Ana Hatherly

Ana Hatherly poeta, tradutora, ensaísta e professora universitária, nasceu no Porto em 1929 e morreu em Lisboa em 2015. Licenciada pela Universidade de Lisboa e Doutorada em Literaturas Hispânicas pela Universidade de Berkeley (U.S.A.). Estudou música e arte cinematográfica. Iniciou a sua carreira literária em 1958 com o livro de poemas Um Ritmo Perdido. Foi uma das principais colaboradoras do grupo de Poesia experimental, nos anos 60 e 70.

A sua poesia reúne fortes tendências barroquizantes e visuais. Algumas das suas obras fundem a expressão poética com a intervenção plástica. É o caso, por exemplo, de Mapas da Imaginação e da Memória (1973), bem como de várias exposições que incluem desenho, pintura e colagem, realizadas em galerias e centros de exposições. O seu trabalho está representado nas mais importantes Antologias e Histórias da Literatura Contemporânea de Portugal, Brasil, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Dinamarca, Suécia, Holanda, e República Checa. Tisanas é a sua obra mais traduzida.

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foto de Graça Sansfiel

Poemas

Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado

Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde

Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado

O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:

Luta com a palavra
como Jacob lutou com o anjo
mas a escada que ele sobe
conduz a outras alturas
a outras planuras

É assim que o poeta
palavra por palavra
como pedra sobre pedra
constrói o edifício do poema

E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é

 

No fundo azul
no espelho de uma delicada tristeza
que os meus olhos reflectem:
vês-me?
vês-me como eu sou?
vês-me como algo que se descobre
na acrobacia da imagem?

Na sensual tranquilidade da palavra
o poeta tenta uma arriscada ordem
e entre a fábula e a reportagem

simula mentir
para atingir
a superior verdade

 

de A Idade da Escrita, Edições Tema, 1998

O Pavão Negro

            I

O pavão negro da escrita
abre um leque de opções
exibe o luxo
do seu traje-cárcer

Babe silente
no vazio da Página 2 de 2 prende o tumulto
da voz
fixa o assalto da mão

Última instância rebelde
é jogo
            luta
                        luto
                                   grito calado

            II

O agudo grito do pavão
reverbera
e depois perde-se no ar

Na escrita
torna-se imagem
a imagem que a tinta reproduz
no assalto do ver-ler

A sua sedução
é um ponto de partida
feito de rastos
                 restos
                       resíduos
um jogo de dados

III

O voo do pavão
cruza o ar da Página
e logo pára
pousando na copa do sentido

O seu largo leque
só se abre
            quando alguém o vê
            quando alguém o quer
Só então desdobra
o radioso encanto
do seu frágil mistério

Um rio de luzes

Um rio de escondidas luzes
atravessa a invenção da voz:
avança lentamente
mas de repente
irrompe fulminante
saindo-nos da boca
No espantoso momento
do agora da fala
é uma torrente enorme
um mar que se abre
na nossa garganta
Nesse rio
as palavras sobrevoam
as abruptas margens do sentido

 

O eco de mil sinos de prata

O eco de mil sinos de prata
emudece
ante o labor da aranha
O tempo emudece
na cegueira do ar
na sua geografia nula
Que queres de mim
matéria insensível?

Nas coisas conhecidas
o verbo ser
emudece

 

Quando penso

Quando penso
a neve cai em mim
com uma lentidão sobrenatural

Não bate leve
como quem chama por mim:
Não bate
não chama
nem sequer cai

Paira
suspensa do tecido da matéria
onde só a luz cria o espaço

Mas sem luz não há espaço
e devorada por uma réstea de sol
imagino o meu pequeno vulto
lutando com o infinito desacerto-acerto

Quando penso
no meu peito estremece
a oferenda íntima
duma fractura oculta

O decifrador de imagens


O decifrador de imagens
persegue um fantasma de vestígios
como Ulisses amarrado
ao querer do conhecer
A descoberta é invenção provisória:
as vozes não se vêem
o que se vê não se ouve
A imaginação
ergue-se do arrepio da sombra
guerrilha entre parênteses
ergue-se da constante chacina
procurando outra coisa
outra causa
o outro lado do ver

 

O que é o espaço?

