Nuno Júdice
Dirigiu a revista literária Tabacaria editada pela casa Fernando Pessoa e da Revista Colóquio-Letras da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi Conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal e diretor do Instituto Camões em Paris.
A sua estreia literária deu-se com A Noção de Poema em 1972
A sua obra inclui poesia, antologias, edições de crítica literária, estudos sobre Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa.Assinou ainda obras para teatro e traduziu autores como Corneille e Emily Dickinson.
Alguns dos seus livros foram traduzidos para diversas línguas, como francês, italiano, espanhol, grego e idiomas árabes.
Núno Júdice morreu a 17 de março de 2024, em Liboa
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Amor com figura metafórica |
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Poesia |
O passado servia-me de alimento. A memória dava-me
o fogo de que eu precisava - mesmo que esse fogo ardesse no lume brando da imaginação. As árvores, os pássaros, os rios, eram imagens que não passavam da literatura, como se fossem apenas as árvores do poema, os pássaros de um canto melancólico, os rios por onde corre o tempo da filosofia. Agora, ao lembrar-me de tudo isso, enquanto bebo devagar este copo de solidão, não reconheço o cenário: como se um vento tivesse varrido as árvores, um outono tivesse expulso os pássaros, um inverno tivesse desviado os rios. O que vejo, neste espaço em que entro pela porta que me abriste, é mais simples do que tudo isso: tu, com o rosto apoiado nas mãos, e os olhos que me trazem todas as certezas do mundo. Guardo comigo, então, a tua imagem. Vivo cada instante que me deixaste. E no tempo que nos separa voltam a crescer árvores, cantam outros pássaros, correm os rios do amor. |
A Origem do Mundo
De manhã, apanho as ervas do quintal. A terra,
ainda fresca, sai com as raízes; e mistura-se com a névoa da madrugada. O mundo, então, fica ao contrário: o céu, que não vejo, está por baixo da terra; e as raízes sobem numa direcção invisível. De dentro de casa, porém, um cheiro a café chama por mim: como se alguém me dissesse que é preciso acordar, uma segunda vez, para que as raízes cresçam por dentro da terra e a névoa, dissipando-se, deixe ver o azul. |
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Deus
A noite, há um ponto do corredor
em que um brilho ocasional faz lembrar um pirilampo. Inclino-me para o apanhar - e a sombra apaga-o. Então, levanto-me: já sem a preocupação de saber o que é esse brilho, ou do que é reflexo. Ali, no entanto, ficou uma inquietação; e muito tempo depois, sem me dar conta do motivo autêntico, ainda me volto no corredor, procurando a luz que já não existe. |
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Hábitos |
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Durante gerações, acreditarm na vinda do Messias; |
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Metafísica
1
Não tenta nada de que se tivesse já esquecido; o seu objectivo, agora, é organizar o presente. 2 Com as mãos, procura avaliar a qualidade da terra: se as folhas lhe dão a consistência do ser vivo, ou se a pedra que está por baixo, com os restos fósseis da origem, rompe a sua unidade, e impede o caminho às raízes. 3 Os olhos não sabem, ainda, que a visão profunda os dispensa. Por dentro, o olhar implica a noite; e é da fusão das formas no negro último do céu, para além da superfície das estrelas e das nebulosas que essa verdade brilha com a sua exacta eternidade. |
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A voz que nos rasgou por dentro
De onde vem - a voz que
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Escola
O que significa o rio,
a pedra, os lábios da terra que murmuram, de manhã, o acordar da respiração? O que significa a medida das margens, a cor que desaparece das folhas no lodo de um charco? O dourado dos ramos na estação seca, as gotas de água na ponta dos cabelos, os muros de hera? A linha envolve os objectos com a nitidez abstracta dos dedos; traça o sentido que a memória não guardou; e um fio de versos e verbos canta, no fundo do pátio, no coro de arbustos que o vento confunde com crianças. A chave das coisas está no equívoco da idade, na sombria abóbada dos meses, no rosto cego das nuvens
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Confissão
De um e outro lado do que sou, em Meditação sobre Ruínas, Quetzal, 1999
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Um mar rodeia o mundo de quem está só. É
o mar sem ondas do fim do mundo. A sua água
é negra; o seu horizonte não existe. Desenho
os contornos desse mar com um lápis de
névoa. Apago, sobre a sua superfície, todos
os pássaros. Vejo-os abrigarem-se da borracha
nas grutas do litoral: as aves assustadas da
solidão. << É um mundo impenetrável>>, diz
quem está só. Senta-se na margem, olhando
o seu caso. Nada mais existe para além dele, até
esse branco amanhecer que o obriga a lembrar-se
que está vivo. Então, espera que a maré suba,
nesse mar em marés, para tomar uma decisão.
lido aqui
Escuto o silêncio das palavras. O seu silêncio
suspenso dos gestos com que elas desenham
cada objeto, cada pessoa, ou as próprias ideias
que delas dependem. Por vezes, porém, as
palavras são o seu próprio silêncio. Nascem
de uma espera, de um instante de atenção, da
súbita fixidez dos olhos amados, como se
também houvesse coisas que não precisam de
palavras para existir. É o caso deste sentimento
que nasce entre um e outro ser, que apenas
se advinha enquanto todos falam, em volta,
e que de súbito se confessa, traduzindo em
breves palavras a sua silenciosa verdade.
de “Pedro, lembrando Inês”, Publicações Dom Quixote, 2009
Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.
Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.
Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.
lido aqui
Um gesto lógico
O amor é uma experiência abstracta ? Um eco de emoções
no corpo do espírito? Ponho estas reflexões no prato da filosofia,
que está vazio, em frente de mim. A própria mesa pouco mais tem
do que um copo e um jarro: e despejo, desse jarro, imagens e
memórias até encher o copo. Talvez o devesse beber de um trago,
sem pensar em mais nada. Porém, levanto-o contra a luz
da janela: e vejo-te, sabendo que de ti o que eu vejo
é essa ideia de amor que tenho no prato, sem saber o que lhe
fazer. De facto, que se pode fazer com o puro imaterial,
a tua ausência física, um objecto construído de recordações,
como se aí estivesse a única forma concreta de te posuír? Então,
tiro este prato da miha frente, despejo o copo no chão
do poema, e é aqui que te encontro, amor, por entre tudo o que
sobrevive destes restos de tempo e de vida.
O amor |
Deus - talvez esteja aqui, neste Um deus não precisa do tempo para
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O Jogo das interrogações |
Pergunto-te o que é o amor? E tu Acredito em ti. Nem o amor permitiria Tenho, então, de saber que não pode ser Afinal, dizes-me, sabias o que é o amor? E
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Poema |
Podemos falar dos sentimentos, descrever Agora que a tarde começa a descer e, com ela, se poderá ter, e ter o que está condenado em Carografia de emoçoes, pub Dom Quiixpte, 2001 |