Sombras Errantes
O tempo passou, transformou tudo em gelo.
Sob o gelo, o futuro bulia.
Se caísses lá dentro, morrias.
Era um tempo
de espera, de acção suspensa.
Eu vivia no presente, que era
a parte do futuro que podíamos ver.
O passado pairava sobre a minha cabeça,
como o sol e a lua, visível mas inalcançável.
Era um tempo
governado por contradições, como
Não sentia nada e
tinha medo.
O inverno esvaziou as árvores, voltou a enchê-las de neve.
Como eu nada sentisse, a neve caiu, o lago gelou.
Como se eu tivesse medo, permaneci imóvel;
o meu bafo era branco, uma descrição do silêncio.
O tempo passou, e uma parte dele tornou-se isto.
E outra parte evaporou-se simplesmente;
podíamos vê-la a pairar sobre as árvores brancas,
formava partículas de gelo.
Esperas a vida inteira pelo momento oportuno.
Depois o momento oportuno
revela-se acção consumada.
Eu via mover-se o passado, uma fila de nuvens a avançar
da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda,
consoante o vento. Por vezes
não havia vento. As nuvens pareciam
ficar onde estavam,
como uma pintura do mar, mais imóveis do que reais.
Por vezes o lago era um lençol de vidro.
Sob o vidro, o futuro murmurava,
modesto, convidativo:
tinhas de te concentrar para o não ouvires.
O tempo passou; chegaste a ver parte dele.
Os anos que levou eram anos de inverno;
ninguém lhes sentiria a falta. Por vezes
não havia nuvens, como se
as fontes do passado tivessem desaparecido. O mundo
perdera a cor, como um negativo; a luz atravessava-o
de lado a lado. Depois
a imagem apagava-se.
Por cima do mundo
só havia azul, azul em toda a parte.
Louise Glück
Paisagem
tradução – Rui Pires Cabral
foto: at
foto:at
Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.
foto: at
Contar os grãos de areia destas dunas é o meu ofício actual. Nunca julguei que fossem tão parecidos, na pequenez imponderável, na cintilação de sal e oiro que me desgasta os olhos. O inventor de jogos meu amigo veio encontrar-me quase cego. Entre a névoa radiosa da praia mal o conheci. Falou com a exactidão de sempre:
"O que lhe falta é um microscópio. Arranje-o depressa, transforme os grãos imperceptíveis em grandes massas orográficas, em astros, e instale-se num deles. Analise os vales, as montanhas, aproveite a energia desse fulgor de vidro esmigalhado para enviar à Terra dados científicos seguros. Escolha depois uma sombra confortável e espere que os astronautas o acordem".
Porque tem consciência da inutilidade de tantas
coisas
às vezes uma pessoa senta-se tranquilamente à sombra de
uma árvore – no verão –
e cala-se
(...)
foto: at
evocando Léona Delcourt
foto: Darren Holmes
Como um bálsamo que não consola senão pela ideia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.
"É espantoso o que uma cabeça oca pode conceber. É um perigo iminente uma cabeça vazia. Instava enchê-la de pensamentos, o mais depressa possível, antes que fosse tarde e ela própria gerasse ideias nascidas lá dentro, sem nenhuma relação com o que existisse cá fora."
Manuel de Lima
Malaquias ou a história de um homem barbaramente agredido, Ed. Estampa, 1972
foto: Radar360
As imagens transbordam fugitivas
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?
Sophia de Mello Breyner Andresen
Fotos: Karl Blossfeldt
"As coisas que os líquenes comem
sapatos, adjetivos
têm muita importância para os pulmões
da poesia"
foto:at
A explosão o fogo o rio de lava
no mar a natureza volátil do teu fim
no ar cinzas alvoroçadas prenunciam
o clima a mudar dentro de mim.
at
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada: hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
foto: at
«A morte nunca morre. O tempo encarrega-se da reanimação consecutiva. O amor morre com frequência: umas vezes à nascença, outras devido à seca extrema, com frequência levado na tempestade.
A morte esconde-se em fotografias, nas janelas entaipadas, no nariz tantas vezes. Como não vive, não envelhece.
