Tonino Guerra

Antonio (Tonino) Guerra, nasceu em Santarcangelo de Romagna in 1920. Em 1943 foi enviado para um campo de concentração na Alemanha, onde escreveu os seus primeiros poemas em dialecto romagnolo. Em 1946 publicou o seu primeiro livro de versos, I scarabócc. No início dos anos 50, mudou-se para Roma, onde enveredou por uma carreira de sucesso como argumentista. Trabalhou com realizadores como Anghelopulos, Antonioni, Fellini, Petri, Rosi, Tarkovskij e os irmãos Taviani.

Nos anos 80, publicou várias obras narrativas, poemas e uma peça de teatro. A sua poesia lamenta o desaparecimento das sociedades rurais onde era possível a percepção profunda da natureza, na vida do dia a dia. Em Portugal a Assírio & Alvim, editou dois livros de Tonino Guerra:O Livro das Igrejas Abandonadas em 1997, Histórias para uma noite de calmaria em 2002 e O mel em 2004.

Tonino Guerra morreu na sua casa, em Rimini, no dia 21 de Março de 2012.

Ler maiswikibiography & poems / culturaitalia

 

 

 © Vahan Stepanyan 

Poemas

EM ESPECIAL AOS DOMINGOS

Em especial aos domingos
quando ninguém está em casa
aí por finais de Junho
subo ao terraço
para perceber além dos muros
a cidade silenciosa

A BORBOLETA

Contente mesmo contente
estive na vida muitas vezes
mas nunca como na Alemanha
quando me libertaram
e me pus a olhar uma borboleta
sem vontade de a comer.

A NÉVOA

Às vezes a minha aldeia
fica presa dentro da névoa
e os pássaros em silêncio sobre os ramos
olham o céu sujo
como o observas tu
dentro do teu carro.

Tradução: Mário Rui de Oliveira

de Histórias para uma Noite de Calmaria;  Assírio&Alvim, 2002

Canto primeiro

Tinha setenta anos completos e mais quatro dias quando me segurei
a um comboio em movimento. Já não suportava a cidade
com todas quelas unhas diante da boca.

Agora estou aqui, pela minha terra, com meu irmão.

Aumentaram as casas desocupadas. Os mil e duzentos que éramos,
reduzidos a nove: eu, recentemente chegado,
Bina, Pinela, o camponês, meu irmão, enclausurado na casa velha,
Filomena, com o filho tolo
e três sapateiros reformados
sempre sentados na praça.

Os outros fugiram sabe-se lá para onde: América, Austrália, Brasil,
onde Fafìn, o louco, ia à caça com uma faca
e um dia matou um jaguar julgando ser um gato.
Em mil novecentos e vinte, um grupo de pedreiros
depois de seis meses de viagem com a cabeça pendida na borda de um barco
sobre o mar e a água de um rio que não terminava,
chegou à Muralha da China
que se havia dgradado e reclamava pela mão dos pobres.
Antes de desaparecer para sempre, o pai de Bina, que estava com eles,
mandava notícias uma vez por ano
e até lhe chamavam «as cartas da China». Na primeira perguntava
por uma cabra que tinha febre no dia em que partiu,
na segunda contou que comera uma cobra,
na terceira falava de uma mulher que lhe cosia os botões,
a quarta estava cheia de gatafunhos como fazem as galinhas
na lama, para dar a entender que se tornara chinês
e esquecera tudo, também as palavras.
Os meus nunca saíram de casa: meu pai
vendia carvão
e minha mãe fazia as contas num papel pardo.
Como não sabia ler nem escrever marcava linhas direitas
para a gente magra e redondas para os clientes gordos.
Os números tinha-os dentro da sua cabeça e quando pagavam
riscava-os com uma cruz.

O ar daqui é bom e a água corre por abundantes regatos.
Carros não há e os cães estendem-se no meio das estradas.

Canto segundo

Esta manhã mal saí do portão
parecia-me ter esquecido alguma coisa em casa.
Dois passos até ao damasqueiro
e toca a regressar.

Agora que nada resta para fazer
fico sentado diante da janela
e pergunto-me a mim mesmo: Queres isto? Queres aquilo?

Deitei fogo a páginas de livros, a calendários
e mapas. Para mim a América
já não existe, a Austrália igualmente,
a China na minha cabeça é uma fragrância,
a Rússia uma alva teia de aranha
e a África o sonho de um copo com água.

Há dois ou três dias sigo os passos de Pinela, o camponês,
que procura o mel das abelhas selvagens.

Canto décimo primeiro

Anteontem primeiro domingo de Novembro
a névoa podia-se cortar à faca.
As árvores brancas da geada e as estradas e planícies
pareciam cobertas por lençóis. Depois apareceu o sol
enxugando o universo e somente as sombras
permanecem banhadas.

