Rosa Oliveira

Rosa Oliveira nasceu em Viseu, em 1958. Publicou os ensaios Paris 1937 e Tragédias Sobrepostas: Sobre «O Indesejado» de Jorge de Sena. Foi leitora na Universidade de Barcelona e é professora no ensino superior politécnico. Cinza, o seu primeiro livro de poesia (Tinta-da-china, 2013), foi galardoado com o Prémio PEN Clube Primeira Obra, e Tardio, o segundo (Tinta-da-china, 2017), recebeu o Prémio Literário Fundação Inês de Castro. Publicou mais dois livros de poemas: “errático” ( Tinta-da-China, 1920 e “Desvio-me da bala que chega todos os dias”, (não edições, 1921). 

Tem poemas publicados em varias revista e antologias

Os poemas de Rosa Oliveira acertam no coração do tempo: o tempo que tudo desfaz e de que tudo é feito, o tempo vivido que persiste em nos habitar, o tempo nas suas dolorosas e irónicas rotações. Outros temas a iquietam e movem - a memória, as relações com outras artes, as pessoas e os lugares que por ela passam e passaram, a História e os seus fazedores.

Atualmente, vive em Coimbra. 

 

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Poemas

o que fica da memória

o que fica da memória é um olho a piscar
o que fica da memória
gene que sobrevive ao tempo
momento único de uma década
sem testemunhas
certa frase entrecortada
perdura
gesto sobreposto em camadas de tempo
o buraco funerário do coelho
em fuga
um chapéu de bom feltro
a mão de setenta e seis anos nele pousada
alisa
a quilha hábil
moldada pelo século XIX

o que fica da memória
sobrevive
a doenças e quedas
entrou por algum poro da mente
ali ficou reclinado
acorda sob a luz de uma palavra
ergue-se à vibração de uma árvore interior

estava ali desde sempre
e nós em paz porque existia
silencioso
atento
era um ramo pousado no ombro do tempo
agitou-se
estendeu um braço de dentro do braço
amiba bocejante
um pseudo-braço
para sobrevivência instantânea

o que resta da memória é um pseudópode
vindo da periferia obscura
brilha como a múmia no museu deserto
do bairro degradado
depois volta a sair pela esquerda baixa
deixando atrás de si a memória desta memória
a reverberar
até se diluir em pó brilhante
lento
caindo a pique
na água cada vez mais escura dos dias
botânica caseira

foi no ano de magnólia, o filme
foi nesse longínquo ano em que ficámos encandeados a ver
a julianne moore a entrar e sair de farmácias para comprar morfina
e o tom cruise mais baixo que nunca num palco de onde cuspia labaredas
nesse ano distante ficámos confusos com as histórias cruzadas
ouvimos aquela música carregada de droga metálica
e regressou do nada uma jóia kitsch dos anos 70
os supertramp vinham como aliens
numa cena sentimento-pirosa
como lhes convinha

foi nesse ano nebulosa distante
no verão uma vaga de calor como não havia há 60 anos
(é o que dizem sempre)
os termómetros mantinham-se em incêndio permanente
eu emagrecera para engordar e voltar a emagrecer
tudo isto sem pensar muito
tudo isto mecanicamente
apenas para me manter a boiar à superfície da vida

a personagem mais só repetia comigo
«há um milhão de anos eu costumava ser inteligente»

oscar wilde cantava em reading
it’s not going to stop
‘til you wise up

as pessoas trabalhavam urinavam e voltavam a trabalhar
os dias seguiam em frente agarrados à flecha disparada

a magnolia grandiflora era um travesti da magnolia macrophyla

hoje vemos só bocas contorcidas
e acenamos à lombriga do tempo
arrastando-se penosamente
até ao take final

so just give up

 

pós-preditivo

atordoados
diante do arroz de favas
nós
pobres criaturas flaubertianas
um pouco imbecis
olhando o prato fumegante
sedentos de prosa alcoólica
e de religião demarcada
esperamos ver finalmente
os fontanários públicos
a mijar na cara dos passantes