Está sempre disponível, é forte, concreta e fiável. Fingimos que o amor nunca morre porque somos dados ao espiritismo.»
Amor e Ódio, Quetzal, 2008
foto: Gregory Crewdson
Os objectos são opacos
a toda a inquirição. Assemelham-se
à destruída presença da história,
aos estilhaços sem devolução precisa.
Abriu o armário: sapatos desirmanados
apodreciam lentamente, uns sobre os outros.
Regressou à imagem de horror banal:
a preto e branco montanhas de sapatos
após o extermínio
de Mais espesso que a água, Edições Cotovia, 2008
foto aqui
"Nunca fui muito de escrever mas a verdade é que durante o ano de 1977, escrevi um diário. Durou dois meses. Qual não foi o meu espanto quando descobri que um tal Bernfried Järvi, escreveu ao mesmo tempo um diário como o meu.
*
Deito-me e há um violoncelo dentro da minha cabeça
Mais ninguém ouve. Só eu sei quem me está a tocar.
*
Saímos do liceu às seis da tarde. Foram todos para casa de autocarro. Eu fui a pé a ver se me inspirava. Como não sei escrever poemas, fumei um maço de cigarros.
*
Ler um bom livro é a pior coisa que me pode acontecer. Quando um livro é mesmo bom, desapareço na minha insignificância.
*
Manhã cedo. Desconheço o meu rosto no espelho. Fecho os olhos, sombreio as pálpebras e corro para apanhar o autocarro.
*
Que me resta fazer? Tento dormir. Mas mergulhar no sono não me faz esquecer.
*
Percorria a rua Miguel Bombarda, ao fim da tarde, quando um telhado me caiu em cima. Uma nuvem de pássaros cobriu o céu. Sobrevivi às telhas. Difícil mesmo foi limpar as cagadelas.
*
No instante em que escrevo isto, estou à espera. Estou há tanto tempo à espera que até me esqueço. Estou muito longe. Não espero mais por mim.
*
Não me lembro do que sonhei a noite passada. E isso é mau. Porque era certamente um sonho bom. Os sonhos maus continuam vivos a manhã inteira.
*
Atravesso a rua com um saco carregado de nuvens. Se o saco tivesse maças, ou pêssegos ou laranjas sempre podia encher a barriga.
*
Uma borboleta voava e pousava, voava e pousava. Fim.
Bernfried Järvi
Outubro/Novembro de 1977"
Bernfried Järvi, escreveu pelo menos dois poemas e o diário dele continuou nos cadernos publicados em 2019 por Rui Manuel Amaral
imagem: Chema Mandoz
Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.
Fernando Pessoa
in 'Cancioneiro'
foto: at
para a Filipa
"Crónicas islandesas contam que em tempos viviam neste país homens vindos do oeste, que deixaram para trás crucifixos, sinos e outros artigos que tais, utilizados em práticas de feitiçaria. Em fontes latinas estão registados os nomes daqueles homens que das ilhas a Oeste navegaram até cá nos primórdios do papado.
O seu líder chamava-se Kólumkilli, o irlandês, um conhecido feiticeiro. Naquela altura a terra na Islândia era extremamente fértil. Mas quando os noruegueses se instalaram aqui, os feiticeiros do Oeste deixaram o país, e registos antigos dizem que, para se vingar, Kólumkilli amaldiçoou os novos habitantes, rogando que eles nunca ali gozassem de prosperidade, o que mais tarde veio a tornar-se realidade."
o começo de Gente Independente, Cavalo de Ferro, 2007
foto: Desmond Cannon
O céu não precisa de razões
at
foto: Sam Taylor-Wood
"A planície que se estende até Haarlem é vista de cima, das dunas, é o que se costuma dizer, mas a impressão de vista aérea é tão acentuada que as dunas teriam que ser verdadeiras colinas ou mesmo uma serra pequena.
Na verdade, não foi numa duna que Ruysdael esteve a pintar, mas num cume artificial, imaginário, algures acima do mundo.
