Wislawa Szymborska
Wislawa Szymborska nasceu em 1923 em Bnin (Kornik), na Polónia. Vive em Carcóvia desde 1931. Durante a guerra frequentou cursos clandestinos, posteriormente estudou literatura polaca e sociologia na Universidade Jaguellonica. Estreou-se como poeta em 1945 com o poema Szukam slowa (Procuro uma Palavra). De 1953 a 1981 colaborou, como editora de poesia e como colunista, na revista semanal Zycie Literackie (A vida literária).
Os seus ensaios Lektury nadobowiazkowe foram reunidos num livro. Traduziu vários poetas franceses. Wislawa Szymborska tem 16 obras de poesia publicadas, a primeira, intitulada É por isso que estamos vivos (1951), é uma tentativa de se adaptar ao realismo-socialista, o estilo literário aprovado oficialmente pelo regime comunista. W. Szymborska aborda temas como as lutas modernas na Polónia, o Holocausto, a II Guerra Mundial, a ocupação soviética e a transição para a democracia.
Na sua poesia, o contexto histórico e biológico manifesta-se em fragmentos da realidade humana. Os seus poemas foram traduzidos para 36 línguas. Em Portugal foram publicados dois livros: Paisagem com grão de Areia, Relógio D’Água, 1998 e Alguns Gostam de Poesia- Antologia, Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbrosca, Cavalo de Ferro Editores, 2004. Ganhou vários prémios, nomeadamente o Prémio Nobel, em 1996.
Wislawa Szymborska morreu aos 88 anos, no dia 1 de Fevereiro de 2012
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foto. Witold Krassowski
Possibilidades
Prefiro cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos nas margens do Warta.
Prefiro Dickens a Dostoievski.
Prefiro-me gostando de homens
em vez de estar amando a humanidade.
Prefiro ter uma agulha preparada com linha.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não afirmar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as excepções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar com os médicos sobre outra coisa.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não os escrever.
No amor prefiro os aniversários não redondos
para serem comemorados cada dia.
Prefiro os moralistas,
que não prometem nada.
Prefiro a bondade esperta à bondade ingénua demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos países conquistadores.
Prefiro ter objecções.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de fadas de Grimm às manchetes de jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães com o rabo não cortado.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que aqui não disse,
a outras tantas não mencionadas aqui.
Prefiro os zeros à solta
a tê-los numa fila junto ao algarismo.
Prefiro o tempo do insecto ao tempo das estrelas.
Prefiro isolar.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro levar em consideração até a possibilidade
do ser ter a sua razão.
ESTAÇÃO
A minha não chegada à estação de N.
ocorreu pontualmente.
Foste avisado por
uma carta não enviada.
Conseguiste não chegar
à hora prevista.
O comboio entrou na linha três.
Saiu muita gente.
Na multidão, dirigia-se para a saída
a minha pessoa ausente.
Algumas mulheres agitadas
substituíram-me
em toda aquela agitação.
Para uma delas
correu um desconhecido,
mas ela reconheceu-o
imediatamente.
Eles trocaram
o não nosso beijo
e entretanto desapareceu
a não minha mala.
A estação na cidade de N.
ficou aprovada no exame
de existência objectiva.
Tudo estava no seu lugar.
Os pormenores seguiam
as trajectórias predefinidas.
Até se realizou
o encontro combinado.
Fora do alcance
da nossa presença.
No paraíso perdido
da probabilidade.
Em outro lugar.
Em outro lugar.
Que bem que soam estas palavrinhas.
Alguns gostam de poesia
Alguns -
quer dizer nem todos.
Nem a maioria de todos, mas a minoria.
Excluindo escolas, onde se deve
e os próprios poetas,
serão talvez dois em mil.
Gostam -
mas também se gosta de canja de massa,
gosta-se da lisonja e da cor azul,
gosta-se de um velho cachecol,
gosta-se de levar a sua avante,
gosta-se de fazer festas a um cão.
De poesia -
mas o que é a poesia?
Algumas respostas vagas
já foram dadas,
mas eu não sei e não sei, e a isto me agarro
como a um corrimão providencial.
O Terrorista- ele está a ver
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São só treze e dezasseis.
Alguns ainda vão a tempo de entrar;
outros de sair.
O terrorista passou para o outro lado da rua.
A esta distância fica a salvo de todo o mal
e vê tudo como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo - ela entra.