 

de cinza, tinta da china, 2013

maduro

maio voa arrancado da parede
longos anos em que a poesia
teimava
impossível de entender
nada de mistérios e sussurros
no intestino
uma simples parede opaca
muda
como é próprio das paredes
e então lembrei-me
dos bróculos
a ferver há mais de quatro minutos
desculpem
vou pra dentro

 

canibalesca

há mil anos que tento perceber
como funcionam os objectos
básicos da sobrevivência
coisas como pernas brços pescoços
há mil anos que palavras pesadas
definitivas
se depositaram no meu interior
palavras que atravessam os muros
impassíveis no seu granito obstinado

 

always late, toujours en retard

aparentemente os sítios não mudaram de local
as coisas permanecem nelas
alguma gaguejam ao longe
por vezes as casas sobrevivem a custo
na sua respiração forçada
até os cheiros podem atravessar o tempo
trespassar pessoas
cruzar os dedos

lamento, gente toda desaparwcida
tinha tanta pressa que já não vou a tempo

 

retrovisor

ao espelho de soslaio
vou pôr todos os bâtons
por todas as minha caras
ates que seja tarde

 

 

de tardio, tinta da china, 2017

uma mulher pensa
veste-se mal
parece uma empregada doméstica
perdeu toda a dignidade no dia-a-dia
não podia ter escolhido roupas mais feias, desirmanadas, repulsivas
vem defender a tese como se estivesse em roupão
o corpo disforme esquecido
talvez não muito limpo
mas talvez isto seja só uma ideia
por não se depilar e deixar o cabelo crescer
sem nunca lhe dar forma
esta mulher estuda pensa
acolhe os nossos filhos
acarinha-os quando não estamos
ensina-lhes o que nós sabemos
mas não somos capazes de ensinar
chamam-lhe primária
continuam a chamar-lhe primária
mas ela sabe os segredos
truques que nos escapam
nós pais e mães
nós os das profissões mais ou menos liberais
que nos libertaram da escravatura e nos voltaram
a lançar nela de formas mais perversas
nós aparentemente sensatos, requintados
cada vez mais desorbitados
ignoramos o que ela faz todos os dias
como abraça trinta crianças de uma vez só
no nevoeiro mais matinal e no coração da canícula
estrada fora pelos dias dentro
entra na cabeça e no peito dos nossos filhos
e deixa a eterna semente da confiança
como o animal prenhe
do futuro indefinido mais que perfeito descomposto

de ERRÁTICO, edição Tinta da China

pode acontecer
descermos a rampa do supermercado
a caminho da via rápida que leva ao bairro
onde fazemos por morar
por acontecer
que lembremos
um verso particularmente vibrante
do último livrod de um poeta obscuro
e uma ligeira vertigem nos tome pela mão
nos desvie o olhar do mundo
e nos faça esmagar sem esforço
uma qualquer pessoa que fazia por atravessar
a estarda junto a um muro demasiado sólido

chama-se a isto inevitabilidade artística?

 

de Desvio-me da bala que chega todos os dias.não edições, 2021

Bernardim teve um problema grave com a mãe
sempre ausente sabe-se lá por onde
enquanto ele fazia de Peter Pan em casa
onde se travestia de menina e moça.
Sá de Miranda bem lhe falou ao coração
mas Bernardim não parou de sangrar até ao fim dos dias
Sá de Miranda viajado, vaidoso, eventualmente pedopsiquiatra,
o Dr. Sá de Miranda cortesão pedante rezam as crónicas não escritas da época
não conseguiu converter Bernardim à medida nova.
Enquanto isto, Ricardo Reis dava-se ao estoicismo
que era uma espécie de desprezo pelas paixões, luxúrias e outras.

