José Miguel Silva
José Miguel Silva nasceu em Maio de 1969, em Vila Nova de Gaia. Publicou os seguintes livros de poesia: O Sino de Areia (Gilgamesh, 1999), Ulisses Já Não Mora aqui (&etc, 2002), Vista Para um Pátio seguido de Desordem (Relógio D’Água, 2003), 24 de Março (2004) e Movimentos no Escuro(Relógio D’Água, 2005). Erros Individuais (2010). A parceria com Manuel Freitasutores, iniciada nos Poetas Sem Qualidades, seguiria firme em outras publicações, como, por exemplo, a primeira antologia poética de Freitas (A Última Porta, Assírio & Alvim, 2010) organizada e prefaciada por JMS.
Recentemente lançou pela editora Averno mais dois livros, “Serém, 24 de Março” (2011) e o seu último livro de poesia “Últimos Poemas” (2017), sobre o fim da literatura, da civilização industrial e da espécie humana.
José Miguel Silva traduziu autores como Virginia Woolf, James Joyce, Pablo Neruda, Shakespeare e Hannah Arendt.
JMS olabora esporadicamente em revistas literárias e animou blogues como Ad Loca Infecta e Achaques & Remoques.
ler mais: escritas / o poeta Gaiense / modo de usar / poesia ilimitada
Às vezes trazes para casa uma tristeza
velha, feita de cansaços que apenas supõe
quem tem o privilégio de te amar.
Despes o casaco, apertas contra o rosto a Mia,
a tua mão procura às cegas o meu ombro,
e nas tuas pestanas descidas leio um apelo
a que nem sempre sou capaz de responder.
A tua indefensão ocupa o seu lugar à mesa,
quase sem ânimo para segurar o garfo.
Eu tento animar-te com as últimas desgraças
do mundo, dou-te um resumo do telejornal,
faço-te notar que a sopa está quente, vou
depressa ao café comprar-te chocolates,
mergulho-os em vinagre, uno as gatas
pela cauda e digo-te: anda ver como termina
um casamento, deixo cair na sanita o comando
do vídeo, ameaço convidar-te para o meu funeral.
Tantas faço que consigo, finalmente,
transformar em zanga a tristeza que trazias.
E enquanto tu me chamas inútil, e palerma,
eu sorrio interiormente, noto com agrado
a contracção no teu pescoço, sou eu próprio
quem te guia até às facas na gaveta, e nem sequer
me desvio quando vejo a garrafa de Favaios
a voar na direcção desta minha tão salobre,
tão esperta cabeça, filha do ardil e da penúria.
A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos trinta e quatro fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, as mulheres rodopiavam-
-me nos braços. Nove filmes de sucesso
e depois – o desastre: três falhanços seguidos.
O meu rosto, diziam, passara de moda.
O requintado romantismo dos meus papéis
fora ultrapassado pela realidade da guerra
na Europa. E após a guerra, o público dera
em imitar o cinismo dos intelectuais,
ria-se dos gestos, da vibrante paixão e
dos castos abraços em que tudo se fundia
com as aparências. Apagara-se de vez
a minha auréola, a minha estrela.
Afastado das telas, cessaram os autógrafos,
perderam-se os convites. Tudo terminou
como se fosse apenas sonho de uma sombra.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu o rosto, nenhuma malcasada.
Só então me apercebi a que ponto estava morto.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
Morre duas vezes quem viveu da sua imagem.
na revista Telhados de Vidro n.º2; Maio 2004
Parte poética
Não é fácil ser poeta a tempo inteiro.
Eu, por exemplo, nem cinco minutos por dia,
pois levento-me tarde e primeiro há que lavar
os dentes, suportar os incisivos
à face do espelho, pentear a cabeça e depois,
a poeira que caminha, o massacre dos culpados,
assistir de olhos frios à refrega dos centauros.
Chegar por fim a casa para a prosa
de uma carne à jardineira, o estrondo
das notícias, a louça por quebrar. Concluindo,
só por volta das duas da manhã começo a despir
o fato de macaco, a deixar as imagens correr,
simulacro do desastre.
Mas entretanto já é hora de dormir.
Mais um dia de estrume para roseira nenhuma.
Arrombador
Nunca gostei de portas, sempre as figurei
como um grosseiro despotismo.
Não percebia por que razão davam passagem
a uns e a outros negativa. Rebelei-me contra elas,
tornei-me arrombador. Decidido a contestar
os seus ínvios desígnios, passei os vivos anos
da minha juventude a estudar o idioma
das fechaduras. Aos poucos fui chegando
a uma secreta mestria. Nenuma resistia
à sedução dos meus arames. As portas franqueadas,
e não o que atrás delas se defende, procurava.