Um homem de óculos escuros - ele sai.
Rapazes de jeans - eles trocam impressões.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
O mais baixo - ele tem sorte, monta na dcooter,
mas o mais alto - ele entra.
Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma rapariga de fita verde no cabelo.
De repente, desaparece atrás do autocarro.
Treze e dezoito.
A rapariga já não se vê.
Terá sido estúpida ao ponto de entrar?
Logo se vê, quando retirarem os corpos.
Treze e dezanove.
Ninguém parece querer entrar.
Em contra-partida sai um careca gordo.
Remexe os bolsos como se procurasse algo
e quando faltam dez segundos para as treze e vinte –
ele volta por umas reles luvas que esqueceu.
São treze e vinte.
O tempo, como ele demora.
Está na hora.
Ainda não.
Sim, já está.
A bomba - ela explode.
Fotografia de 11 de Setembro
Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.
A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.
Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.
Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.
Ainda estão no âmbito do ar,
ao alcance dos lugares
que acabaram de se abrir.
Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.
FOLHETO
Sou o comprimido calmante.
Actuo em casa,
sou eficaz na repartição,
sento-me no exame,
apresento-me em tribunal,
colo minuciosamente a louça partida.
Basta que me tomes,
que me ponhas debaixo da língua,
que me engulas
com um copo de água.
Sei o que fazer na desgraça,
como aguentar a má notícia,
diminuir a injustiça,
desanuviar a falta de Deus,
escolher o chapéu de luto a condizer.
Por que esperas?
Confia na piedade química.
Tradução: Elżbieta Milewska e Sérgio das Neves
de Alguns gostam de poesia- Antologia- Czeslaw Milosz e Wislawa Szymbroska, Cavalo de Ferro, 2004
Elogio dos sonhos
Nos sonhos
pinto como Vermeer Van Delft.
Falo grego com fluência
e não apenas com os vivos.
Conduzo um automóvel
que me é obediente.
Sou hábil,
escrevo grandes poemas.
Escuto vozes
tão bem como os antos mais austeros.
Ficaréies admirados
da perfeição com que toco piano.
Consigo voar como devia ser,
isto é, eu de mim própria.
Ao cair de um telhado
sei como descer lentamente na verdura.
Não me lamento:
consegui descobrir a Atlântida.
Fico contente porque, antes de morrer,
consigo acordar sempre.
A guerra a rebentar
e eu a virar-me para o melhor lado.
Sou, sem ter porém
que o ser, filho da época.
aqui há alguns anos
vi dois sóis.
e, antes de ontem, um pinguim,
ali, muito nítido, ao pé de mim.
Despedida da paisagem
Não quero mal à Primavera
por ela aí estar de novo.
Não a culpo por,
como em cada ano,
cumprir as suas obrigações.
Compreendo que a minha tristeza
não detém a vegetação.
O cálamo se vacila
é só ao vento.
Não me causa dor
que sobre a água os tufos de amieiros
de novo tenham com que ramalhar.
Tomo em consideração
que, como se vivesses ainda,
a margem de certo lago
permaneça linda como foi.
Nada tenho contra
esta vista, à vista
da baía esplendorosa de sol.
Consigo até imaginar
que outros que não nós
se sentem neste momento
no tronco do pinheiro derrubado.
Respeito o seu direito
ao murmúrio, ao riso,
a um silêncio feliz.
Apostaria mesmo
que o amor os une
e que ele a envolve
com um braço vivo.
A passarada nova
rumoreja nos caniços.
Sinceramente lhes desejo
que a ouçam.
Não peço qualquer mudança
às ondas de junto à margem.
desenvoltas, preguiçosas,
rebeldes ao meu querer.
Nada exijo
aos fundos da água sob o bosque,
safira agora
e logo esmeralda
e logo negros.
Com uma coisa não concordo.
Em regressar lá.
Desisto dele -
do privilégio da presença.
Pois quanto baste eu Te sobrevivi,
apenas quanto baste,
para pensar com distância.
Álbum
Na minha família ninguém morreu de amor.
Se alguma coisa houve não passou de historieta.
Tísicas de Romeu? Difterias de Julieta?
Alguns envelheceram até ganhar bolor.
Ninguém a definhar por falta de resposta
a uma carta molhada e dolorosa.
