Anna Akhmátova
Anna Akhmátova, pseudónimo de Ana Andreievna Gorenki, nasceu nos arredores de Odessa a 24 de Junho de 1889 e morreu perto de Moscovo em 1966. Não há maior poetisa russa. Escreveu o primeiro poema aos 11 anos. Akhmatova traduziu o sofrimento em métrica poética, chamou as coisas pelo nome, amou e foi amada, não fugiu à desgraça e agora é a Anna de todas as Rússias.
Nasceu no mesmo ano em que nasceram Chaplin, a Sonata de Kreutzer de Tolstoi, a Torre Eiffel e TS Elliot. Durante a Segunda Guerra teve um curto tempo de sucesso, lia na rádio os seus poemas porque Estaline achava que era a altura de usar a poesia para levantar o fervor patriótico russo. Depois da guerra foi proscrita, declarada "uma combinação de 'freira e de prostituta'" cuja poesia nada teria a ver com o povo. Foi-lhe dado emprego numa biblioteca, e escrevia às escondidas, sem poder publicar. Entre 1921 e 1953 muitos dos seus amigos mais próximos emigraram, foram mortos ou feitos prisioneiros.
Em 1956 quando Krutchov assumiu o poder, Anna saiu do estado de desgraça estalinista em que tinha vivido. Em 1964 tornou-se presidente da União dos Escritores Soviéticos e em 1965 recebeu um doutoramento 'honoris causa' em Oxford. Joseph Brodsky, outro poeta russo que foi seu amigo nos últimos anos de vida, definiu-a como uma poetisa de métrica estrita, rimas exactas e frases curtas.
A sintaxe é simples, e livre de cláusulas subordinadas... Anna é o produto da tradição de Petersburgo assente no classicismo europeu e nas suas origens gregas e romanas. Escreveu mais de 800 poemas. Também escreveu prosa autobiográfica e sobre Pushkin. Foi amiga de Boris Pasternak, Mandelstam, Block e conheceu Tsvetaeva. Anna era uma mulher bonita, elegante, aliás escanzelada porque passou muita fome, uma mulher que suscitou paixões. Foi desenhada por Modigliani, fotografada por Nappelbaum, esculpida por Danko e pintada por Tyrsa e Vodkin.
Ver mais: La poesía en el "gulag"/ blogletra / poetisa do desespero / poemas sociais
SEGREDOS DO OFÍCIO
1. Trabalho criador
Assim acontece: uma lânguida inquietude;
o relógio não pára de bater nos ouvidos;
ao longe estrondos da trovoada, esmorecidos.
Ouço das obscuras vozes, prisioneiras,
como que as lamentações e os gemidos,
aperta-se um anel secreto, mas já se alteia
neste abismo de murmúrios e de tinidos
um destacado som que a todos suplanta.
Em torno tudo é silêncio tão irreparável
que se ouve a erva a nascer na floresta
e o homem com sua trouxa errando pla terra...
E já se enxerga o dia, se vislumbram palavras,
soam longínquos repiques leves de aviso -
e logo dentro de mim tudo se percebe,
e as linhas simples, a todo o seu comprido,
vêm deitar-se na folha virgem da neve.
2.
De nada me servem as hordas de odes
nem as elegias lamentosas.
Nos versos deve ser tudo fora de ordens,
da família as ovelhas ranhosas.
Nem imaginam de que lixo, sem vergonha,
crescem os poemas, como na valeta
urtigas, bardanas, peçonha de ervas
e a pobre flor careca.
Um grito irritado, cheiro fresco a breu,
o bolor misteriosos na parede...
E já soa o verso alegre, meigo, meu,
para minha alegria e vossa sede.
3. Musa
Como posso viver com este fardo,
que de Musa se atreve ao apelido...
Dizem: «com ela te deitas no prado...»
e dizem: «é o divino zumbido...»
Mais do que febre, dá um coice inumano,
depois nem mais um pio todo o ano.
