Ana Paula Inácio

Ana Paula Inácio nasceu no Porto, em 1966. Publicou três livros de poesia - As Vinhas de Meu Pai (Quasi, 2000), Vago Pressentimento Azul Por Cima (Ilhas, 2000), 2010-2011 (Averno, 2011) e um livro de contos - Os Invisíveis (Quasi, 2002).

Está representada nas antologias Anos 90 e Agora (Jorge Reis-Sá, Quasi, 2001) e Poetas Sem Qualidades (Manuel de Freitas, Averno, 2002).

É colaboradora da revista osso

Vai publicando poema aqui, poema ali, sempre discreta, poeta em fuga, austera, invisível como as suas personagens, pura matéria verbal.

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Poemas

Os milagres acontecem
a horas incertas
e nunca estou em casa
quando o carteiro passa.
Hoje, abriu a primeira flor
e eu disse é um sinal.
Olho em volta: estou só
trago esta sombra comigo.

*

debaixo do cipreste
um velho
no pasto, as vacas
no céu as nuvens
rápidas

o cipreste está muito verde
a terra muito castanha
o velho muito cinzento
o céu muito nublado
as vacas muito paradas

*

como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?

amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.

*

tens as mãos muito frias
e a água corta-as
como lâmina fina
para ver ao microscópio,

tens as mãos muito brancas,
linho cru,
e a água como fios

não sentes as mãos
mas que importa?

deixaste-as nas armadilhas
e o lince,
em troca,
deu-te os olhos,

sabes que a lepra
não é uma doença dos nossos dias

*

regressaste à primeira pedra
roçada nas paredes, nos portões
na memória,
usada no bolso
apertada contra ti
quando o tempo escasseou
e os outros te consideraram mais forte
cravada na besta,
contra os inimigos,
atrás da presa,
sibilante nos ares,
material de troca,
inscrição perpétua,
ícone de protecção,
dentro de ti
como uma casa
fria, muda e fechada

*

queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos

de Vago pressentimento, azul por cima, Ilhas, 2000

trepam os dois
sem saberem um do outro
plo mesmo tronco da árvore
os olhos da menina
como o brilhar dos do gato
que a assusta
chegados ao cimo

*

guardou o seixo a mulher
como lembrança  viva do sonho
no casaco justo
o seixo é tão polido
que nada se lhe pode inscrever
e a mulher demora-se
no medo esborratado
do bâton nos lábios
e todos rindo da soberba
com que levanta o saiote
e o afasta da ameaça
a lama em que traz os pés

*

olho à volta
em flecha sobre as coisas
à procura desse ladrão excepcional
que me roubou o livro inventado
pra me poupares o coração
à mágoa dos vivos
mas sei que é inútil
trago em alvo
apenas alfaias dométicas
com que trabalho a terra
aquela que escolhi
e sei que é inútil porque o mal tem asas
e só o vento nos salva
e nos transporta
ao lugar da árvore
junto ao rio onde me banharei três vezes
até que o galo cante
e me lembre do meu pai
a quem devo ceia e roupa branca

A mulher de 17

o que faz a mulher de dezassete
numa vila
de costas viradas ao mar
onde à noite a chuva cai
senão de manhãzinha aferir essa película
como uma fotografia
não revelada
da sua vida

a humidade nocturna
da vila virada
de costas prò mar
vai secando os cabelos
da mulher de dezassete
espigados como o trigo louro também
e a pele que ela sente
lentamente ressequida
lentamente, ao ritmo do dia
dos habitantes da vila
que se ilumina
como a ampla saia da mulher,
pormenor extraído
do retrato dessa vila
os habitantes
levam os rostos molhados
e a correspondência cola-se-lhes
às mãos que falam mais
do que a escrita apurada
daqueles que em férias
escutam nos búzios
a fórmula absoluta
dos que não sabem ler
a mulher de dezassete
lê nas entrelinhas
mas não é cega a rapariga de dezassete
gosta de descobrir as coisas
plo cheiro e plo tacto
que é a melhor forma
de as libertar
de as percorrer

assim com os animais embalsamados
com as penúcias finas

*

transporto material muito fino
vidro assoprado
por ares assassinos
vitrais doloridos
no ventre macerado
de Santa Bárbara
como um trovão

o amor alongado
por malhas largas
onde erramos a pescaria
e encontramos os corpos
dos nossos próprios pés
atados por limos

 

de As Vinhas de Meu Pai, Quasi, 2000

deixa as sandálias
à entrada
por baixo da sombra do arbusto
o odor a sândalo
será o primeiro sinal
e as presilhas soltas, o segundo
deixa a túnica
meticulosamente dobrada
debaixo do imediatamente a seguir
descansa, e pensa só na avestruz
corre então como ela
e a poeira que te arderá nos olhos
considera-a presença
de teu gosto vivo pelos pássaros