Apareceu sempre por fim algum vizinho
com lunetas e uma rosa.
Ninguém a desfalecer no armário de asfixia
de algum marido voltando sem contar.
E os mantos e os folhos e as fitas de apertar
a nenhuma impediram de ficar na fotografia.
E nunca no espírito satânico de Bosch!
E nunca pelos quintais de arma em punho!
De bala na cabeça teve a morte outro cunho
e em macas de campanha alguém os trouxe.
De olheiras fundas como após a grande folia,
até esta aqui de carrapito extático,
se fez ao largo em grande hemorragia
mas não por ti, ó bailarino, e com viático.
Talvez antes do daguerreótipo, alguém,
mas nos deste álbum, ninguém, que eu verifique.
Tristezas dissiparam-se, os dias sucederam-se,
e eles, reconfortados, sumiram-se de gripe.
Vida na expectativa
Vida na expectativa.
Espectáculo sem ensaios.
Corpo sem tirar medidas.
Cabeça sem reflexão.
Não sei o papel que desempenho.
Sei apenas que é o meu, intransmissível.
É já em cena que tenho de adivinhar
de que trata a peça.
Debilmente preparada para a honra que é a vida,
dificilmente aguento o tempo de acção que me é imposto.
Lá vou improvisando embora deteste improvisar.
Passo a passo tropeço no desconhecimento das coisas.
O meu modo de vida cheira-me a provincianismo.
Os meus instintos são crasso amadorismo.
O medo do palco, explicando-me, ainda me humilha mais.
Os factores atenuantes parecem-me cruéis.
Palavras e gestos sem regresso,
estrelas por contar,
o carácter – um casaco à pressa abotoado,
são os deploráveis efeitos desta urgência.
Treinar ao menos uma quarta-feira,
ou repetir uma quinta ao menos uma vez!
E já lá vem a sexta com um guião que ignoro.
Está como deve ser – pergunto
(com um pigarro na voz
pois nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).
È ilusória a ideia de que é só um exame rápido
realizado em sala provisória. Não.
Fico de pé diante do cenário e dou conta da sua solidez.
Impressiona-me o rigor de cada adereço.
o palco rotativo há já muito que funciona.
Já estão acesas até as mais distantes nebulosas.
Não tenho quaisquer dúvidas que se trata da estreia!
E, seja o que for que eu faça,
para sempre se transforma no que eu fiz.
A preparação do currículo
Que é preciso?
È preciso fazer um requerimento
e ao requerimento anexar o currículo.
Independentemente da duração da vida,
o currículo deve ser curto.
É obrigatória a concisão e boa selecção dos factos,
transformar as paisagens em endereços,
e vagas recordações em datas fixas.
De todos os amores o conjugal é quanto basta,
e quanto aos filhos só os que nasceram.
Mais importante que quem conheces é de quem és conhecido.
Viagens só se ao estrangeiro.
A que aderiste mas sem dizeres porquê.
Distinções sem motivo.
Escreve como se nunca tivesses falado contigo próprio
e te evitasses ao passares por ti.
Omite o silêncio dos cães, dos gatos e das aves,
cacaréus de lembrança, sonhos e amigos.
Valoriza mais o preço que o valor
e o título que o texto.
Antes o número que calça que aonde vai
esse atrás de quem tu andas.
A fotografia de orelhas descobertas.
Importa o seu formato e não o que elas ouvem.
Que ouvem elas?
O estrépito das máquinas triturando papel.
Tradução: Júlio Sousa Gomes
de Paisagem com Grão de Areia,Relógio d'Água, 1998
Admiração
Porquê tanto a uma só pessoa?
A esta e não a outra? E que faço eu aqui?
Num dia que dizem terça-feira? Em casa e não em ninho?
Com pele e não com escamas? Com cara e não folha?
Porquê pessoalmente só uma vez?
E logo na Terra? Junto a uma estrela pequena?
Depois de estar ausente tantas eras?
Para além de todos os tempos e algas?
Para lá do pólipo e da medusa?
E logo agora? Para o sangue e os ossos?
Só comigo em mim? Por que
não mais além ou a cem milhas daqui,
ou ontem ou há um século
sentada e olhando o canto escuro
- tal como de focinho erguido de repente
olha um que rosna e a que chamam cão?
tradução: Júlio Sousa Gomes
em Paisagem com grão de areia, Relógio D'Água, 1998
ASSOMBRO
Por que, afinal de contas, isso e não outra coisa?
