José Augusto Seabra

José Augusto Seabra nasceu em Vilarouco (S. João da Pesqueira) em 1937. Formou-se em Direito na Universidade de Lisboa. Foi Poeta, Ensaísta, Crítico, Professor Universitário e Diplomata. Opositor democrático ao regime de Salazar, foi preso e condenado por motivos políticos, tendo de exilar-se e só regressando a Portugal com a queda da ditadura em 1974.

Doutorou-se em Letras, em Paris, em 1971 com uma tese sobre Fernando Pessoa (Analyse structurale des hétéronymes de Fernando Pesssoa: du poémodrame au poétodrame), sob a orientação de Roland Barthes. Foi Professor catedrático na Universidade do Porto, colaborou em vários jornais e revistas. Foi um dos fundadores do Centro de Estudos Pessoanos e do Centro de Estudos Semióticos e Literários.

Deputado à Assembleia Constituinte e à Assembleia da República, foi Ministro da Educação do IX Governo Constitucional (1983-1984). Foi embaixador de Portugal junto da UNESCO, em Nova Delhi, em Bucareste e em Buenos Aires

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Poemas

Soterrei as palavras. Pelos canais do sono: ó catacumbas líquidas.
Desacordes os lábios. Decepados os dedos. Só trincheiras de ausência.
De um jeito curvo avanço: inviável toupeira. Sem mais noite que as unhas.
Desertar do limite. Para lá das narinas: no focinho do tempo.

de Tempo Táctil, 1972

poema encontrado aqui

Cai-me das mãos o resto de cansaço
e gela. Escorre inútil. Débil fio
à flor do corpo: transparente ou baço?
Dos braços verticais dedos esfio.

Abri-los. Distendê-los. E não faço
o fácil movimento. Só desfio
pela memória o nítido regresso.
Voltado sobre mim me desafio.

O círculo não fecha. Enquanto aflora
o leve estremecer. Uma demora
dum gesto me suspende. Quase salto

sobre as garras do tempo. Breve e incauto
me prolongo no rasto dum desejo.
E o milagre: apalpo, sofro, vejo.

 

de A Vida Toda, 1961

Basta pensar em sentir
para sentir em pensar


Fernando Pessoa

sempre te sinto ou penso ou sinto tão
sem te pensar sentir pensar ou sem
sentido ou não que só pensar-te vem
sentir-te ser pensando ser ou não

amor sentir pensar sentir só quão
te penso ou sinto ou penso ou quase nem
sentindo sei se o sei ou mal ou bem
pensei senti pensei sabendo em vão

pensar pensar pensar ou só sentir
não ser sentir senão sentir pensar-
-te sempre sentir sentir sentir sentir

já não pensar-te amor mas só pensar
sentir pensar sentir pensar sentir-
-te amor amor amor sentir pensar

de Desmemória, 1977

Nem sei de quando
amo este amor sombrio
e amado, nem se amando
ódio a ódio o adio,
brando, tão brando
e a frio.

de Enlaces, 1993

 

Ah, cada ser ou cousa é sombra vaga

Teixeira de Pascoaes

Este nada de nada
diluído em soluços
de sombra é como cada
minúsculo percurso
de ruga abrindo um sulco
do nada até ao nada

Adoecia a mágoa, adolescia
magoada a de sombra, maculada
entre a mágoa de ser que magoava
e a mágoa de nada que doía
ensombrecendo a mágoa de mais mágoa
se adolescendo a mágoa adoescia

Quando o corpo desenha
toda a sua metade
de sombra, donde vem
aquela frialidade
que a chama não sustém?

De que rugosa
forma? Arredondada
sombra
de que vazio
corpo?

Só de íris
contornada
a sombra
ensombrecida
a íris
derramada:
penumbra
de que nada?

Como se inclina
a sombra
da retina:
como se i
lumina

Por lápides
de sombra
grifamos
morte e morte.
Que grânulos
sem nome?

Em que sombra tecias teu cuidado
tão sempre sem sossego ou alma sem
a sombra doutro corpo serenado
caindo lado a lado
do corpo mal represo
e trespassado?

Se a sombra demorasse
na margem onde o mar
tremulasse entre a aragem
tão breve no ousar-se
que leve não ficasse
apenas miragem
da sombra a bordejar

Sombra oh quase solar
haste humílima e lábil
iludindo o precário
perfil de luz e ar

de brisa e tempestade
encrespando entre os lábios
do tempo pela vária
penumbra da verdade

solar oh quase sombra
haste ó mínima haste

em «Nova Renascença», Revista Trimestral de Cultura,primavera de 1982, vol.II