***

deixa o tempo fazer o resto
fechar as janelas
aplacar os barcos
recolher os víveres
semear a sorte
acender o fogo
esperar a ceia

abre as portas: lê a luz
a sombra, a arte do passarinheiro

com três paus
fazes uma canoa
com quatro tens um verso,
deixa o tempo fazer o resto.

na revista Inimigo Rumor, nº 10
poemas encontrados aqui

sentados em Trafalgar Square
no intervalo de amigos
com o tempo entre as mãos
treinávamos o nosso inglês
num inquérito de revista
com Francis Bacon na capa
que perguntava:
qual dos membros
- superiores ou inferiores -
preferíamos perder
(esta ablação em língua estrangeira
tornava-se indolor, quase anestesiada)
respondeste: os braços
as pernas conservá-las-ias
como a liberdade de poder andar
respondi: as pernas
não queria ver-me
impedida de abraçar.
Assim juntando as nossas
perdas
eu abraço-me a ti
e peço-te anda, mostra-me o mundo
e quando nos cansarmos
abraçar-me-ás, então, com as pernas
e eu
andarei com os braços.

na revista Telhados de Vidro, nº3

não sou uma mulher moderna
não me ligo à net
gosto de compras ao vivo
cujas listas faço em cadernos de argolas
que depois esqueço
e só me lembro de elixir para aclarar a voz,
tenho tantas embalagens
como Warhol de Tomato Soup
ou de detergente Brillo,
para que ao chegares a casa
te envolva, te abrace e te queira
mas nem só de voz vive o homem,
dizes tu,
e então a minha saúda-te
como a daqueles que vão morrer.

na revista Telhados de Vidro, nº3

As originais mulheres dos conselheiros Acácios

As originais mulheres dos conselheiros Acácios
praticam ioga antes e depois do sexo
são loiras mas com QI acima da média
lançam ferozes críticas à Igreja e outras instituições
flirtam com homens casados
mas intimidades na horizontal
só com certidão de divórcio passada;
mergulham fundo em piscinas, rios,
no próprio mar ou em longos beijos promissores
de poetas, músicos, escultores
ambiciosos e expectantes.
De facto, a cultura é-lhes essencial
uma autêntica segunda pele
como quem respira Louis Vuitton ou Prada,
segundo os saldos,
têm o estrangeiro como miragem
pra onde mandam os filhos de férias
ou pra estudar
gestão financeira ou de negócios
investem em ouro
pra contrabalançar as oscilações de mercado;
dispõem de um sorriso largo e cheio
onde pode encontrar refúgio o cansado viajante
e o olhar, onde se silencia toda a leitura,
começa onde se apaga a última luz
e se inicia o tacto de uma pelúcia fina e distante.
O chique vem de longe,
a revolução francesa a cavalo,
a cultura de comboio,
assim na geração de setenta,
e agora nos fios, nos cabos,
capitães ou generais de quem são esposas
duráveis mas algo hesitantes
entre o dever e o prazer:
há sempre um bom livro pra ler,
na Praia ou no Resort.

Homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair no pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
- foda-se! –
de morango.

Duas chávenas

Tínhamos duas chávenas
em forma de meia lua
e uma triangular.
Quando alguém ia lá a casa
bebíamos os dois pelas meias luas
o convidado pela triangular.
Era uma regra da casa
nem escrita
nem pronunciada
apenas pressentida.
Até que alguém apareceu
e trocou os sítios das chávenas
a mim coube-me a triangular.
As regras eram mesmo assim
para quebrar
como as tartes
como as chávenas.
Será que ainda as podemos colar?

Quando M. me enviou sms

Quando M. me enviou sms
a perguntar plo programa de fim-de-semana
senti a angústia da página em branco de sexta-feira
do cronista de domingo
mas depois lá esbocei este plano,
mais uma mnemónica, diria:
1.º mastigar a angústia como uma chiclete
ao som dos Táxi da altura em que a cuspia
sem qualquer preocupação com a pegada ecológica;
2.º passar pela secção dos Perdidos e Achados da PSP,
do Metro e dos STCP para ver se encontraram um
coração que há dias que não sinto o meu;
3.º listar todas as músicas de língua inglesa
que expõem um broken heart no refrão;
4.º desfazer a máxima:
«Toi, tu est un blogueur.
Moi, je suis une blagueuse.» (que construí a pensar no O'Neill)
sentindo-me digna de uma serviçal de Penélope, que as devia ter,
escondidas nas dobras da história, como escrevi a Z;
5.º rever o filme de Eris Riklis e deixar-te
sobre a tua mesinha de cabeceira este bilhete:
«Não verei o limoeiro crescer!»

Aviso ao leitor: pode começar pelo último ponto, passar ao terceiro, eliminar o segundo e acabar no primeiro. Pode mesmo não sair do primeiro. Ou passar todo o tempo no terceiro. E, se chegou até aqui, pode mesmo ignorar este poema.