José Tolentino Mendonça

José Tolentino Mendonça nasceu em 1965 na ilha da Madeira (Machico). É licenciado em teologia e doutorado em Ciências Bíblicas. Foi capelão da Universidade Católica de Lisboa, onde deu aulas de teologia bíblica.,Atualmente é Arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano e Bibliotecário da Bibiloteca Apostolica Vaticana. Em 2019 foi elevado a Cardeal pelo Papa Francisco. Sobre a sua vocação religiosa já confessou que "foi uma coisa de juventude, inconsequente, imprudente, inesperada, que eu procuro manter. Ser padre é um nomadismo interior constante. É aceitar a pobreza como condição. E a pobreza é uma coisa chata de viver. É achar que isso pode ser uma forma de dizer alguma coisa ao seu tempo".

Publicou vários livros de poemas (Os dias contados, 1990; As estratégias do desejo, 1995, Longe não sabia,1997; A que distância deixaste o coração, 1998; Baldios,1999 De igual para igual, 2001 e A Estrada Branca,2005 , A Noite abre os meus Olhos 2006O Viajante sem Sono,2009, Estação Central 2012 .A Papoila e o Monge 2013. Estação central, 2015, Teoria da fronteira, 2017. Introdução a pintura rupestre, 2021 

Escreveu, entre outros, o ensaio "As Estratégias do Desejo: Um Discurso Bíblico sobre a Sexualidade", Livros Cotovia (1994), traduziu o "Cântico dos Cânticos" (1997). É autor da peça de teatro Perdoar Helena, Assírio & Alvim, 2005.

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Foto por Marcos Borga

Poemas

A ESTRADA BRANCA

Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto

folhas tremiam
ao invisível peso mais forte

Podia morrer por uma só dessas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate

O PASSO DO ANJO

Pelas escarpas, nos atalhos de areia e erva
em matas sombrias onde as faias se renovam
os animais já não vigiam
já ninguém os persegue

a chuva desenha círculos perfeitos
nos poços dos aldeões
como nos charcos

o restolhar de prata da folhagem
previne do passo do anjo, na escuridão

PLUMAS

Através da terra o amor
torna-nos estranhos à terra
liga-nos a uma divina linhagem
com seu tormento inapagável
suas velocidades enormes

O amor vive na ponta dos cabelos

O amor, ditam os frios do coração, é ruinoso
qualquer momento em chamas
denunciará a imprecisa inquietação que nos toma

Os inocentes que se amam dizem
teu corpo está a nevar
tua alma é uma flor
um prado tranquilo sua noite

Os inocentes que se amam
por seu tormento elevam-se
como plumas
num chapéu de passeio

VIA DEL GOVERNO VECCHIO

Se me trouxeres uma outra luz te explicarei
como se torna um amor imoderado
tão parecido ao anjo que nem nos é dado vislumbrar
a verdadeira passividade não é a do esquecimento
mas a mortal velocidade do desejo
que ninguém suporia a hora alguma

há um segredo comum àqueles desconhecidos
que esbarram um no outro por puro acaso
um olhar branco, um rosto que se volta
e depois no mundo nunca mais se encontram

Eu por mim nunca sei
se estou irremiavelmente longe ou demasiado perto de Deus
às vezes pergunto-me quantas vezes o corvo deverá
bater as suas asas negras
entre o meu corpo e o seu

LILASES

Quando por fim a cifra infinita
que dois mundos combinam
esplender inteiramente seus motivos

a cada um caberá olhar
na lâmina de ouro
um nome inefável

o que buscámos sem um gesto
o que dissemos sem uma palavra

O Silêncio

Regressamos a uma terra misteriosa
trazemos uma ferida
e o corpo ferido
imprevistamente nos volta
para margens mais remotas.

Giorgio Armani tinha declardo
àquele jornal inglês: "o luxo desagrada-me,
é anti-democrático.
Quero homenagear os operários de todo o mundo"
Eu só pensava em São João da Cruz
enquanto ouvia pela enésima vez:
" a moda substituiu o luxo
pela elegância"

João da Cruz fala de coroas,
resplendores, casulas
véus de seda, relicários de ouro e
diamantes

para lá do jogo das nossas defesas
qualquer coisa interior

a intensa solidão das tempestades
os campos alagados,
os sítios sem resposta

o teu silêncio, ó Deus, altera por completo os espaços

O POEMA

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visíveis, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

de A ESTRADA BRANCA, Assírio e Alvim, 2005

A casa onde às vezes regresso é tão distante
 
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
 
Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
 
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
 
A direcção do sangue
 
Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica o caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mais inocente
ou de um amor
Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos
Estamos sós com a noite
para salvar um coração

As casas

As casas habitadas são belas
se parecem ainda uma casa vazia
sem a pretensão de ocupá-las
tornam-se ténues disposições
os sinais da nossa presença:
um livro
a roupa que chegou da lavandaria
por arrumar em cima da cama
o modo como toda a tarde a luz foi
entregue ao seu silêncio
 
Em certos dias, nem sabemos porquê
sentimo-nos estranhamente perto
daquelas coisas que buscamos muito
e continuam, no entanto, perdidas
dentro da nossa casa

