Alda Merini

Alda Merini nasceu em Milão em 1931, convive desde muito cedo com a crueldade da doença psíquica. Foi, várias vezes, submetida a internamentos prolongados. Toda a sua vida tem sido uma luta terrível pelo equilíbrio que, ora pende para o delírio, ora se inclina para a lucidez.

O seu primeiro livro de poesia, La presenza di Orfeo, publicado em 1953, foi muito bem recebido pela crítica. Publicou 4 livros até 1960. Após um silêncio editorial que se prolonga por vinte anos, Alda Merini volta a publicar poesia: Destinati a morire e Poesie vecchie e nuove (1980), La Terra Santa (1984 – prémio Citadella, 1985) e Testamento (1988).

Nos anos 90 dá início a uma nova fase na escrita, com o aparecimento de livros em prosa centrados na sua própria pessoa. Em Portugal, em Fevereiro de 2004, foi publicado pela Cotovia, o livro de poemas Terra Santa.

Alda Merii morreu no diam1 de novembro de 2009 

 

Ler mais: wiki / 4 poemas / blogletras / el natural infierno de vivir

foto:  Alda Merini Official Facebook

Poemas

A Terra Santa

Conheci Jericó,
também eu tive a minha Palestina,
os muros do manicómio
eram as muralhas de Jericó
e um poço de água infecta
baptizou-nos a todos.
Lá dentro éramos judeus
e os Fariseus ficavam no alto
e, perdido na multidão,
estava também o Messias:
um louco que gritava aos céus
todo o seu amor por Deus.

Todos nós, rebanho de ascetas
éramos como pássaros
e de vez em quando uma rede
obscura aprisionava-nos
mas íamos a caminho da colheita,
a colheita do nosso Senhor
e Cristo o Salvador.

Fomos lavados e sepultados,
cheirávamos a incenso.
E depois, quando amávamos
davam-nos choques eléctricos
porque, diziam, um louco
não pode amar ninguém.

Mas um dia de dentro do sepulcro
também eu me levantei
e também eu como Jesus
tive a minha ressurreição,
mas não subi aos céus
desci ao inferno
de onde revejo estupefacta
as muralhas da antiga Jericó.

---------------

O meu primeiro transfúgio de mãe
aconteceu numa noite de verão
quando um louco pegou em mim
e me deitou na relva
e me fez conceber um filho.
Ó nunca a lua gritou tanto
contra as estrelas ofendidas,
e nunca gritaram tanto as minhas entranhas,
nem o Senhor voltou tanto a cabeça para trás
como naquele exacto momento
vendo a minha virgindade de mãe
ofendida num ludíbrio.
O meu primeiro transfúgio de mulher
aconteceu num canto escuro
sob o calor impetuoso do sexo,
mas nasceu uma menina gentil
com um sorriso tão doce
e tudo se perdoou.
Eu é que nunca irei perdoar
e aquele menino foi-me retirado do ventre
e entregue a mãos mais "santas",
fui eu a ultrajada,
eu que subi aos céus
por ter concebido uma génese.

Tradução: Clara Rowland

de A Terra Santa, Cotovia, 2004

A minha poesia é veloz como o fogo,
passa entre os meus dedos como um rosário.
Não rezo porque sou um poeta da desventura
que cala, às vezes, as dores que sofre na hora de parir,
sou o poeta que grita e se assusta com os seus gritos,
sou o poeta que canta e não encontra palavras,
sou a palha estéril onde o som embate,
sou uma canção de embalar que faz chorar os filhos,
sou a glória vã que se deixa abater,
a capa metálica duma longa súplica
do passado lúgubre que não vê a luz.

de La volpe e il sipario, 1997

 

tradução: at
 
poema original

 

Se vires o meu homem
acaricia-o suavemente na dianteira
é lá que vive o seu nobre pensamento.
Se vires o meu homem
crava-lhe um punhal no coração
e liberta o coágulo de sangue
da mulher que o tem enganado.
Se encontrares o meu homem
humedece-lhe docemente os lábios,
desde há muito sequiosos.
Olha, se vires o meu homem
deita-te serenamente com ele
é um homem que sabe amar.

(ardução: at (baseada na versão espanhola de Emílio Coco)

 

 Os versos são poeira fechada
de um meu tormento de amor,
mas lá fora o ar é correcto,
instável e doce e o sol
fala-te de caras promessas,
por isso quando escrevo
afundo a cabeça na poeira
e desejo o vento, o sol,
e a minha pele de mulher
contra a pele de um homem.

tradução: Clara Rowland

poema encontrado aqui

 

Eu sou a cigarra, pequena, gordinha, cantadora. Para a formiga a cigarra é uma pobre tola. Ela porém, à força de trabalhar, reduziu o cérebro à rodelinha duma grande engrenagem, mas escapa-lhe totalmente a ideia de Deus, que eu, pelo contrário, cultivo no meu coração. Para Deus e para a criação eu canto as minhas cançõezinhas de Verão, e ainda que depois eu me arrepie pelo frio no Inverno, que interessa?

O que conta para mim é viver o momento que passa, ser envolvida pela luz no ar do entardecer, a mim interessa-me isto, enquanto bem pouco me interessa a minha morte corporal. E sempre que de Inverno vou bater à porta da formiga vejo-me expulsa com vitupérios. Pobre tola, julga ter a supremacia por estar ao calorzinho com todas as vitualhas dentro de casa, pobre sovina... Mas eu se morrer ressequida vou ter uma sepultura digna, por baixo da neve, porque o pensamento ficou-me livre e eu, porque não?, acredito no além-mundo dos insectos.

tradução: Marco Bruno

publicado na revista Relâmpagp nº 17

Baladas no pagadas

Deslío el cigarro
como si fuera una hoja de tabaco
y aspiro ávidamente
la ausencia de tu vida.
Es tan bello sentirte fuera,
deseando verme;
pero no te he escuchado.
Soy cruel, lo sé,
mas es esta la jerga del poeta:
un largo silencio encendido
después de un larguísimo beso.

La mirada del poeta

Si alguien buscara entender tu mirada
Poeta defiéndete sin piedad
tu mirada son cien miradas que, ay de mí,
han temblado al mirarte.

Vacío de amor

Nací el veintiuno en primavera
mas no sabía que nacer loca,
abrir el surco
pudiese desatar tormentas.
Así Proserpina leve,
ve llover sobre la hierba,
sobre los gruesos trigos gentiles
y llora siempre al véspero.
Tal vez sea su ruego.

El volumen del canto

El volumen del canto me enamora:
cómo quisiera yo invadir la tierra
con mis cantos y que temblara toda
bajo la poesía de la canción.
Disemino palabras, soy cuidadosa
sembradora de las magras tierras
y aun así alguien se levanta a escucharme,
uno que lleva el canto en su corazón
y que a ratos desdevana para mí la madeja
de su gozosa fantasía.

lidos por aí