Adília Lopes

Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, nasceu em Lisboa, em 1960. Frequentou a licenciatura em Física, na Universidade de Lisboa, que viria a abandonar. Começa a publicar a sua poesia no Anuário de Poetas não Publicados da Assírio & Alvim, em 1984. Antes disso, em 1983, começa uma nova licenciatura, em Literatura e Linguística Portuguesa e Francesa, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Pelo meio, antes de a terminar, publica o seu primeiro livro de poesia, Um Jogo Bastante Perigoso, em edição de autor (1985). Da sua extensa obra poética, destacam-se ainda os títulos Irmã Barata, Irmã Batata (2000), Manhã (2015), Bandolim (2016), Estar em Casa (2018) ou ainda Dobra (2021), a mais recente reunião da sua obra publicada, incluindo inéditos. Tem colaborado em diversos jornais e revistas, em Portugal e no estrangeiro, com poemas, artigos e poemas traduzidos.

"Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu. Como uma papoila é poppy. E muitos outros nomes que eu não sei. A Adília Lopes é água no estado gasoso, a Maria José é a mesma água no estado sólido.

Eu sou uma mulher, sou portuguesa, sou lisboeta, sou poetisa, sou linguista (todos somos), sou física, sou bibliotecária, sou documentalista, sou míope, nasci a 20 de Abril de 1960, sou solteira, não tenho filhos, sou católica, tenho os olhos castanhos, meço 1,56 m, neste momento peso 80 Kg, uso o cabelo curto desde 1981, o cabelo é castanho escuro com muitos cabelos brancos.(…) É claro que o poeta é sempre o idiota da família, o maluquinho."

vivamente aconselhado:

  • Obra, Mariposa Azual, 2000

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Retrato de Adília Lopes, por Miguel Manso.

Poemas

O Presente

Vou-te dar um presente
eu gosto de presentes
é uma caixa de jóias
é tão bonita
dentro está um anel com uma pedra preciosa
porque é tão grande?
toma
porque é tão grande?
toma
cuidado
dentro está um anel com uma pedra preciosa
mas talvez nunca o chegues a pôr no dedo
na caixa está uma serpente
para pegares no anel tens de abrir a caixa
se abrires a caixa a serpente pode picar-te o dedo
e tu podes morrer
se não abrires a caixa

A propósito de estrelas

Não sei se me interessei pelo rapaz
por ele se interessar por estrelas
se me interessei por estrelas por me interessar
pelo rapaz hoje quando penso no rapaz
penso em estrelas e quando penso em estrelas
penso no rapaz como me parece que me vou ocupar com as estrelas
até ao fim dos meus dias parece-me que
não vou deixar de me interessar pelo rapaz
até ao fim dos meus dias
nunca saberei se me interesso por estrelas
se me interesso por um rapaz que se interessa
por estrelas já não me lembro
se vi primeiro as estrelas
se vi primeiro o rapaz se quando vi o rapaz vi as estrelas

de um jogo bastante perigoso, 1985
em Obra, Mariposa Azual, 2000

Estou outra vez a escrever-lhe
para lhe dizer
outra vez
que não lhe escrevo mais
lembra-se dos pesados cortinados
de veludo cor de canela do meu boudoir?
eu também

*

Algumas cartas de Marianna foram parar
a destinatários diferentes
por cansaço dos carteiros
e Marianna soube disso
ela andava pelos corredores do metro
a abordar senhores
desculpe não foi a si que eu escrevi
comove-me tanto?
e os senhores apavorados
davam-lhe vinte e cinco escudos
a correr
e ela comprava mais selos
e ela comprava mais selos
não sei se é a si que estou a escrever
não me lembro das suas mãos bem
ontem no metro julguei reconhecê-lo
mas foi mais um terrível engano
mais tarde ou mais cedo todas as cartas
lhe serão devolvidas hermeticamente
fechadas
minha senhora o seu amante
não se encontra nesta morada

Kabale und Liebe

Marianna suspeita que
não é por cansaço dos carteiros
nos C.T.T. há funcionários
incumbidos
de lhe abrir as cartas
com facas muito finas
e de as substituir por fakes
humilhantes para ela
e para o marquês
ô les insondables mystères
de la poste!
e Marianna vê esta frase
que escreveu
já subrepticiamente num postal
desfigurada
por dedos peritos na Mal
dade (como os do Dr. Mabuse)
oh les inssondiable Mjsthère
de La Pozte &
nada é tão humilhante como um erro
de ortografia

Mas não
uma vez um carteiro
inexperiente
deixou cair uma carta
perto de uma sarjeta parisiense
e a carta de Marianna envelheceu ao lado de uma folha
caída
com a água das ruas de Paris
com o lixo das ruas de Paris
deito-me a pensar em si
como para ouvir Bach
preciso de me deitar
não sei porquê
é tão forte o que me dá
et l’eau coule encore