Só daí podia ver tudo, o vasto céu nublado que ocupa dois terços e todo o quadro, a cidade que, tirando a catedral de S. Bavon que se ergue acima de todas as casas, mais não é que uma prega do horizonte, a mancha escura dos arbustos e matas, a quinta no primeiro plano e o campo, radioso, onde tinham posto a corar lençóis brancos e onde andam a trabalhar, contei eu, umas sete ou oito figuras com menos de meio centímetro."
Os Anéis de Saturno; Teorema, 2006
Nenhum de nós sofre tanto como devia ou ama tanto como diz. O amor é a primeira mentira; a sabedoria a última.
O Bosque da Noite; Relógio d'Água, 1987
foto:at
O mar rugia como um tigre.
O mar sussurrava aos ouvidos como um amigo a contar segredos.
O mar tilintava como moedinhas no bolso.
O mar troava como avalanches.
O mar soava como alguém a vomitar.
O mar era um silêncio de morte.
E entre os dois, entre o céu e o mar, estavam todos os ventos.
Yann Martel
A vida de Pi, Difel, 2004
fotos: at
O céu era invadido por grandes nuvens brancas.
O céu estava finamente encoberto.
O céu estava raiado por nuvens altas e finas que pareceiam uma meada de algodão esticada.
O céu era pintado...
O céu era muitas nuvens em muitos níveis, algumas espessas e opacas, outras que pareciam fumo.
O céu era uma densidade de nuvens de chuva escuras e tempestuosas que passavam sem deixar cair a chuva.
O céu era negro e cuspia chuva
Yann Martel
A vida de Pi, Difel, 2004
fotos: at
Meia volta e arfo
Meia volta outra emboscada
Subiram-me o pitch
ando às aranhas
alguém que,
talvez tu, me apanhasse
e eu me sentasse
primeiro no lancil
do passeio para descansar,
lá fora p'ra variar.
Vejo que ainda aí estás parado.
Com mãos nos bolsos,
mascas as variáveis dum poste encostado.
Recomponho-me num respiro,
ajeito a alça do vestido
e a jeito de desafio digo:
-Ai é em pé? Em pé é que é!
Levanto-me meio-soprano
Chego quase onde não convém
Tens uma placa mesmo no meio do peito que diz:
Proibido morder, arranhar, lamber e farejar.
Recuo, costas na cal
Tu mirada y la palavra que no sale
Senta!
e eu sentei.
Então fizeste-me uma festa.
p a u s a
mas logo me ponho a lamber a pata
ou fico a olhar para ti com a língua de fora
(provavelmente a pensar num osso)
foto: Thomas Ruff
"Claro que pode amar quem quiser. Mas talvez doravante deva guardar o seu amor para si, como uma pessoa guarda uma constipação ou um ataque de herpes para si, por uma questão de consideração pelos vizinhos"
O Homem Lento, Dom Quixote, 2008
imagem: Isa Genzken
Começa com uma pancada violenta, surpreendente e dolorosa. O sangue irrompe, os membros ficam deslassados, o corpo tomba como um boneco de madeira.
O espírito desliza, prestes a tombar. O homem acorda, sozinho, mais velho, tolhido, com uma perna a menos.
Numa perspectiva mais ampla, perder uma perna não é mais que um ensaio para perder tudo.
Slow Man é um livro estranhamente belo.
créditos: J.M. Coetzee, "O Homem Lento", Dom Quixote, 2008
imagem: Hermann Nitsch
"A arte é um animal. Passa longo tempo fechado em edifícios e casas, a olhar pela janela ou deixando-se aquecer controladamente pela a luz artificial. Até o mais radical ou rebelde acaba por ficar sob o teto, protegido. Devidamente mantido, quieto, silencioso. Preservado, às vezes, durante séculos.
A arte é, em geral, um animal doméstico. Talvez um gato. Um felino que ainda não perdeu totalmente o instinto predador. Nos úlimos tempos tem aparecido uma espécie que circula pela cidade, que aparece e desaparece, e deixa suspenso no ar o seu sorriso como o enigmático gato de Cheshire.
(...)