4. Poeta
Que grande mistério este trabalho,
esta vida de nenhuma agrura:
espiar qualquer coisa da música
e fazê-la passar por coisa sua.
E intrometer por entre as linhas
um scherzo de outrem bem alegre,
jurando que na luz das pradarias
é teu pobre coração que geme.
Roubar qualquer coisa aos pinheiros
da negra floresta taciturna,
enquanto ergue os seus nevoeiros
a toda a volta a cortina de bruma.
E ir procurar - impúdica -,
por onde calha e me aventuro,
alguns pedaços da vida oblíqua
e, ao silêncio da noite, tudo.
[Verão de 1959, Komarovo]
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Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição...
Agora compreendes porque já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.
tradução: Nina Guerra e Filipe Guerra
de Só O Sangue Cheira A Sangue, Assírio & Alvim, 2000
Um colarzinho de contas no pescoço,
as mãos sumindo num amplo regalo.
Os olhos passeiam em torno distraídos
e já não têm mais com que chorar.
A seda, que é quase violeta,
faz o rosto parecer mais pálido.
A franja, de cabelos tão lisinhos,
já chega até quase as sobrancelhas.
Não se parece em nada com um vôo
esse jeito lento de andar
como se numa jangada pisasse
e não nas pranchas firmes do assoalho.
A boca pálida, entreaberta,
o fôlego cansado, ofegante...
contra o peito treme o ramalhete
deste encontro contigo que não houve.
tradução: Lauro Machado Coelho
encontrado aqui
Ciumento, Terno
Ciumento, terno, inquieto,
como um sol divino amava.
Matou-se o pássaro branco,
porque ao passado cantava.
Entrava ao poente em meu quarto:
"Ama-me e ri, escreve versos!"
Enterrei o alegre pássaro
além da fonte, ao pé do tronco antigo.
Prometi-lhe não chorar.
Tenho em pedra o coração.
E é como se em toda a parte
ouvisse a doce canção.
Como Pedra Branca
Como pedra branca no fundo do poço
dentro de mim está uma memória.
Nem quero afastá-la, nem posso:
é sofrimento e é prazer e glória.
Julgo que quem olhar-me bem de perto
dentro em meus olhos logo pode vê-la.
E ficará mais triste e pensativo
que alguém que escute uma anedota obscena.
Eu sei que os deuses metamorfoseavam
os homens em coisas sem tirar-lhes alma.
Para que o espante da tristeza dure sempre,
em coisa da memória te mudei.
Tradução: Jorge de Sena
poemas encontrados aqui (desactivado)
Diante dessa dor curvam-se os montes,
O Grande rio já não corre,
Mas são fortes as trancas das prisões,
E atrás delas os "covis de forçados"
E uma angústia mortal.
Para quem sopra a brisa leve,
A quem enternece o pôr-do-sol —
Não sabemos, por toda parte iguais,
Ouvimos só o hediondo estridor das chaves
E os passos pesados dos soldados.
Levantávamos como para a missa da manhã,
Íamos pela cidade embrutecida,
Nos víamos lá, mais exânimes que os mortos,
O sol mais baixo e mais nublado o Nieva,
Mas a esperança ainda cantando ao longe.
A sentença... E as lágrimas irrompem,
De todos já afastada,
A vida arrancada do coração aos gritos.
Derrubada de costas, brutalmente,
Mas ela anda... Cambaleia... Só...
Onde estão as amigas prisioneiras
Dos meus dois anos de inferno?
O que elas vêem na tormenta siberiana,
O que tremeluz no halo da lua?
A elas, meu adeus de despedida.
(Março 1940)
Tradução: Aurora F. Bernardini e Hadasa Cytrynowic
Bebo ao lar em pedaços,
À minha vida feroz,
À solidão dos abraços
E a ti, num brinde, ergo a voz...
Ao lábio que me traiu,
Aos mortos que nada vêem,
Ao mundo, estúpido e vil,
A Deus, por não salvar ninguém.
Tradução: Rubens Figueiredo