Os amigos
 
Esses estranhos que nós amamos
e nos amam
olhamos para eles e são sempre
adolescentes, assustados e sós
sem nenhum sentido prático
sem grande noção da ameaça ou da renúncia
que sobre a luz incide
descuidados e intensos no seu exagero
de temporalidade pura
 
Um dia acordamos tristes da sua tristeza
pois o fortuito significado dos campos
explica por outras palavras
aquilo que tornava os olhos incomparáveis
 
Mas a impressão maior é a da alegria
de uma maneira que nem se consegue
e por isso ténue, misteriosa:
talvez seja assim todo o amor

Às escondidas

Os primeiros chuviscos restituem-nos
o incrível cheiro da terra
mas nós estaremos quem sabe longe
do que tem significado
 
Preenchemos a inscrição numa piscina municipal
não sabemos bem o motivo ou não dizemos a ninguém
como os dias nos pedem a dureza
ofegante, institiva
que têm para os nadadores as braçadas
 
Uma sombra nos acalma
Uma claridade dói
 
Cedo receamos a felicidade daquelas imagens
que reencontramos dentro de nós
e não se ligam a nada

de De Igual Para Igual, Assírio & Alvim, 2001

Os Versos

Os versos assemelham-se a um corpo
quando cai
ao tentar de escuridão em escuridão
a sua sorte

nenhum poder ordena
em papel de prata essa dança inquieta

Uma coisa a menos para adorar

Já vi matar um homem
é terrível a desolação que um corpo deixa
sobre a terra
uma coisa a menos para adorar
quando tudo se apaga
as paisagens descobrem-se perdidas
irreconciliáveis

entendes por isso o meu pânico
nessas noites em que volto sem razão nenhuma
a correr pelo pontão de madeira
onde o homem foi morto

arranco como os atletas ao som de um disparo seco
mas sou apenas alguém que de noite
grita pela casa

há quem diga
a vida é um pau de fósforo
escasso demais
para o milagre do fogo

hoje estive tão triste
que ardi centenas de fósforos
pela tarde fora
enquanto pensava no homem que vi matar de quem não soube nunca nada
nem o nome.

Mercado velho, Machico

Uma paisagem muito ao longe
quando se regressa
continuamos a vê-la no escuro

fechamos os olhos, sentimo-nos vivos
na sucessão dos séculos
falamos de súbito
daquilo que nos assusta
um segredo demasiado intenso
o malogro dos códigos
qualquer ideia extrema
que destrói o mundo e não queríamos

mas estamos tão pouco
onde estamos

Levada do Castelejo
para Inês Ribeiro, Laíz Vieira e Emanuel Gaspar

Amo os que atravessaram os campos
desamparados
mais do que se pode

Amo as suas verdades:
algum ânimo, vitórias inúteis
um sentido impróprio para a inocência
nada ou quase nada diferente
do perigo

ninguém soube ao certo donde vinham
para encontrar uma vida
ou coisa mais pura ainda

entregues como este verão já no fim
às folhas secas
que voam

de Baldios, Assírio & Alvim, 1999
em Anos 90 e Agora - Uma Antologia da Nova Poesia Portuguesa, quasi, 2001

 

Diante do espelho vê rostos além do seu
e a loucura é reconhecê-los entre os mortais
esses rostos silenciosos e esquivos
tão fácil seria chamá-los
celestes

Mas ela era terrena tão por terra
conduzia a ondulação dos sentimentos
não a entendem?
Ela deixava quebrar os vasos só para os ouvir
porque tudo tem uma voz mesmo as coisas mudas
e o silêncio é uma ímpia forma de desobediência
Ela marcava um por um
umbrais códices colheres
para que tudo estivesse unido
sob o frio ordenado do visível

De noite porém afundava-se no lago
e lá adormecia
De noite levava a espingarda à janela
e ficava a ouvir não os tiros
mas o incrível silêncio que sucede a cada tiro
De noite dizia-se vacilante e perdida

Depois vinha o dia e a rasura
a repetida ordenação que os acentos concedem
às palavras
a quase paixão que jamais tocava os seres
sempre e só a sua representação

de Longe não Sabia,Ed. Presença, 1997

Perdemos repentinamente
a profundidade dos campos
os enigmas singulares
a claridade que juramos
conservar

mas levamos anos
a esquecer alguém
que apenas nos olhou

encontrado aqui

 

Quando se viaja sozinho
pelas imagens que perduram
as evocações ganham um modo tão real
A mancha ténue dos arbustos
indica um caminho para o regresso
que nunca há
o mar ficou de repente perto
sobre esta praia travámos lutas
para as quais só muito depois
encontramos um motivo
era à pedrada que nos defendíamos
do riso mais inocente
ou de um amor

Mas aquilo que nunca esquecemos
deixa de pertencer-nos e nem notamos

Estamos sós com a noite
para salvar um coração

Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos

lido aqui

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui

à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos

mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo

de Baldios, Assírio & Alvim, 1999

Frésias são flores com cheiro a chá
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos

(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se, sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa

tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)

nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas

o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia

de Baldios, Assírio & Alvim, 1999

O verão é feito de coisas
que não precisam de nome
um passeio de automóvel pela costa
o tempo incalculável de uma presença
o sofrimento que nos faz contar
um por um os peixes do tanque
e abandoná-los depressa
às suas voltas escuras

em "De igual para igual"
lido no poemário, Assírio & Alvim, 2006