Cesare Pavese

Cesare Pavese nasceu em Stefano Belbo a 09 de Setembro de 1908. Foi poeta, romancista, tradutor, crítico literário e editor. Estudou filologia inglesa na Universidade de Turim. Dedicou grande parte da sua vida a traduzir autores como Walt Whitman, Herman Melville, James Joyce, Sherwood Anderson, Gertrude Stein, John Ernst Steinbeck e Ernest Miller Hemingway, entre outros. Os seus artigos anti-fascistas, publicados na revista Cultura, levaram à sua prisão e exílio em 1935.

Suicidou-se no dia 26 de Agosto de  1950, num quarto de hotel em Turim. Algumas das páginas mais comoventes de Pavese encontram-se no seu diário que foi publicado postumamente, em 1952, com o título O ofício de viver.

Em 1957 foi criado um prémio literário com o seu nome.  Alguns livros publicados em Portugal: A Lua e as Fogueiras, (Colecção Mil Folhas); O Ofício de Viver, (Relógio d’Água); O camarada, (Minerva); Trabalhar cansa (Livros Cotovia); O Vício absurdo, (&Etc); Diálogos com Leucó (Assírio & Alvim); Férias de Agosto (Quasi)

"Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada." C. Pavese

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Poemas

Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à  noite, insone,
surda, como um velho remorso
ou um ví­cio absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês em cada manhã
quando sobre ti só te inclinas
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós,
que és a vida e és o nada.

Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver ressurgir
no espelho um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Desceremos o remoinho mudos.

tradução: Carlos Leite

de Trabalhar Cansa, Livros  Cotovia, 1998

 

 

 

O bêbado deixa para trás as casas estupefactas.
Nem todos se aventuram a passear bêbados
à luz do sol. Atravessa tranquilo a rua,
e poderia entrar pelas paredes dentro, pois as paredes estão ali.
Só os cães deambulam assim, mas um cão pára
sempre que sente uma cadela e cheira-a cuidadosamente.
O bêbado não vê ninguém, nem mesmo as mulheres.

Na rua, as pessoas que se perturbam ao vê-lo, não se riem
e gostariam que não estivesse ali o bêbado, mas os muitos que tropeçam
ao segui-lo com os olhos voltam a olhar em frente
com uma praga. Passado que foi o bêbado,
toda a rua se move mais lentamente
à luz do sol. E se uma pessoa começa
a correr, é alguém que não o bêbado.
Os outros olham, sem distinguir, o céu e as casas
que nunca deixaram de estar ali, ainda que ninguém as veja.

O bêbado não vê as casas nem o céu,
mas sabe que estão ali, pois num passo pouco firme percorre um espaço
tão claro como as franjas do céu. As pessoas, embaraçadas,
deixam de compreender o que fazem ali as casas,
e as mulheres já não olham para os homens. Têm
todos, dir-se-ia, medo de que de repente a voz
rouca se ponha a cantar e os persiga pelo ar.

Cada casa tem uma porta, mas não vale a pena entrar.
O bêbado não canta, mas mete por uma rua
onde o único obstáculo é o ar. Felizmente
não vai dar ao mar, pois o bêbado,
caminhando tranquilo, entraria também no mar
e, deixando de se ver, prosseguiria no fundo o mesmo caminho.
Cá fora, a luz seria sempre a mesma.

Tradução: Carlos Leite 

de Trabalhar Cansa, Livros  Cotovia, 1998

Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio acompanha a manhã.
Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas do céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava – uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.
E desejo só cores as cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor – e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.

tradução: Carlos Leite

de Trabalhar Cansa, Livros  Cotovia, 1998

 

 

Tens rosto de pedra esculpida,
sangue de terra dura,
emergiste do mar.
Tudo acolhes e sondas,
e repeles de ti
como o oceano. Tens na alma
silêncio, tens palavras
tragadas. És turva.
A alva em ti é silêncio.

E pareces com as vozes
da terra - a pancada
do balde no poço,
o cântico do fogo,
um tombo de maçã,
as palavras resignadas
e escuras nas soleiras,
o grito do menino - as coisas
que não passam jamais.

Não mudas. És turva,
és a taberna fechada
com o chão de terra batida,
onde entrou certa vez
o garoto descalço
em que pensamos sempre.

Tu és a sala sombria
em que pensamos sempre
como no velho pátio
onde a aurora se abria.

tradução: Martins Napoleão (Brasil)

poema encontrado aqui

 

Foi só um flirt
e sabias, claro –
alguém foi ferido
há muito tempo.

Mas nada mudou
o tempo passou –
um dia chegaste
um dia morrerás.

Alguém morreu
há muito tempo –
alguém que queria
mas não sabia. 

lido aqui

O céu estará límpido.
As ruas abrir-se-ão
na colina de pinheiros e de pedra.
O tumulto das ruas
não mudará esse ar parado.
As flores das fontes
salpicadas de cores
abrirão os olhos como mulheres
divertidas. As escadas
os terraços as andorinhas
cantarão ao sol.
Abrir-se-á aquela rua,
as pedras cantarão,
o coração baterá em sobressalto
como a água nas fontes -
será esta a voz
que subirá as tuas escadas.
As janelas saberão
o odor da pedra e do ar
matinal. Abrir-se-á uma porta.
O tumulto das ruas
será o tumulto do coração
na luz extraviada.

Serás tu - quieta e clara.

tradução: Albano Martins

“És a terra e és a morte.
Tua estação é a treva
E o silêncio. Não vive
Coisa que mais do que tu
Seja distante da aurora.

Quando pareces desperta
És somente o doer
Que tens nos olhos, no sangue
Mas tu não sentes. Tu vives
Como só vive uma pedra,

Ou como a terra dura.
E vestem-te os sonhos
Movimentos arquejantes
Que ignoras. E a dor
Como a água de um lago
Trepida e te circunda.
São círculos na água.
Tu deixa-los esvair-se.
És a terra e és a morte.”

tradução: Jorge de Sena