É um animal que salta ao nosso encontro em qualquer esquina. É um animal que nos torna um pouco menos domésticos."
foto aqui
Fartei-me de te esperar. Atravessei-me em todas as tuas direcções. Andei para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita, para que me encontrasses.
Tencionava dizer-te como te esperei para sempre. Decorei meia dúzia de frases de romance de cordel, dúzia e meia de palavras de faca e de alguidar para te impressionar.
Ansiava todo o dia ver-te aparecer ao longe (mesmo sabendo que o teu corpo é impossível). Tinha mesmo saudades tuas. Estou mesmo mortinha por te deixar.
escrito a quatro mãos com o Eduardo
desenhos e colagem da Marta
Escrevo cansada
os dedos a pedirem caminha
as pernas, as costas, os braços
a pedirem
um colchão de penas
onde cair.
Digo coisas apenas
com os pés doridos tropeço
nas palavras todas.
Podem ser muitos os caminhos
onde se cai sem saber como sair.
at
(créditos: David Esteves e Manuel de Freitas)
foto: Thomas Demand
Quero que morras de amor por mim, agora que eu já não morro de amor. Quero que morras por mim, agora que estou morto e já não posso morrer de amor por ti. Como um coração que morre por outro coração, quero que morras de amor por mim agora, como antes eu morria, quando ainda tinha coração e podia sentir e não tinha ainda morrido de amor por ti. Agora que tenho o coração morto, quero-te assim, morrendo também de amor por mim.
El caso de una sangre derramada, 2008
tradução: at
foto: André Kertész
Se quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.
Sou místico, mas só com o corpo.
A minha alma é simples e não pensa.
O meu misticismo é não querer saber.
É viver e não pensar nisso.
Não sei o que é a Natureza: canto-a.
Vivo no cimo dum outeiro
Numa casa caiada e sozinha,
E essa é a minha definição.
Havia dias em que a alma lhe caía, ficava com a alma baixa, entre os pés, quase a rasar o chão. A alma descaída sob suspeita, dizia.
Nesses dias, um mau olhar, uma falta de atenção ou uma frase qualquer, um adjectivo a mais, algo inesperado, em suma, podia estropiá-lo completamente e dar cabo dele e da sua alma, no meio da rua.
Isto vinha a acontecer desde que lhe contaram uma história, a sua própria história, aquela que ele recordava ter vivido de outra maneira, quase feliz.
Mas agora já sabe, já lhe contaram como essa história de amor se estropiou antes do fim, ao longo dos últimos meses. Quando ambos se separaram e ele rastejou até à praia dos mutilados, ignorava completamente o que mais tarde lhe contariam com todos os detalhes: que já havia indícios de manchas entre os dedos daquele amor, muito antes de acabar mal.
Por isso agora, diz que há dias em que a alma lhe cai ao chão e lhe fica entre os pés, embaraçada nos atacadores dos sapatos.
El caso de una sangre derramada
Moment Angular, emboscall,2008
tradução; at
foto: Debbie Fleming Caffery
um homem de uma mulher pode ocupar toda a casa
sem nunca o saber. em todas as coisas que uma casa
pode ter
uma mulher pode refazer a cada dia
o seu homem
e deitá-lo
sentá-lo
aninhá-lo entre as sertãs e os pratos da loiça de viana
entre as linhas de coser e
as cortininhas de chita que o tempo
embolorece. há um homem
a dormir nesta cama
muito depois de o homem
partir.
na criatura
foto: Imogen Cunningham
como pedras
soltas
entre dentes
as palavras
tropeçam
na língua
prendem-me
a voz
não digo
nada
cuspo vocábulos
redondos
solto sílabas
duras
como pedras.
at
foto: Ann Hamilton
Há algo de assustador nos fantasmas das casas novas:
Os fantasmas das casas velhas já são maus quanto baste:
Mas os fantasmas das casas novas são terríveis.
A grande novidade destas novas e desoladas casas
Já seria bem terrível sem os fantasmas.
Mas os fantasmas também são novos.
Raparigas tristes com blusas azuis
E pessoas nos seus assados de Domingo
Sob a grande luz do dia, dentro destas casas novas
Em ruas onde os homens varrem o vidro partido.