O que é o espaço
senão o intervalo
por onde
o pensamento desliza
imaginando imagens?
O biombo ritual da invenção
oculta o espaço intermédio
o interstício
onde a percepção se refracta
Pelas imagens
entramos em diálogo
com o indizível

de O Pavão Negro; Assírio & Alvim,2003

Estão envolvidos em corpos negros vermelhos por
dentro. Estão num barco sobre o mar e o mar é
negro. É de noite. O céu está negro e sobre a
água negra tudo é vermelho por dentro.

Os corpos eram negros
sobre o mar a água era de noite
não se via o vermelho por dentro
os corpos não se viam
eram barcos com os ventres todos negros
e as línguas eram de águas muito rentes
A sangue não sabia
não se via o vermelho por dentro
o céu a água envolvia
tudo envolvia nos vermelhos dentros
e os mares todas as noites estavam negros
negros por dentro
E a água volvia pelo céu tão negra
e à noite por dentro do mar todo vermelho
a noite era vermelha
e os barcos negros por dentro
E nos corpos a água negra era vermelha por dentro
e eles estavam envolvidos

em Rosa do Mundo- 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim , 2001

O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando.

 

Os sumérios eram sumários

os sumérios eram sumários
e por isso foram sumírios
daí vem que foram semírios
mírios de se ou de si
os sumírios eram sumários sendo sumério
e daí vem que foram sumiros
sumaros e sumêros

os sumários eram suma dos
é daí que vem o sumo
a soma e a suma-a-uma
os sumórios eram sumêdos
porque eram semudos
e mudos de se ou de si
eram sumúrios
os sumúrios eram semílicos
simólicos e simulados
daí vem que amaram a sêmula
a súmula
e o tacão alto

Era assim:

era assim:
queres?
queres algo?
queres desejar?
desejas querer?
desejas-me?
desejas querer-me?
queres desejar-me?
queres querer-me?
queres que te deseje?
desejas que te queira?
queres que te queira?
quanto me
queres?
quanto me
desejas?
ah   quanto te quero
quando te quero
quando me queres...

de um calculador de improbabilidades, Quimera, 2001

Quero dizer mais
e digo: mais

Mas cada vez
digo menos
o mais que sei
e sinto

poema encontrado aqui

 

Se uma pausa não é fim
e silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.

 

lido aqui

Os jardins imaginários
que de longe vislumbramos
pertencem
aos distraídos insensíveis entes
com que os povoamos

Sempre ficamos
do lado de cá de suas grades
desejosos-receosos de as passarmos

Sentimos o perfume
das rosas que inventamos
vemos o esplendor
dos frutos que sonhamos

Contemplamos
na inventada montra dos prazeres
as sublimes doçuras que sonhamos
sentindo sempre
que não
que não somos dignos
de fruir tais gozos

Nos proibidos jardins
que inventamos
nós
sombras-fantasmas
dum desejo que nos impele em vão
nós
jamais perturbamos
a serenidade
de seu eterno impassível Verão

em "Rilkeana", Assírio & Alvim, 1999 

Se uma pausa não é fim
e silêncio nâo é ausência,
se um ramo partido não mata uma árvore,
um amor que é perdido,será acabado?

um ouvido que escuta
uma alma que espera...
-uma onda desfeita
É ou já não era?

Nuvem solitária,
silenciosa e breve,
nuvem transparente,
desenho etéreo de anjo distraído...

nuvem,
esquecida em céu de esperança,
forma irreal de sonho interrompido..

nuvem,
luz e sombra,
forma e movimento,
fantasia breve de ânsia de infinito...

nuvem que foste
e já não és:
desejo formulado e incompreendido.

lido aqui