Sarah Adamopoulos
Sarah Adamopoulos é jornalista. Nasceu na Holanda em 1964, já foi grega, apátrida e, finalmente portuguesa. Ligada à Internet desde 1996, um dos seus objectivos é conseguir fazer do jornalismo online um novo caminho para a Comunicação Social. Foi editora do Top 5% WebZine e co-autora da página Cyber Tango .
Sarah é autora do blog “a espuma dos dias”. Publicou 4 livros: a vida alcatifada, Fenda edições(1997);os implicados, publicações dom Quixote (1998); viver mata, oficina do livro (2001) e tudo sobre a minha filha, oficina do livro (2002). Em Novembro de 2017 publicou com a Douda Correria o seu primeiro e único livro de poesia, A Única Palavra. O seu trabalho literário tem sido fragmentado, disconforme, durante muitos anos devido à necessidade de gerar rendimento através dos ofícios da escrita – único modo de se manter perto da literatura e com os olhos postos num projecto literário que a sua condição de escritora e ligação profunda à arte de escrever fortemente têm sugerido.
"Gosto de gatos, de pintura, de poesia [cada vez mais]; apenas a arte contemporânea me interessa verdadeiramente; amo a música; de vez em quando apetece-me cantar o fado; nada me liga aos bens materiais, nem ao progresso pelo progresso, nem ao poder; prefiro as flores, os frutos, o que eu própria cozinho; sou francófona e bilingue mas escrevo melhor em português; nasci na Holanda, por acaso; sinto-me muito bem na Grécia; tenho uma obsessão misteriosa por Portugal; muitas vezes gostava de ser outra pessoa; tenho a íntima convicção de que para mudar de vida basta deitar fora o telemóvel; tenho sentimentos contraditórios em relação a muitas coisas; não defendo a coerência nem nenhum princípio pelo princípio; julgo que teria sido mais feliz se tivesse vivido nos anos 30; respeito o suicídio; penso que a Educação é a única grande missão política."
S.A,
HUM?
[hiato]
recordo-te a respirar ali
a casa no silêncio
o silêncio em ti
tu em mim
e depois não me lembro de mais nada.
esbracejo por entre os livros
em busca das palavras que
aquecem ou das que acordam ou
das que resgatam que lançam
que salvam que lembram que mostram
que gritam e me derrotam
esta descrença torpe.
saudades
- o que são?
alegrias
tombadas
vagalumes
vacilantes
destroços
por varrer
tralha
com valor
afectivo.
disforia
como se tudo fosse
demasiado antigo
irreal (surreal?)
os retratos
de alegrias convicções
aspirações de ontem
que tempo é este que vive
nos olhos de velhos
demasiado novos
que tempo é este
que também é meu?
as serpentes e os lobos aos serões
contam as estrelas e os mitos e há
sempre uma passadeira rolante que
passa a dizer I love you baby mesmo
quando o quadro é todo preto e é
noite e o teu desejo descamba.
olhos rasos de ti
as vozes da crianças
as próprias crianças
tudo cessou, ficou
suspenso o futuro
apenas a tua voz e
uma perplexidade
liquefacta ponte branca
para a noite, o mundo
a fechar - que importa.
sei lá eu que fazer
daquele dia a cair
como simplesmente
continuar depois
daquele still?
FELTRO
[ao ouvido]
diz-me o caminho diz
onde diz como e com
que palavras e sem
que palavras e diz-mas
baixinho cuidado não
faças barulho não digas
antes que chegue
o nome e o sentido
do que devagarinho
queima entre um
silêncio e outro.
PUDESSES PARTIR DE VEZ
sai de mim
Nunca mais acabas de partir
é um horror a tua viagem
para longe de mim, o teu
regresso a uma vida onde
não tenho lugar, o teu
regresso a um lugar onde
não faço sentido, a tua
infinita partida, os teus
despojos por todo o lado,
é um horror tu dentro de
todos os poemas.
PATINAGEM
superação
uma vontade insana de fumar
os dedos contorcendo-se
numa agonia calada
as mãos à toa senhores
uma vontade de desfigurar
de irreversivelmente punir
tudo o que em mim te inquieta.
