Se eu pudesse dar-te aquilo que não tenho
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo com que sonhas
e o que só por mim poderá ter sonhado
Se eu pudesse dar-te o sopro que me foge
e que fora de mim jamais se encontra
Se eu pudesse dar-te aquilo que descubro
e descobrir-te o que de mim se esconde
Então serias aquele que existe
e o que só por mim poderá ter sonhado
O poeta não quer duplicar o mundo
não quer fazer dele uma cópia:
Luta com a palavra
como Jacob lutou com o anjo
mas a escada que ele sobe
conduz a outras alturas
a outras planuras
É assim que o poeta
palavra por palavra
como pedra sobre pedra
constrói o edifício do poema
E a sua mão
robótico instrumento comandado
pela algébrica lógica do sentido oculto
produz
deve produzir
o que o mundo não tem
o que o mundo não diz
o que o mundo não é
No fundo azul
no espelho de uma delicada tristeza
que os meus olhos reflectem:
vês-me?
vês-me como eu sou?
vês-me como algo que se descobre
na acrobacia da imagem?
Na sensual tranquilidade da palavra
o poeta tenta uma arriscada ordem
e entre a fábula e a reportagem
simula mentir
para atingir
a superior verdade
de A Idade da Escrita, Edições Tema, 1998