Por que este ser específico, sem disfarce,
não em um ninho, mas em uma casa,
costurado não em escamas, mas em pele,
não com folhas sobre o topo, mas uma face?
Por que sobre a Terra, neste instante,
terça-feira de todas as noites,
aos olhos atentos daquela estrelinha,
depois de não ser por tantas eras,
depois de oceanos de fados e constatações,
todos os crustáceos, todas as constelações?
O que, de fato, me fez ter aparecido
nem um palmo, nem um continente mais distante,
nem um átimo, nem um milénio mais cedo?
O que me fez preencher-me assim tão precisamente?
E por que aqui agora, a mirar este dia escurecido,
resmungando irretorquível questionamento
tal qual um cachorro, um bicho rosnento?
Tradução do inglês para o português de André J. Caetano
poema encontrado aqui
Estou demasiado perto
Estou demasiado perto para ser sonhada por ele.
Sobre ele não vôo, dele não fujo
sob as raízes de uma árvore.
Estou demasiado perto.
Não é com a minha voz que canta o peixe na rede.
Não é do meu dedo que rola o anel.
Estou demasiado perto.
Uma enorme casa está ardendo
sem mim, pedindo socorro.
Demasiado perto,
para que no meu cabelo o sino badalasse.
Demasiado perto para poder entrar como convidado
ante o qual as paredes se abrem.
Pela segunda vez não morrerei jamais tão levemente,
tão fora do meu próprio corpo, tão involuntariamente
como outrora em meu sonho.
Estou demasiado perto,
demasiado perto. Ouço um silvo,
e vejo a casca fulgurante dessa palavra,
imóvel nos meus braços. Ele dorme,
agora mais acessível a uma bilheteira de circo ambulante
com um leão apenas,
vista uma vez na vida,
do que a mim, deitada a seu lado.
Agora para ela nele cresce um vale
De folhagens ruivas, fechado por um monte nevado
no ar azul. Eu estou perto demais
para cair-lhe do céu.
Meu grito
só poderia acordá-lo. Pobre de mim,
limitada à minha própria figura,
eu que fui bétula, eu que fui ninfa
e saía da casca,
brilhando as cores da pele. Eu que tinha
a graça de sumir ante olhos espantados
o que é uma riqueza de riquezas.
Estou perto,
demasiado perto para ser sonhada por ele.
Retiro o meu braço de sob a cabeça dele que dorme,
e o braço dormente fervilha de agulhas,
em cujas pontas esperando a contagem
sentaram-se os anjos caídos.
Autotomia
Em perigo, a holotúria divide-se em duas: uma delas entrega-se à
à voracidade do mundo, a outra lhe escapa.
Desagrega-se de repente em perdição e salvação, em multa e em prêmio,
no que foi e no que será.
No meio do corpo da holotúria abre-se um abismo com duas margens
subitamente estranhas.
Numa a morte, noutra a vida.
Aqui desespero, alento ali.
Se houver uma balança, os pratos não oscilam,
Se houver justiça, aqui está.
Morrer quanto necessário, sem exceder a medida.
Crescer de novo quanto necessário a parte que se salvou.
É verdade, também nós podemos nos dividir.
Mas apenas em corpo e suspiro cortado.
Em corpo e poesia.
De um lado a garganta, do outro o riso,
leve, rapidamente sumindo.
Aqui um coração pesado, ali non omnis moriar,
três palavras apenas como três penas aladas.
O abismo não nos separa.
O abismo nos circunda.
Amor à primeira vista
Os dois estão convencidos
de que foi um sentimento súbito o que os juntou.
É bela uma certeza como essa,
Mas é mais bela a incerteza.
Acham que por não se terem conhecido antes
nunca houve nada entre eles.
E o que diriam as ruas, escadas, corredores,
Onde há muito podiam se cruzar?
Queria perguntar-lhes
Se não se lembram -
Na porta giratória talvez
Um dia cara a cara?
Em meio à multidão um 'com licença'?
No telefone a voz - engano?
- mas conheço sua resposta.
Não, não se lembram.
Ficariam surpreendidos de saber
Que já faz tempo
O acaso brincava com eles.
Não preparado ainda
a transformar-se para eles num destino,
aproximava-se e os afastava,
cortava-lhes o caminho
e, abafando a gargalhada,
saltava para o lado.