Poucas vezes roubei. Essa alegria me bastava,
de introduzir desordem na composta segurança
de uma casa. Agora que penso nisso acho que havia
algo de bárbaro nessa minha obsessão
em destruir a ilusória placidez das fortalezas,
os escudos da propriedade, da suficiência.
Portas atrás de portas, a minha vida passou.
Até chegar aqui, a este lugar indistinto.
Também nele há uma porta. Não me seria
difícil arrombá-la. Não fosse dar-se o caso
(e esse é o castigo da minha soberba)
de eu não saber se estou no paraíso ou no inferno.
de Cinco epitáfios (e uma parte poética)
na revista Relâmpago, nº12; Abril 2003
Contra os optimistas
Chamam destino ao rifão do acaso
e chamam à fraude boa fortuna.
Crêem no Batman e na Virgem Maria.
Duvidam do frio, não da polícia
e nunca dão crédito àquilo que vêem.
Reservam a tempo um lugar na geral,
põem o pé entre duas ciladas
e ficam a rir-se nas fotografias.
Sujam a roupa tal como nós, mas
mandam-na sempre a lavandarias
que sabem tratar dos casos difíceis.
Nunca dão ponto sem antes o nó,
mas fazem um laço por cima do nó.
Compram revistas de aval científico
em cujos artigos se prova o seguinte:
é quase impossível determinar
se é falsa uma lágrima ou se é verdadeira.
Depois, jantam em grupo, falam dinheiro,
guiam a vida por grandes veredas e ouvem
sininhos, muitos sininhos de música sacra.
Pedras e morteiros
Essa dos poetas, Senhora, com vocação
para apanhar no pelo, tem quase tanta graça
como a outra, de chamar vítimas às vítimas
oficiais do século XX. Como se a história
fosse um prato congelado e a moral
o restaurante onde se come mais barato.
Entretanto, nós somos acusados de atirar pedras.
Mas vede, Senhora, não são pedras, é o que resta
das nossas casas, abatidas por Golias.
Na mão que lhe estendemos deixou-nos esta funda.
Que mais podemos nós, senão utilizá-la?
Razão tem a pedra na conhecida fábula
da Pedra no Sapato quando diz:
todas as pedras são palestinianas.
Numa biblioteca
Uma rapariga loura está inclinada sobre um poema. Com o bisturi
de um lápis afiado transfere as palavras para uma folha branca e
converte-as em acentos, cadências, cesuras. O lamento de um poeta
caído assemelha-se agora a uma salamandra devorada por formigas.
Quando o levámos sob o fogo das metralhadoras eu pensei que o seu
corpo ainda cálido ressuscitaria nas palavras. Agora que vejo a morte
das palavras, sei que há limites para o declínio. Tudo o que
deixaremos atrás de nós sobre a terra escura serão silabas dispersas.
Acentos sobre o pó e o nada.
Não é tarde
O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
eu fecho mais a porta.
Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.
Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão
de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
vai perdendo o nosso número de telefone.
Sem título
O teu corpo como um livro
escrito em braille,
Nausica, deixei-o
no capítulo primeiro.
Inútil é pensar
nos parágrafos de luz
que prometias.
Feito está o erro.
Não é cego o amor:
é cego quem o troca
pelo hás de bem amado
da sua escuridão.
Lamento de Calipso
Primeiro foi o bule,
de seguida foi a asa.
Que mais irás quebrar.
Não sei o que fazer com o teu sim,
o teu não, o teu
passa-me o açúcar.
A distância dos teus olhos não a sei
abreviar, o latido dos teus sonhos
não me deixa adormecer.
Gostava de te amar um pouco menos,
de voltar ao meu rebanho
de feridas e sopores,
regressar ao rijo barro dos Domingos
em que não te conhecia,
ao supor de suas tardes
Quando ainda não sabia
Da dureza do cimento, nem dos modos
De quebrar e ser quebrado.
Invocação
Não permitas, Senhora,
que desvie meu olhar
dos passos que perderam
- dez minutos sobre a terra –
aqueles que não possuem
um bilhete de retorno.
Concede-me o lugar
mais distante da lareira,
aquele que não nos serve,
mas de onde se ilumina
esse modo de durar
que só amar ensina
Queixas de um utente
Pago os meus impostos, separo
o lixo, já. não vejo televisão
há. cinco meses, todos os dias
rezo pelo menos duas horas
com um livro nos joelhos,
nunca falho uma visita à família,
utilizo sempre os transportes
públicos, raramente me esqueço
de deixar água fresca no prato
do gato, tento ser correcto
com os meus vizinhos e não cuspo
na sombra dos outros.
Já não me lembro se o médico
me disse ser esta receita a indicada
para salvar o mundo ou apenas
ser feliz. Seja como for,
não estou a ver resultado nenhum.
de Ulisses já não mora aqui; & etc, 2002
Quatro
Nesse tempo ainda as raparigas
não tinham sido inventadas.