Malcolm Lowry
As cantigas e outros poemas do álcool e do mar
Assírio & Alvim, 2008 tradução: José Agostinho Baptista
foto: Richard Koenig
nunca percebi muito de vozes
mas se te ouço
mesmo quando é difícil entender
cada palavra
faço do corpo um espaço de silêncio
Foto: Francesca Woodman
Acordar, ser na manhã de Abril
A brancura desta cerejeira;
Arder das folhas à raiz,
Dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos,
O vento, a luz ou o que quer que seja;
Sentir o tempo, fibra a fibra,
A tecer o coração duma cereja
Bato no fundo,
Bato nas pedras do fundo.
Julgava tudo quieto
e vai a corda parte,
caio por aqui abaixo,
digo, até ao fundo.
Levanto os olhos: ai
aquele brando som
que me chega tão cavo;
ai, digo, e estou no fundo.
Bato, bato nas pedras.
Mexo-me pouco. Magoa
respirar.
No fundo, limos, pedras,
sons que se escapam nos...
Limos, por aqui abaixo.
foto: Alex Kirkbride
"E ele, sem parar, continuava a olhar para a sombra, lá ao longe, onde devia haver uma saída salvadora."
A Tortura da Esperança
A Biblioteca de Babel- Colecção de literatura fantástica dirigida por Jorge Luis Borges. Ed. Presença, 2007
foto: di
Amo a vida simplice das coisas.
Quanta paixão vi desfolhar-se, a pouco e pouco,
por cada coisa que passa.
Mas tu não me compreendes e sorris.
E julgas que estou doente.
tradução: Jorge de Sena
foto: Carlos Veríssimo (d'aqui)
"Sofrimentos, dúvidas e alegrias, a inocência e a confusão da infância, o cinismo e a confusão da idade adulta, são tratados com uma ironia aguçada e um humor desarmante.
E longe de ser um lamento sentimental ou previsível, Persépolis recusa o trivial ou o moralismo. E se tem alguma ideologia, é a da integridade pessoal nas relações humanas."
Algo
frio está no ar,
uma aura de gelo
e apatia
Todo o dia construí
uma vida inteira e agora
o sol afunda-se para
a desfazer.
O horizonte sangra
e chupa o seu polegar
o pequeno polegar vermelho
desaparece.
E eu interrogo-me sobre
esta vida inteira comigo,
este sonho que estou a viver.
E podia comer o céu
como uma maçã
mas prefiro
perguntar à primeira estrela:
porque estou aqui?
porque vivo nesta casa?
quem é o responsável?
hã?
tradução: Maria Sousa
foto: at
A morte
grita
no bosque
com mil
bocas
geladas.
A morte
dança
esta valsa
com ondas
azuis
de desejo.
A morte
pinta
os telhados
com lírios
brancos
de pranto.
A morte
toca
esta valsa.
Eu quero
morrer
nos teus braços.
créditos: G. Lorca e L.Cohen
foto: Cristopher Voelker
“Vamos voltar a fingir que a vida é uma substância sólida, com a forma de um globo, e que a podemos fazer girar por entre os dedos.
Vamos fingir ser capazes de elaborar uma história simples e lógica, de forma a que, uma vez encerrado um assunto – por exemplo, o amor – possamos avançar de forma ordenada para o ponto seguinte.”
As Ondas
foto: Sarah Hobbs
“Apesar de tudo, a vida é agradável, tolera-se. À segunda, segue-se a terça e depois a quarta. A mente constrói anéis; a identidade torna-se mais robusta; a dor é absorvida no processo de crescimento.
Sempre a abrir-se e a fechar-se, zumbindo cada vez mais, a velocidade e a febre da juventude são aproveitadas para o trabalho, até o ser nada mais parecer do que o mecanismo de um relógio.
Com que velocidade a corrente segue de Janeiro a Dezembro! Somos arrastados por tudo aquilo que se nos tornou tão familiar que não chega a projectar sombra. Flutuamos, flutuamos...”
As Ondas
foto: at