Houve sinais, signos, só que ilegíveis.
Talvez há três anos atrás
ou na terça-feira passada
certa folha voou
de um ombro para o outro?
Houve algo perdido e recolhido
Quem sabe, uma bola
já no bosque da infância.
Houve maçanetas e campainhas,
em que antes
já o toque se punha no toque.
As malas lado a lado no depósito de bagagem.
Talvez, numa certa noite, o mesmo sonho
Apagado imediatamente depois de acordar.
Pois cada princípio
é apenas uma continuação,
e o livro de eventos
sempre aberto no meio.
poemas encontrados aqui
O primeiro amor
Dizem
que o primeiro amor é o mais importante.
É muito romântico,
mas não é o meu caso.
Algo entre nós houve e não houve,
deu-se e perdeu-se.
Não me tremem as mãos
quando encontro pequenas lembranças,
aquele maço de cartas atadas com um cordel,
se ao menos fosse uma fita.
O nosso único encontro, passados anos,
foi uma conversa de duas cadeiras
junto a uma mesa fria.
Outros amores
continuam até hoje a respirar dentro de mim.
A este falta fôlego para suspirar.
No entanto, sendo como é,
não lembrado,
nem sequer sonhado,
consegue o que os outros não conseguem:
acostuma-me com a morte.
poema encontrado aqui
Quarto do suicida
Vocês devem achar, sem dúvida, que o quarto esteve vazio.
Mas lá havia três cadeiras de encosto firmes.
Uma boa lâmpada para afastar a escuridão.
Uma mesa, sobre a mesa uma carteira, jornais.
Buda sereno, Jesus doloroso,
sete elefantes para boa sorte, e na gaveta - um caderno.
Vocês acham que nele não estavam nossos endereços?
Acham que faltavam livros, quadros ou discos?
Mas da parede sorria Saskia com sua flor cordial,
Alegria, a faísca dos deuses,
a corneta consolatória nas mãos negras.
Na estante, Ulisses repousando
depois dos esforços do Canto Cinco.
Os moralistas,
seus nomes em letras douradas
nas lindas lombadas de couro.
Os políticos ao lado, muito rectos.
E não era sem saída este quarto,
aos menos pela porta,
nem sem vista, ao menos pela janela.
Binóculos de longo alcance no parapeito.
Uma mosca zumbindo - ou seja, ainda viva.
Acham então que talvez uma carta explicava algo.
Mas se eu disser que não havia carta nenhuma -
éramos tantos, os amigos, e todos coubemos
dentro de um envelope vazio encostado num copo.
Retornos
Voltou. Não disse nada.
Parecia muito perturbado.
Deitou sem tirar a roupa.
Escondeu-se debaixo do cobertor,
as pernas dobradas.
Tem quarenta anos, mas não neste momento.
Está vivo - mas como no ventre materno
atrás de sete peles, na escuridão que o defende.
Amanhã dá palestra sobre homeostasis
na cosmonáutica metagalática.
Por enquanto se encolhe, adormece.
Os filhos da época
Somos os filhos da época,
e a época é política.
Todas as coisas - minhas, tuas, nossas,
coisas de cada dia, de cada noite
são coisas políticas.
Queiras ou não queiras,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um brilho político.
O que dizes tem ressonância,
o que calas tem peso
de uma forma ou outra - político.
Mesmo caminhando contra o vento
dos passos políticos
sobre solo político.
Poemas apolíticos também são políticos,
e lá em cima a lua já não dá luar.
Ser ou não ser: eis a questão.
Oh, querida que questão mal parida.
A questão política.
Não precisas nem ser gente
para teres importância política.
Basta ser petróleo, ração,
qualquer derivado, ou até
uma mesa de conferência cuja forma
vem sendo discutida meses a fio.
Enquanto isso, os homens se matam,
os animais são massacrados,
as casas queimadas,
os campos se tornam agrestes
como nas épocas passadas
e menos políticas.
Tradução: Ana Cristina Cesar
Era preciso começar daí: céu.
Janela sem encosto, sem moldura, sem vidraça.
Abertura e nada mais, porém muito bem aberta.
Não preciso aguardar a noite amena:
nem levantar a cabeça
para perscrutar o céu.
Tenho céu atrás de mim, sob as mãos
e debaixo das pálpebras.
