 2ª guerra mundial.

A partir de 1961, publica quase exclusivamente pequenos textos em prosa: “O trigésimo ano”, “Malina”, “Três carreiros para o lago”.

A escrita de Ingeborg Bachmenn, está intimamente ligada à sua experiência como mulher e à sua reflexão sobre os momentos históricos em que viveu: o nazismo – em especial Anschluss, em 1938, quando ainda não tinha doze anos – marcou-a profundamente e nunca deixou de denunciar as várias manifestações fascistas na sociedade capitalista e patriarcal.

Na sua obra transparece a luta desesperada do escritor para não se tornar impotente face ao mundo moderno. Para ela escrever foi sempre um acto de amor, constantemente recomeçado com paixão. Ingeborg Bachmann morreu em Roma em 1973, num acidente.

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Poemas

Sob um céu estranho
sombras rosas
sombras
numa terra estranha
entre rosas e sombras
numa água estranha
a minha sombra

Eu não digo: foi ontem. Com dinheiro de verão
desvalorizado no bolso estamos novamente 
no debulho do escárnio, na manobra outonal do tempo.
E a saída de emergência para o sul não nos é, 
como aos pássaros, favorável. Á noite,
passam barcos pesqueiros e gôndolas, e às vezes
me atinge um estilhaço de mármore cheio de sonho,
onde sou vulnerável, através da beleza, no olho.

No jornal leio muito sobre o frio
e suas conseqüências, de mórbidos e mortos,
de desalojados, matança e miríades
de pedaços de gelo, mas pouco sobre o que me agrada.
E por que deveria? Para o mendigo, que vem ao meio dia,
fecho a porta na cara, pois é tempo de paz
e pode-se poupar tal visão, mas não
na chuva a morte infeliz das folhas.

Vamos fazer uma viagem! Vamos ver debaixo dos ciprestes
ou também das palmeiras ou das plantações de laranjas
a preços reduzidos o crepúsculo inigualável!
Vamos esquecer as cartas não respondidas ao ontem!
O tempo faz milagres. Mas quando nos alcança em momento 
errado,
com o pulsar da culpa: nós não estamos em casa.
No porão do sentimento, sem dormir, me encontro
no debulho do escárnio, na manobra outonal do tempo.


tradução: Viviane Santa de Paulo

Então o vento manda os trilhos na frente,
seguiremos em vagarosos trens
e povoaremos estas ilhas
Confiança por confiança.

Na mão do meu amigo mais antigo coloco
meu ofício de volta; o homem da chuva governa
agora minha casa sinistra e completa
as linhas no livro da culpa, que eu tracei
desde que me tornei cada vez mais estranho.

Você, com a batina branco-febril,
recupera os desterrados e retira
da polpa dos cactos um espinho
o símbolo da impotência,
para o qual nos curvamos sem querer.

Sabemos,
que permaneceremos prisioneiros do continente
e à mercê de novo de suas injúrias,
e a maré da verdade
não se tornará ainda mais rara.

Dorme então nos rochedos
do crânio pouco iluminado,
a garra segura na garra
na escura pedra, e curados
estão os estigmas no violeta do vulcão.

Da grande tempestade de luzes
nenhuma alcançou a vida.

Assim pego do sal,
quando a maré nos sobe,
e regresso
e o coloco no umbral
e entro em casa.

Dividimos um pão com a chuva,
um pão, uma culpa e uma casa. 


tradução: Viviane Santa de Paulo

The summer's heavy cargo has been loaded,
waiting in the harbor a sun ship lies,
as at your back the sea gull dips and cries.
The summer's heavy cargo has been loaded.

Waiting in the harbor a sun ship lies,
and there upon the lips of figureheads,
the lemur's mocking smile appears and spreads.
Waiting in the harbor a sun ship lies.

As at your back the sea gull dips and cries,
from the western horizon comes the order to sink;
you'll drown, open-eyed, in the light you'll drink,
as at your back the sea gull dips and cries.

Coloca uma palavra
no vale da minha nudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.


de O Tempo Aprazado

tradução: Judite Berkemeier e João Barrento

Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas,
a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão
da folhagem, antes tão leve nos arbustos,
segue-nos agora de perto.

Onde quer que se apague o incêndio das rosas,
a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante!
Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas
e segue-nos até à foz.


de O Tempo Aprazado, Assírio & Alvim, 1992

TODOS OS DIAS

A guerra já não se declara,
continua-se apenas. O que brada aos céus
torna-se o dia a dia. Os heróis
ficam longe das batalhas. Os fracos
recuam para a linha de fogo.
O uniforme do dia é a paciência,
a medalha a mísera estrela
da esperança sobre o coração.

Atribui-se,
quando já nada acontece,
quando os canhões se calam,
quando o inimigo se torna invisível
e a sombra da armadura perpétua
cobre o céu.

Atribui-se
à deserção das bandeiras,
à audácia frente aos amigos,
à traição de segredos indignos,
ao não acatamento
de qualquer ordem.

DIZER ESCURO

Tal Orfeu toco
nas cordas da vida a morte
e na beleza da terra 
e dos teus olhos que mandam no céu,
só sei dizer escuro.

Não esqueças, que também tu, de repente,
naquela manhã, com a cama
ainda molhada de orvalho e o cravo
a dormir no coração, 
viste o rio escuro
a passar por ti.

Com a corda silêncio
tensa na onda de sangue,
agarro o teu coração.
Tuas madeixas mudavam,
tornavam-se cabelos de sombra da noite,
flocos negros de treva
nevavam no teu rosto.

E eu não sou tua pertença.
Ambos nos queixamos já.

Mas tal Orfeu sei
na borda da morte a vida,
e azula-se-me
o teu olhar para sempre fechado.

TERRA DE NÉVOA

No Inverno a minha amada
está com os bichos na mata.
Que eu tenho de voltar antes do dia,
a raposa sabe-o e ri.
Tremem tanto estas nuvens! E
na minha gola de neve cai
uma cama de gelo quebrado.

No Inverno a minha amada
é uma árvore entre as árvores e
convida aos belos ramos
os corvos abandonados da sorte. Sabe
que o vento, ao anoitecer, lhe levanta o
vestido hirto de noite e geada,
e me leva para casa.

No Inverno a minha amada
Vai silenciosa com os peixes.
Servindo as águas, movidas adentro
pelo o fio das barbatanas,
eu fico na margem e vejo-a
mergulhar e revirar,
enquanto os gelos não me expulsam.

E de novo, ao embate do grito
da ave que me ampara
com a asa, desabo
num campo aberto: a amada depena
as galinhas e atira-me
uma clavícula branca. Ponho-a ao pescoço
e afasto-me por entre a penugem amarga.

Infiel é a minha amada,
eu sei que às vezes flutua
de saltos altos até à cidade,
beija nos bares com a palhinha
os copos profundamente na boca
e vêm-lhe palavras para todos.
Mas eu não percebo o idioma.

Vi terra de névoa.
Comi coração de névoa.

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