Rezo para que nunca, mas nunca me dividam em partes
nem a mim nem aos poemas
mesmo aqueles que eu já tenha dividido
no momento áureo da maternidade.
E rezo sobretudo para que me esqueçam até ao fim dos tempos
mas não, nunca, jamais, em tempo algum
me chamem sujeita poética!

Lá anda o sujeito poético no ringue
aos sopapos com o eu lírico!
Sophia falece então para mal dos filhos e para
eterno massacre da menina do mar que
nada pode contra a foda Oriana.

O que nos vale são os versos heróicos
que nos levam às nuvens da escansão
estado poroso de pão-de-ló e malvasia
que qualquer enólogo nos explicará
num power point ou num paper
junto ao rio com a eterna Lídia pela mão.

 

Publicado na revista osso

I

o corpo dado à vida
a ela pertence
a vida entra pelo corpo dentro
empurra-o
por vezes quebra-se
sentados
de coração aberto
navegamos
nesse mar de caos
em que desaguámos
à nascença

da vida falo e falarei
— não conheço outra:
só esta floresta obscura
em que vogamos

II

pintava pessoas tão ínfimas
que não notam sequer
como são facilmente substituíveis
umas Macabéas para todo o serviço
e nenhum préstimo

passemos a outra cor
outra tinta outra voz outro desprezo
que é o mesmo pelo mundo fora
mas ainda mais prolongado
um desprezo que vai mais fundo e mais longe

agora era um desprezo faminto
de barriga cheia e olhos lacrimejantes
de satisfação consigo
desprezo de trazer no bolso
pronto a ser sacado e disparado sem tremer a mão

uma metáfora furtiva desliza com lágrima apensa

 

lido na revista osso

lego total

 

no final desmontam o lego dos ossos
a terra já não come os corpos
está cansada e treme

de vez em quando
um corpo é levantado
areja um instante
regressa ao túnel

a mãe rouba sapatos e fato
do filho já desmanchado
leva-os para casa
guarda-os numa caixa
entre as latas de grão na despensa

 

 

edição crítica

“La ville s’endormait
Et j’en oublie le nom”

Jacques Brel, 1978

escrever sobre um campo de couves
nas folhas toscas e grossas
pesadas de chuva
escrever sobre as cores do asfalto
o branco cinza das noites nórdicas
partir para a enorme cidade planetária
essa cidade única onde vivemos condenados a
tragar o velho modernismo apoplético
arquivo repassado de pessoas

escrever sobre um campo de couves
Herculano esquecido do romantismo
entre as urtigas cava bem fundo:
em vez de couves
há cadáveres esquisitos
ali mesmo no bairro do vazio
com gente exausta de desejo

nem tudo está perdido
domingo irei para as hortas na pessoa dos outros
contente da minha animosidade

alinhavos
baquelite
fumo azul
seria uma vida paralela mas passou o momento

 

cactus

eis a palavra coágulo
impressa na página ininterrupta

será a acentuação esdrúxula
o pingo de aço e sangue
dentro dela

a parede branca do verão
brilha sob o peso da luz única
do sul

(ah, já se sabe...
o sal o sol o sul)

as cigarras nas suas árias
de contratenores extraterrestres

o moscardo agridoce do verão
cego sobre o lajedo

irreversível, o meu verão

um verão que não terá retorno
pressinto eu
que não acredito no futuro

 


a perspicácia da metáfora

a metáfora perspicaz
vai pela rua fora
senta-se ao sol
está na hora de almoço
e a ementa é aborrecida
logo ela que tanto gosta de comer
(há quem diga que tem
o prazer todo na boca)
logo ela foi parar a uma terra onde
quase ninguém sabe comer
ali vivem lentamente
sem inquietações papilares
adormecidos à sombra
de um bucolismo serôdio
(porra de fonética)
à espera de ver cair
o próximo prémio literário
a próxima promessa
a não cumprir

nessa terra de cenário
sem personagens
nasce a metáfora à procura
da breve embriaguez

 

lidos aqui