Estou enredada de céu
e isto me exalta.
Nem as montanhas mais altas
Estão mais próximas do céu
que os vales mais profundos.
Não há mais céu num lugar
do que em outro.
A nuvem está atada ao céu
indiferente como o túmulo.
A toupeira é tão feliz
quanto a coruja que abre as asas.
O objecto que cai no precipício
cai do céu no céu.
Partes poeirentas, líquidas, montanhosas,
passageiras e queimadas do céu, migalhas do céu,
brisas de céu e montes.
O céu é omnipresente
até nas trevas sob a pele.
Devoro o céu, rejeito o céu.
Estou com armadilhas na armadilha,
com o habitante instalado,
com o abraço abraçado,
com a pergunta presente na resposta.
A divisão entre céu e terra
não foi pensada de forma adequada
a respeito desta unidade.
Permite até que se sobreviva
no endereço mais exacto,
que pode ser achado mais depressa
se me procurarem.
Os meus sinais característicos são
o arrebatamento e o desespero.
AS TRÊS PALAVRAS MAIS ESTRANHAS
Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba pertence já ao passado.
Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.
Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhuma não-existência.
RECORDAÇÕES
Estávamos a conversar
e calámo-nos de repente.
Tinha aparecido na esplanada uma rapariga
que beleza!,
demasiado bela
para o nosso tranquilo veraneio ali.
Barbara olhou apressada para o marido.
Cristina pôs instintivamente a mão
sobre a mão de Zbyszek.
Eu pensei: ligo-te,
espera- vou-te dizer- não venhas,
acabam de anunciar vários dias de chuva.
Só Agnieszka, viúva,
saudou a bela com um sorriso.
Tradução para castelhano: Abel M. Soriano
de Instante, Igitura, Tarragona, 2004
Versão em português encontrada aqui
Un gato en un piso vacío
Morir, eso no se le hace a un gato.
Porque qué puede hacer un gato
en un piso vacío.
Trepar por las paredes.
Restregarse entre los muebles.
Parece que nada ha cambiado
y, sin embargo, ha cambiado.
Que nada se ha movido,
pero está descolocado.
Y por la noche la lámpara ya no se enciende.
Se oyen pasos en la escalera,
pero no son ésos.
La mano que pone el pescado en el plato
tampoco es aquella que lo ponía.
Hay algo aquí que no empieza
a la hora de siempre.
Hay algo que no ocurre
como debería.
Aquí había alguien que estaba y estaba,
que de repente se fue
e insistentemente no está.
Se ha buscado en todos los armarios.
Se ha recorrido la estantería.
Se ha husmeado debajo de la alfombra y se ha mirado.
Incluso se ha roto la prohibición
y se han desparramado los papeles.
Qué más se puede hacer.
Dormir y esperar.
Ya verá cuando regrese,
ya verá cuando aparezca.
Se va a enterar
de que eso no se le puede hacer a un gato.
Irá hacia él
como si no quisiera,
despacito,
con las patas muy ofendidas.
Y nada de saltos ni maullidos al principio.
EN ALABANZA DE MI HERMANA
Mi hermana no escribe poemas
y es casi imposible que súbitamente empiece a escribir poemas.
Ella salió a su madre, que no escribió poemas.
Y a su padre, que tampoco escribió poemas.
Bajo el techo de mi hermana yo me siento segura:
nada podría mover al esposo de mi hermana a escribir poemas.
Y aún cuando suena como un poema de Adam Macedonski,
ninguno de mis parientes se dedica a escribir poemas.
En el escritorio de mi hermana no hay viejos poemas,
tampoco algunos nuevos en su bolso de mano.
Y cuando mi hermana me invita comer,
yo sé que no tiene la intención de leerme poemas.
Ella hace soberbias sopas sin siquiera esforzarse,
y su café no se derrama sobre manuscritos.
En muchas familias nadie escribe poemas,
mas cuando lo hacen, rara vez es sólo una persona.
Alguna vez la poesia fluye en cascadas de generaciones,
lo cual produce temibles altercados en las relaciones familiares.
Mi hermana cultiva una decente prosa hablada,
su toda vena literaria se derrama en postales de vacaciones
que prometen la misma cosa cada año:
que cuando ella regrese,
nos dirá todo,
todo,
todo.
traducción: Abel A. Murcia Soriano