Éramos só nós, o bando dos andróginos,
a correr atrás dos gatos.
Amoras e ameixas acenavam-nos
atrás de gradeados.
Quem mijava a cinco metros
empunhava o caduceu.
A ordem natural era seguida
com feroz habilidade.
Nenhum de nós sabia
o decálogo de cor. À força
e ao arrojo chamávamos humano.
Entrávamos em Tróia de joelhos
esfolados. E uma pedra, bem lançada,
valia um argumento.
O pior que nos podia acontecer
era sermos exilados, condenados
a brincar ao invisível
com a raça das escuras raparigas,
aprender a passajar o verso heróico.
Só mais tarde o gineceu saiu à rua;
trazendo laçarotes, mandamentos,
aromas esquisitos. Mas isso, já se sabe,
é outra história.
Não conta nada
Ontem à noite tentei contar
a um estranho tudo o que sabia
acerca de ti, e não sabia nada.
Talvez nos embruteça a inteligência.
Quem tem uma vida pode contá-la,
mas quem ficou preso numa rede
de sentimentos adversos, quem
se debate no interior de um soneto
de onze varas, só pensa em acordar
num corpo distante, tem lá tempo
para usar a cabeça. Vai pela névoa
de coração vendado, na boca palavras
que não proferiu, leva para casa
tudo o que lhe dizem, por que será.
Memórias escolhidas
Se houvesse um campeonato regional
de solidão, eu teria conquistado,
nesse biénio, a medalha de bronze.
Se não acreditam, pergutem aos meus versos.
Enfrentava com graça, nesse tempo,
as temperaturas mais baixas, desde que
tivesse à mão as páginas de um livro
a cujo discurso arrancava palavras
para aquecer os dedos. Lia toda a noite
com os olhos acesos e quanto mais lia
menos percebia o que havia de querer.
Quem tinha razão era a minha alma: ler muito alto
dá conta da vida, deixamos de saber
apertar os cordões ou que fazer com as mãos
Estava eu sentado
Estava eu no segundo passo da ditosa via sacra
da contracultura - charros, beatniks, Guy Debord -
quando dei comigo a ler um poeta conservador
e a pensar na beleza enigmática das suas imagens,
na mesa posta com autoridade; uma força
que me remetia para a precisão do mal e para
a contraposta redenção estética da vida.
Nessa altura conheci um rapaz que me dizia
as coisas mais desagradáveis, por exemplo:
"nem oito nem oitenta" ou "cuidado com
as vírgulas nos olhos". Foi ele que me ensinou
a não confundir a fome com a pressa de comer.
A condição natural do jovem lobo, dizia,
está na via sinuosa. As paredes de neve
cada vez mais alta, a vida retirada...
Já os pesadelos
Os sonhos dos homens assemelham-se entre si.
Já os pesadelos, cada um tem o seu.
Durante muitos anos eu fui hóspede do frio.
Enrolava cigarros para depois da chuva
e não tinha sonhos, somente pesadelos.
O mais recorrente era o do nevoeiro:
ninguém me via, era inútil mandar vir
uma caneca de cerveja, no café.
O meu dinheiro ninguém o aceitava,
ficava parado, fazia de mim um acumulador.
Como nunca saía de casa, não sabia falar
senão com mortos. Parecia-me magia
saber responder boa tarde como vai
à saudação dos vizinhos, pedir do vazio
ao homem do talho, perguntar as horas.
Tempos amargos esses, e hoje,
a mesma coisa, a mesma solidão.
Com a diferença de que sou mais forte agora,
vou à piscina duas vezes por semana,
escrevo poemas para não adormecer.
Os melhores anos da minha vida
Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.
Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.
Os melhores anos da minha vida troquei-os
por isto.
de Vista para um Pátio seguido de Desordem, Relógio d'Água, 2003
A salsa, o peixe, não têm pressa
e o fio de azeite aprende a esperar.
Cada dia que passa - não sei como é -
jantamos mais tarde.
Porque uma casa precisa sobretudo de amor,
abrimos a água, enxugo-te o rosto,
podemos agora deixar de mentir.
Só com o corpo, relógio parado,
escondo de ti a lesão do terror.
Ofereço-te a pele, avanças o pé,
jardim perfumado, tudo se ergue,
finos cabelos seguram a noite,
o quarto no ar. Não sei como é:
cada dia que passa jantamos mais tarde.
na revista DiVersos N.° 6
lido aqui
O ATALANTE - JEAN VIGO (1934)
No dia em que fomos ver O Atalante
Eu levava, por coincidência, um cubo de gelo
no bolso do casaco. Lembro-me de tremer
um pouco. Até aí, tudo bem. Pior,
foi quando te ouvi pronunciar, distintamente:
quem procura o seu amor debaixo de água,
acaba constipado.