O marquês de Chamilly a Marianna Alcoforado

Minha senhora deve ter
uma coisa muito urgente e capital
a dizer-me
porque me tem escrito muito
e muitas vezes
porém lamento dizer-lho
mas não perecbo
a sua letra
já mostrei as suas cartas
a todas as minhas amigas
e à minha mãe
e elas também não perceberam bem
não me poderia dizer
o que tem a dizer-me
em maiúsculas?
ou pedir a alguém
com uma letra mais regular
que a sua
que me escreva
por si?
como vê tenho a maior boa vontade
em lhe ser útil
mas a sua letra minha senhora
não a ajuda

*

Porém o marquês escreveu tão à pressa
a morada de Marianna Alcoforado
que a carta foi parar
a uma freira
que se chamava Marianna Alcoforado
mas que não vivia
no convento onde esta nossa
Marianna Alcoforado mora
a outra Marianna Alcoforado
nunca percebeu
mas também nunca se ralou
conhecia outro marquês de Chamilly
com quem se correspondia
distraidamente
meu amigo
para a próxima
tenha mais graça
e a freira e o marquês
a intervalos de tempo separados
encolheram os ombros

de O Marquês de Chamilly ,1987
em Obra, Mariposa Azual, 2000 

Um figo

Deixou cair a fotografia
um desconhecido correu atrás dela
para lha entregar
ela recusou-se a pegar na fotografia
mas a senhora deixou cair isto
eu não posso ter deixado cair isto
porque isto não é meu
não queria que ninguém
e sobretudo um desconhecido
suspeitasse que havia uma relação
entre ela e a fotografia
era como se tivesse deixado cair
um lenço cheio de sangue
porque era ela quem estava na fotografia
e nada nos pertence tanto como o sangue
por isso quando uma pessoa se pica num dedo
leva logo o dedo à boca para chupar o sangue
o desconhecido apercebeu-se disso
é um retrato da senhora
pode ser o retrato de alguém muito parecido comigo
mas não sou eu
o desconhecido por ser muito bondoso
não insistiu
e como sabia que os mendigos
não têm dinheiro para tirar fotografias
deu a fotografia a um mendigo
que lhe chamou um figo
 
O Decote da Dama de Espadas, 1988

em Obra, Mariposa Azual, 2000

Correspondência
Com as minhas cartas de amor
vou fazer um castelo de cartas de amor

*

A vida não é um romance epistolar
ai de quem julga que é Marianna
e vive de cartas

*

Mais vale bater claras em castelo no Dafundo
do que ter castelos de vento em Espanha

*

Eram de papel de carta
as minhas cartas de amor

*

As minhas cartas de amor
eram tão infelizes
que hoje são cartas de jogar

*

Viver de cartas é viver de vento

*

Não recebo correspondência meu amor
o meu amor não é correspondido
ao contrário do âmbar e do benjoim

*

De Espanha nem bom vento
nem bom casamento

*

O meu castelo de cartas é fraco
como um castelo de cartas
e como um castelo de cartas
o meu castelo de cartas é fraco

*

O vento deita por terra
os castelos de cartas
e os castelos                                                                                                                                                

de Os 5 livros de versos salvaram o tio, 1991

em Obra, Mariposa Azual, 2000

Entregámo-nos
um ao outro
dentro dos lençóis
brancos
à tarde
na posição mais
ortodoxa
e agora sabemos
e não sabemos
um do outro
escrevemo-nos
escrevemos

Adormecer
(com algumas coisas de Maria Teresa Horta)

Preciso de te tocar
caule
gato
corda
mão
abraço-te
a tua roupa
tu
não te divulgo
o teu nome
os teus olhos azuis
a tua gentileza
espero que os partilhes
com alguém querido
como os partilhaste
comigo
amante querido
que não perco
que não deito fora
os meus amantes
não são Gillettes
(não são de usar
e deitar fora)
embora eu seja
uma poetisa pop
e não tenha amantes
gosto de adormecer
a lembrar-me de ti
de como me sorrias
de como me olhavas
se os meus poemas
contribuíram para isso
são excelentes

Eclesiastes

Tempo de foder
tempo de não foder
saber gerir
os tempos
compor
saber estar sozinha
para saber estar contigo
e vice-versa
aqui estão as minhas contas
do que foi

*

For Angels rent the House next ours,
Wherever we remove
Emily Dickinson

 

Eu apaixonada pelo José
tu apaixonado pela Maria
caímos nos braços
um do outro
na minha cama
somos filhos um do outro
tão maternais tão genitais
adoptámo-nos um ao outro
mal nos vimos
dizes-me para comprar sedas
para me casar com o José
despedimo-nos com beijos nas faces
(mas já não há sedas
e o José nem sequer gosta de mim)
ainda bem que te casaste com a Maria

