Al Berto
Al Berto, pseudónimo de Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu em Coimbra em 1948 e morreu em Lisboa, em 1997. Nas primeiras obras poéticas, Al Berto seguiu de perto a linha surrealista, especialmente a que emana de Herberto Hélder. Posteriormente, funde a poesia na prosa, criando uma espécie de deambulações fragmentárias. Foi distinguido em 1988 com o Prémio Pen Club de Poesia pela obra OMedo. Algumas das sua obras foram traduzidas para espanhol, francês, inglês e italiano.
Quando um poeta morre cedo de mais e deixa a vida a arder nas mãos de quem fica, acontece isto: queima-nos a todos e todos são cada vez mais. É assim, por combustão progressiva, que crescem os mitos. Al Berto tinha os seus e sangrou-os vorazmente em tudo o que escreveu - em tudo o que viveu.
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Foto: Luisa Ferreira
Escrita
A escrita é a minha primeira morada de silêncio
a segunda irrompe do corpo movendo-se por trás
das palavras
extensas praias vazias onde o mar nunca chegou
deserto onde os dedos murmuram o último crime
escrever-te continuamente... areia e mais areia
construindo no sangue altíssimas paredes de nada
esta paixão pelos objectos que guardaste
esta pele-memória exalando não sei que desastre
a língua de limos
espalhávamos sementes de cicuta pelo nevoeiro
dos sonhos
as manhãs chegavam como um gemido estelar
e eu perseguia teu rasto de esperma à beira-mar
outros corpos de salsugem atravessam o silêncio
desta morada erguida na precária saliva do
crepúsculo
Escrevo-te
ESCREVO-TE A sentir tudo isto
e num instante de maior lucidez poderia ser o rio
as cabras escondendo o delicado tilintar dos guizos nos sais de prata da
fotografia
poderia erguer-me como o castanheiro dos contos sussurrados junto ao fogo
e deambular trémulo com as aves
ou acompanhar a sulfúrica borboleta revelando-se na saliva dos lábios
poderia imitar aquele pastor
ou confundir-me com o sonho de cidade que a pouco e pouco morde a sua imobilidade
habito neste país de água por engano
são-me necessárias imagens radiográficas de ossos
rostos desfocados
mãos sobre corpos impressos no papel e nos espelhos
repara
nada mais possuo
a não ser este recado que hoje segue manchado de finos bagos de romã
repara
como o coração de papel amareleceu no esquecimento de te amar
de O Medo, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997
Incêndio
Se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha – não te assustes
são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te
diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo – diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas – com eles no chão
*
Aprendeu a separar o nocturno zinabre
do transumante desejo e poro a poro o dia
larga sobre a pele os perfumes da terra
e o tempo cobre-se de cardos em cinza
tem o olhar escondido na inquietação da luz
guarda no peito o sossego dormente das pedras
um ombro de sombra dá-lhe fresco à boca
mas se ao morrer o abrissem ao meio
nada encontrariam
nem vísceras nem ossos nem sangue
apenas poalha de água
e a dor de infindável travessia
Um nome, um nome apenas, evocando alguém,
um lugar ou uma coisa, é a bagagem suficiente
para avançar pela noite dentro, esperar a morte,
ou iniciarmos o regresso...
de O Anjo Mudo, Contexto, 1993
Uma Paixão
Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado
tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem
ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem
antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem
com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te
Salsugem, 1984
Vigílias
Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador
Incêndio
se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
continua e miudinha – não te assustes
são os teu antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te
diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo – diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas – com eles no chão
notas para o diário
deus tem que ser substituído rapidamente por poe-
mas, sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
a dor de todas as ruas vazias.
sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis-
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.
a dor de todas as ruas vazias.
mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu cora-
ção, ou onde o medo tem a precaridade doutro corpo.
a dor de todas as ruas vazias.
pois bem, mário - o paraíso sabe-se que chega a lis-
boa na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.
é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.
a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida - e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.
de Horto de Incêndio;Assírio & Alvim, Dezembro 2000
destino-te a tarefa de me sepultares
no segredo mineral da noite
com um lápis e uma máquina fotográfica
depois
fica atento ao correio
do secular laboratório nocturno enviar-te-ei
devidamente autografado
o retrato da solidão que te pertenceu
e numa encomenda à parte receberás
a revelação desta arte
onde a vida cinzelou o precário corpo
na luz afiada de um vestígio de tinta.
de Vigílias
no Poemário, Assírio & Alvim, 2006
estamos encostados a uma roulotte bebemos sangria
conversamos enquanto queimamos a noite
junto ao mar
o vento fresco surpreende-nos com as mãos nervosas
em redor dos copos embaciados a ternura dum olhar
não chega para iludir a embriaguez dos amores imperfeitos
sei que possuis ainda alguma juventude nesse sorriso
eu já só embebedo os lábios viciados pelas palavras
pouco tenho a dizer-te
toco-te no ombro faço promessas e tu ris
enquanto descobrimos no silêncio cúmplice do vinho
treme uma teia de luminoso sal onde a noite cai
sobreviveremos ao desgaste do amor
bebemos mais
para que haja só desejos e não amor entre nós e
o rapaz que tem a mania de espetar uma faca loura
no ombro do mar
La vie est une gare, je vais bientôt partir,
je ne dirai pas où.
calei-me
sabendo que me conduzirias até casa pelo caminho da praia
cambaleantes
e enquanto eu não conseguir abrir de novo os olhos
não partirás tenho a certeza
com a tua jaula cheia de luas mansas
apaziguadas
de «Alguns Poemas da Rua do Forte», 1983