Na altura ri-me: Pensei que falavas do filme.
Sou tão estúpido.
MORANGOS SILVESTRES - INGMAR BRGMAN (1957)
Um ser humano é um combinado de egoísmo,
sofrimento e necessidade. Não comove ninguém.
Uma pedra não comove ninguém. A beleza
é um acidente banal e pressupõe a morte;
muitas vezes se rodeia de sandice, e se nos fala,
chega a ser assustador. A inteligência, refrescante
como um duche, sabe bem, no Estio; mas agora,
que é Inverno toda a vida, que lugar atribuir
à inteligência? O de criada de servir nos aposentos
da ganância. Não comove, é evidente, ninguém.
A bondade, sim, comove. Mas é tão débil
e tão rara que ninguém a ouve. Não é fácil,
assim, encontrar algo que possamos amar. Eu
tenho procurado, eu juro que não sei o que fazer:
tudo me parece, até a música, produto de uma falha.
Vou por essas ruas ao acaso e não acerto a conhecer
quem me convença que bem outra poderia ser
a vida. Tudo se mostra sob espelhos deformantes,
tudo arde numa estranha aceitação. Francamente,
não consigo perceber. E gostava tanto, mas tanto,
que alguém me demonstrasse que não tenho razão.
O ACOSSADO — JEAN-LUC GODARD (1959)
Cinco passos para a frente
era o inferno dos felizes.
Cinco passos para trás,
o curral dos ofendidos.
Não havia saída,
nenhum ermo onde esconder
a vida. Só a morte
nos dizia — por aqui.
FOGO-FÁTUO – LOUIS MALLE (1963)
Se cada um fizesse a sua parte, o mundo seria
um lugar perfeito: a despovoada alegria
dos montes, as ruas esmaltadas de verdura,
os séculos sem rumo nem História.
Utopia menos dúbia não conheço do que esta.
E era tão simples: bastava que cada um
abdicasse um pouco do nó cego
a que chamamos eu, dessa falsa confiança,
uma vida a conta-gotas. Bastava
um tiro certeiro, um nó corredio, um saco
de plástico a fechar no pescoço. Mas não,
deixemo-nos de sonhos revolucionários:
a paz na Terra só virá por acidente
(vascular-cerebral, ao volante, o que for).
Somos todos egoístas, frívolos, vivos,
incapazes de um gesto despoluidor.
Eu próprio, que devia dar o exemplo,
estou sentado na cozinha a tentar decidir-me
entre pão com manteiga e bolachas de centeio,
enquanto a chaleira, no fogão, assobia para o ar.
O ÓDIO − MATHIEU KASSOWITZ (1995)
Os adolescentes armados da Libéria e da Serra Leoa
não sabem quem lhes pôs um gatilho na vida.
Eu faço uma ideia, mas não digo nada. Prefiro
comprar em DVD O Bom, o Mau e o Vilão.
*
As mortes de urânio enriquecido que disparamos
na Sérvia são fabricadas pela Boeing e pela General
Motors. Mas eu gosto de ir a Londres, a Paris,
a Nova Iorque, e o meu automóvel é bastante fiável.
*
É verdade que não voto no bloco liberal, mas
nem por isso sou menos culpado pelo íntimo
holocausto dos vitelos sociais. Basta ver
as sapatilhas que ofereci ao meu sobrinho no Natal.
*
Não fui eu que negociei com o régulo o despejo
de resíduos tóxicos no mar da Somália, é verdade.
No entanto, tenho luz em casa, água quente, combustível...
e sexta-feira à tarde lá vou eu com a Joana para o Alto Douro.
*
O sofrimento dos outros, enfim, é relativo. Não vale a pena,
só por isso, interromper o sol. A mim, pessoalmente,
nada me dói: tenho para livros, discos, preservativos,
e a vida que levo convém-me lindamente. Aprecio sobretudo,
e cada vez mais, as quietas florações da vida interior,
a doméstica lida. Mas não vou dizer que não sei onde fica
a Chechénia ou o Bairro do Cerco. Nisto sou como tu,
leitor: custa-me ver, de manhã, o meu sorriso ao espelho
O SABOR DA CEREJA — ABBAS KIAROSTAMI (1997)
Não é fácil para um homem
sepultar a sua sombra,
encontrar o melhor
que a terra nos dá:
um esconderijo.
A língua queimada
recusa as cerejas.
Nenhuma palavra
remove da boca
o gosto a poeira.
Circula sem vida,
por montes e restos,
o corpo tresmalhado.
Alguém há-de saber
para que serve um morto.
de Movimentos no Escuro, Relógio d'Água, 2005