RECOMPOSIÇÃO
A viúva
"Todos os dias eu choro um quarto de hora ou assim, depois lavo a cara, limpo as lágrimas, e vou para a rua passear."
luto tenaz
é claro que penso em ti todos os dias. todos. penso com raiva, penso com uma revolta transtornada, e depois, depois penso com uma tristeza que me invade inteira, qualquer coisa que me derruba, que me mata, e que esquecendo-me te esquece. até ao dia seguinte, é claro.
motim
quisera ser
outra nesta noite
outra pessoa
mas ela
a que zela
a raíz
a que não voa
não me deixa.
eu sei eu sei que não foi nada não foi nada podia ter sido mas quando quase esqueço quase durmo quase nada (não foi nada não foi nada) tropeço no que afinal me salva me resgata me enternece me derruba me renasce.
autoretrato
já tive mais medo
infinitamente mais
os dias rasgando
caminhos perversos
confluentes,
já fui outras mulheres
nenhuma como esta
e todas me surgem
estranhas e distantes
e até mesmo esta não
me coincide não me é
[eu temo-te, ela não].
APAGANDO-TE
[outra vez prece]
sei lá eu que fazer
com os dias sem ti
cerrando os olhos
a ver se deixas de
existir, miragem
oblíqua que nunca
mais Deus me livre
do logro e do pavor.
ESCULTÓRICA
reserva
Podias esculpir-me
fazer de mim coisa
que tu construias
com as mãos
e quando o meu corpo
fosse também teu
reservavas-me.
O MUNDO INTEIRO
espanto
São só nossas
aquelas palavras todas
a germinar
e a desordenar o mundo.
a game
e agora tu nem sequer eras real
e agora tu eras surreal
eras mais longe mais liberto
mais poema, ou então outro,
e agora tu eras outro.
AUTOAJUDA
Nunca mais o teu peito erguido
escrevo go on
escrevo just do it
mas logo depois
escrevo cure4pain
e escrevo noMoreU
e escrevo neverMore.
BORBOLETA
com alfinetes
Os dentes cerrados encarceram
as palavras que não te direi.
Eu sou a caixa que fechaste
o grito que calaste e tudo o
que em mim tocaste emudeceu.
ESPERA
do not disturb my baby
não toques não digas
não vejas não queiras
não faças barulho não
grites no meu silêncio
mineral, disseste.
A BRUTA FLOR DO QUERER
take me as I am
vem da vida, das entranhas, das raízes,
vem de outros torsos, outras proas
em chamas, esta raiva que ponho sem
querer em incêndios que não quisera
circunscritos.
vem de dentro, de baixo, de longe,
vem de ti,
esta inquietação sem tréguas este
saber-me poeira perante a insuportável
beleza do mundo.
poèmes choisis dans l'écume des jours
O meu caos no passeio da Almirante Reis,
o homem caído no chão ao contrário,
a dor do homem esparramada de barriga
para baixo, a marcha do mundo indiferente,
o homem a doer está vivo e basta-lhe.
Sou o homem caído, sou a dor que lhe enche
o peito desde ontem, sou os outros homens,
sou as mulheres deles a passar com sacos de
supermercado cheios de gordura e de açúcar,
sou a alarvidade deles, uma besta.
Quando o homem se levantar seguirei caminho
com ele, sou a sombra. Sou a sombra de mim
própria que já não sei ser, sou essa que sou
também para ti. E nada nessa representação
de mim me aproxima do caminho do meio.
Posso então prosseguir
sendo quem sou,
religando-me à única palavra
– a cada dia que passa
cresce em mim
a possibildade
de não existir mais nenhuma.
Subo serras que são ondas,
ouço fragas como búzios,
e vejo no espelho imenso do céu
assombros de balbuciar o pasmo.
Faço companhia ao caminho
e abro nele com as mãos
que o escrevem
e a voz que o canta
o poema que será concha
ou rio
ou árvore
ou Outro qualquer
– porque ainda não te disse
o que decerto não concebes:
somos um,
o mesmo,
múltiplos desse que pergunta
quem é
antes ainda de se reconhecer
existente
quando do mistério emerge
o estremecimento inefável
no grande paradoxo de ser assim
– estranheza da partícula
que olhando o Mundo
encontra nele
toda a beleza
e todo o horror.
E isto que digo, Auguste,
não será sentença, definição,
teorema com jargão,
mas tão-somente epifania do poema,
fasma dissolvendo-se na miragem,
logo recompondo a sua aparição
na metamórfica natureza da passagem.
Tão-pouco se quer oculta
esta ascese (ou lá o que é)
que me galga
opondo-se a que o poema
se interponha
– obscurecendo-as –
entre estrelas.
É contra a opacidade que escrevo
e não, não tergiverso
– apenas escavo dentro de mim
em tronco nu diante do Mundo.