Albano Martins
Albano Martins, um dos mais importantes poetas da literatura portuguesa contemporânea, nasceu numa aldeia dos arredores do Fundão em 1930. Publicou o seu primeiro livro, "Secura Verde", em 1950. Licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, foi professor do Ensino Secundário durante vários anos e é, actualmente, professor na Universidade Fernando Pessoa, no Porto.
Para além dos muitos livros de poesia publicados ao longo destes 50 anos, de que se destacam o último, "Escrito a Vermelho", de 1999 e a Antologia "Assim são as Algas" onde está reunida toda a sua poesia, Albano Martins é ainda autor da tradução de grandes poetas clássicos e contemporâneos, como o "Cântico dos Cânticos" de Salomão, "Dez Poetas Gregos Arcaicos", "Antologia Poética de Rafael Alberti", o "Canto Geral" de Pablo Neruda, com o qual ganhou o Grande Prémio de Tradução, entre outros (...)
Morreu a 6 de junho de 2018, em Mafamude, Vila Nova de Gaia
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Ao fim da tarde
Acrescentarei agora
ao fim da tarde: escrever
é também
lançar bóias
ao mar (é isso
que se chama
escrever
sobre a água). Ou atirar
em direcção ao sul
algumas garrafas vazias
e sem destinatário. E não haver,
por isso, salvação. assim
o dizes, ao menos,
e eu acredito.
Cedo ou tarde
Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.
Paleta
Tens uma paleta
a que faltam
algumas cores. Talvez
porque há substâncias
a que não soubeste
dar expressão. Ou porque elas
são incolores. Ou porque
em toda a realidade
há fendas
que nem pela palavra
nem pela cor
alguma vez
saberás preencher.
Tela
Alguns pincéis fizeram
do muro uma tela. O que ali
se lê não é
o que ali se expõe, o que ali
se escreve. As tintas são letras
que não têm voz.
Assim são as algas
Das palavras
que aprendeste
só uma
não tem tradução.
Quando traduzes
o amor, tu sabes
que é já outro o seu nome.
Assim são as algas
quando apodrecem.
Resíduos
Quando dizes resíduo,
só dizes o que sobra.
Mas devias falar antes
do que falta. Entre um
e outro é que moram
os minerais e as outras
substâncias vivas. E é lá
também que tu
moras ainda.
Um novo firmamento
Gostarias de decidir por ti.
O sol nunca se atrasa. A noite chega sempre a horas
certas.
Tu adiantaste o relógio com receio de adormecer mais
cedo ou de não chegar a tempo à festa do dia seguinte.
Não te perguntaram se querias vir e alguém marcou, sem
teu consentimento, a hora da chegada. Gostarias de ser tu
a marcar a partida.
Precisas de inventar um relógio onde o tempo não
decline e um leito onde o sol não adormeça. um firmamento
onde tu e ele sejam as únicas estrelas.
Pequenas coisas
Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Não são apenas os relógios
Também se pode
regressar sem partir. Não são apenas
os relógios que se atrasam, às vezes
é o próprio tempo. E todos
os cuidados são
então necessários. Há sempre
um comboio que rola
a nosso lado sem luzes
e sem freios. E pode
faltar-nos o estribo ou já
não haver lugar
na carruagem da frente.
Cortina
Se corres a cortina
da janela onde moras,
as sombras ganham
súbitos relevos.
Assim tu
devias ser: dar vida
às sombras
que em ti moram, e não
deixar os ecos
sem resposta. E existir
como existe
um raio na sombra.
Do lado esquerdo
Vem sempre
do lado esquerdo.
As dores, mesmo
quando são fingidas, nunca
cicatrizam e é
do lado esquerdo
que se fixam. Delas
se poderá dizer
que são sinistras. Assim
a mão que só
para suprir carências
se obriga às vezes
a escrever. assim
os presságios
dos áugures se
para norte olhavam. E as dores,
repito,
sobretudo aquelas
cujo nome não sabes
ou por cautela omites.
Um Dos Capítulos
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
Frutos
Quando a amada oferece
o seu corpo, ela sabe
que dos frutos apenas
se colhe o sabor.
É então
que os dedos
separam as películas,
que a lâmina desce e a água
e o fogo se misturam.
E é então que a vida
e a morte convivem
sob o mesmo tecto.
de Escrito a vermelho, Campo das Letras, 1999
A Lâmina, o Punhal
Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.
As palavras
em trânsito
Resvalas neste sopro.
Sabes
que tens o olhar ferido
desde sempre, que o incêndio
das palavras em trânsito celebra
prescritas sílabas, ancorados
ritos, desprevenidos
equinócios.
Dantes,
havia um mar crispado
na fissura dos lábios. Hoje, apenas
algumas gotas de sal.
Crepúsculo de Agosto
Para a minha filha
Dos amigos que perdi
não falo. Sei
que estamos em agosto, mês
dos remos escaldantes, sei
que há lodo sob as algas,
sob a pele. Oblíqua,
sei também, a sombra
cai sobre as oliveiras. É
tempo de içares
tuas velas, teus ergueres
teus guindastes
junto ao rio. Dis
poníveis estão
as luzes; preparadas,
ermas estão as águas.
Preciso de arrumar a casa, rever o sistema, brunir
os móveis e o tato.
Preciso de opor o tempo ao tempo.
O espaço ao espaço.
poemas encontrados aqui
Do indizível -Pequenas coisas
Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
**********
Há um melro que faz
o ninho na minha memória. Ouço-o
agora. Canta
a flor das giestas
e da cerejeira. Traz,
emoldurados no bico,
os meus dezoito anos
poemas enviados por Amélia Pais
A casa desabitada que nós somos
pede que a venham habitar,
que lhe abram as portas e as janelas
e deixem passear o vento pelos corredores.
Que lhe limpem os vidros da alma
e ponham a flutuar as cortinas do sangue
– até que uma aurora simples nos visite
com o seu corpo de sol desgrenhado e quente.
Até que uma flor de incêndio rompa
o solo das lágrimas carbonizadas e férteis.
Até que as palavras de pedra que arrancamos da língua
sejam aproveitadas para apedrejarmos a morte.
lido aqui
Vem tudo à superfície.
Como se
dentro da casa
um maremoto levantasse
as pedras todas, uma a uma; como se
no centro, iluminadas,
as esferas rodassem
no seu eixo — tudo
de repente se inclina, tudo arde
nesta fogueira acesa
como um archote de sangue, uma lua
de enxofre.
lido aqui
Virás
como um sopro, uma leve
palpitação da carne, um arrepio
na pele encrespada
do desejo. Dirão
alguns que é primavera e o vento
arredonda a saia
das árvores. Eu digo
que é verão e foi
o amor que chegou.
(poema inédito)
em Os rumos do vento / Los rumbos del viento (Antologia de poesia)
Câmara Municipal do Fundão/Trilce ediciones; 2005
Entre o real e o sonho,
o sonho do real,
a realidade do sonho.
Entre a luz e a parede
oblíqua, os dedos
filtram a sombra estagnada.
Entre o disforme e o informe,
a forma
solenemente exacta.
Lido aqui
Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.
lido aqui