*

O teu corpo
treme
perto do meu
estamos sentados
um ao lado do outro
na minha cama
no hotel
é como se tivesses febre
mas não estamos doentes
eu sinto-me muito calma
abraço-te
peço-te desculpa
por te abraçar
retirei a estes poemas
o exotismo
aliás não houve exotismo nenhum
senti-me como o peixe na água

de o peixe na água, 1993
em Obra, Mariposa Azual, 2000

 


 

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia era bonita, as pessoas diziam-lhe:
- Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
- Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
- Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
- Será uma sereia ? . perguntaram em coro as criadas ao rei.
- Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra . respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:
- Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
- Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

de A Bela Acordada, 1997
em Obra, Mariposa Azual, 2000

Quero
a tua mão

Não quero
contos

Era uma vez
uma donzela
que achou
uma mão
decepada
Pelo caminho
achou
um pastor
cheio de dor
porque um malfeitor
lhe tinha cortado
uma mão
para lhe roubar
um anel
A donzela
pregou a mão
ao braço
E a dor
do pastor
ainda foi
maior

de Clube da Poetisa Morta, 1997
em Obra, Mariposa Azual, 2000

Fedra está apaixonada
por Hipólito
Hipólito não está apaixonado por Fedra
Fedra enforca-se
Hipólito morre num acidente

Dido está apaixonada
por Eneias
Eneias não está apaixonado
por Dido
Dido oferece uma espada
a Eneias
Eneias esquece-se da espada
quando se vai embora
Dido suicida-se
com a espada esquecida
por Eneias

Um desgosto de amor
atirou-me para um
curso de dactilografia
consolo-me
a escrever automaticamente
o pior são os tempos livres

de Sete Rios Entre Campos, 1999
em Obra, Mariposa Azual, 2000

Eu quero foder foder
achadamente
se esta revolução
não me deixa
foder até morrer
é porque
não é revolução
nenhuma
a revolução
não se faz
nas praças
nem nos palácios
(essa é a revolução
dos fariseus)
a revolução
faz-se na casa de banho
da casa
da escola
do trabalho
a relação entre
as pessoas
deve ser uma troca
hoje é uma relação
de poder
(mesmo no foder)
a ceifeira ceifa
contente
ceifa nos tempos livres
(semana de 24 x 7 horas já!)
a gestora avalia
a empresa
pela casa de banho
e canta
contente
porque há alegria
no trabalho
o choro da bebé
não impede a mãe
de se vir
a galinha brinca
com a raposa
eu tenho o direito
de estar triste

*

La consolidation de l’absence

Podia espezinhar
o teu retrato
dar um beliscão
ao cão
despejar no tapete
os apetrechos de costura
nada disso farei
porém
mas também não sei
o que hei-de fazer
mais
para me entreter

Podia beijar
o teu retrato
afagar o cão
bordar um amor-perfeito

*

Portugueses:
gente ousada

gente usada

Brandos usos:
abusos grandes
e pequenos

de Florbela Espanca Espanca, 1999
em Obra, Mariposa Azual, 2000

Apanhei o cabelo
em rabo de cavalo
agora a minha solidão
vê-se melhor
vê-se tão bem
como a minha face

E a minha face
é desassombrada
as sombras
não são minhas.

pag. 29 da revista Relâmpago, nº 14, 4/2004
(Vale a pena ler e perceber como é que a Adília Lopes fez este poema)

Não morro
de saudades
tuas

Vivo
de saudades
tuas

As saudades
minhas e tuas
dão saúde

Não desejo
a morte
desejo
a vida

de Poemas Novos, 2004

Uma tarde Maria Cristina
obrigou-me a comer osgas
e a repetir
com a boca cheia de osgas
as pessoas sensíveis
gostam de comer osgas
mas não gostam
de ver matar osgas
por isso têm de comer
as osgas vivas
se querem fazer na vida
aquilo de que gostam

Para mim, o fio do dia não existe – ou existe? Existem contas de colar e não colar. Um colar suspenso no ar, sem fio, coisa de circo, de magia, coisa desequilibrável. Desequilibrável mas não quebrável, desequilibrável mas não desequilibrada. E não me limito a jogar com palavras – aliás, nunca jogo.

*

Não há
uma estrada
é de noite
há só
uma estrela

E
muitas vezes
nem estrada
nem estrela

*

Quando estou contente
amo toda a gente
quando estou triste
tudo me resiste

*

Era
uma casa
morta
não tinha porta

Era
uma casa
muda
não tinha
rua

*

Pássaros a sair
das árvores
como folhas
a cair
das árvores

Primavera
que parece
Outono

*

Tenho nós
dentro de mim
que tenho
de desatar

Tenho nós
dentro de mim
que me estão
a estrangular

*

O passado
é plasticina
como o futuro

O presente
é carnificina

&etc, 2006