Pinela, o camponês, atava as cepas
com ervas secas que segurava entre as orelhas.
Enquanto trabalhava falei-lhe da cidade,
da minha vida que passara num relâmpago
do meu terror da morte.

Aí silenciou todos os rumores que fazia com as mãos
e só então se ouviu um pequeno pardal cantando ao longe.
Disse-me: medo porquê? A morte nem sequer é maçadora.
Apenas vem uma vez!

Canto décimo terceiro

De criança sempre gostei de canas
e roubava-as do rio
ainda verdes.
Deixava-as depois estendidas ao sol durante todo o verão
e recolhia-as, ligeiras,
como o sussurro dos mosquitos.

Quando no Inverno
os ossos estalavam de frio
e os gatos tossiam sobre o damasqueiro
corria até ao sótão
e metia as mãos no meio das canas quentes
ainda com todo aquele sol em cima.

Canto décimo quarto
O bom tempo chegou
com uma abelha que batia nos vidros.
Bina descalçou os tamancos e caminha
descalça atrás da sua cabra.
O sol enfia-se pelo buraco
da agulha que Filomena tem na mão.
Pinela o camponês disse basta
e sepultou a enxada sob a terra.
Também meu irmão deixou de trabalhar
mas volta e meia levanta-se
porque pensa ouvir lá longe o som do telégrafo.
Uma erva nova resolveu aparecer
debaixo da crosta do pátio
para me fazer sentir mais velho.
Mas eu esmaguei-a
como se fosse uma barata em casa.

Canto décimo nono

Parei ao sol uma manhã de verão
e vi as estrelas
cheias de pessoas, como outrora,
para o mercado da seda.
Os casulos nos sacos
empolavam os aventais das mulheres.
mas de repente desapareceu tudo
e eu era um prego no meio da praça
fazendo uma sombra quente.

Canto vigésimo

Antes que as gotas fizessem baloiçar os ramos
nós, por trás da janela, esperávamos
que a água lavasse as folhas escondidas.
Depois chovia que Deus a dava
e pusemos um copo no peitoril
a medir a água pluvial em centímetros.

às quatro o sol apareceu
e sobre a janela o copo cintilava
pleno até à borda.

Eu e meu irmão bebemos metade cada um
e comparámos a água do poço
com a água do céu que é mais escorregadia
e contudo tem o sabor a relâmpagos.

Canto vigésimo segundo

Quando no outono
as árvores estavam nuas
uma tarde a nuvem de pássaros
exaustos
poisou sobre os ramos.
Pareciam ter regressado as folhas
baloiçando ao vento.

Canto vigésimo terceiro

Esta manhã meu irmão procurava
qualquer coisa nas gavetas: remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até à cozinha.
Passava de um quarto para o outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.

Tradução: Mário Rui de Oliveira

de O mel, Assírio & Alvim, 2004

A mancha preta

Os mineiros de carvão tinham feito uma cabana que lhes servia de igreja. Pilhas de lenha formavam as paredes e cobria tudo um telheiro de ramadas.
O padre vinha dizer a missa no dia da Assunção e quase sempre estavam agachados lá dentro porque fora já chovia e a água fazia tremer as folhas do bosque.
No mês de Outubro de mil novecentos e cinquenta, uma noite um raio atingiu em cheio a igreja queimando tudo.
Agora a gente do vale vem cá acima rezar ao pé da mancha preta de cinzas e, quando levanta os olhos, vê ali à frente por um momento a cabana em pé, e o raio ainda não caiu.

As velas inclinadas

Com violetas na boca e falando de andorinhas que fazem o ninho nos currais para comerem os mosquitos que voam em torno das vacas, chegámos a uma igrejinha guardada por dois irmãos e uma irmã.
Abriram-nos a porta e vimos que o pavimento estava coberto de velas, pequenas e grandes, pegadas ao chão com gotas de cera. As velas estavam todas com as pontas apagadas viradas para o altar, em devoção, porque lá em cima há um quadro redondo com dois vidros tendo à mostra um fio de palha.
Conta-se que um soldado cristão, há mil anos, tornando a casa após a guerra para libertar Jerusalém, roubara um punhado de palha do estábulo onde nasceu o Menino Jesus. Depois vendeu-a pela Itália fora juntamente com um tipo que tinha o osso de um santo e o fazia tocar às mulheres que queriam ficar grávidas.
Os três irmãos acendem as velas todas uma vez por semana com uma cana comprida que tem uma mecha na ponta. Olham um pouco aquele fio de palha, fazem o sinal da cruz, e depois sopram ao mesmo tempo para apagar tudo. Dentro da igreja fica por dois ou três dias a névoa do fumo.

tradução: José Colaço Barreiros

O Livro das Igrejas Abandonadas, Assírio & Alvim, 1997