Boris Vian

Boris Vian, nasceu em França em 1920. Foi engenheiro, escritor, poeta, dramaturgo, músico e cronista de jazz, cantor e orador. Em 1946, a publicou o seu primeiro e polémico romance, J’irais Cracher Sur Vos Tombes (irei cuspir-vos nos túmulos), com o pseudónimo de Vernon Sullivan. Vian foi uma das vozes que mais se destacou na luta contra a dominação francesa sobre a Argélia. Morreu aos trinta e nove anos de idade, vítima de ataque cardíaco.

A recusa do realismo, a insolência, a resistência às normas e o universo onírico, dominam a sua obra. Como um músico que toma nos braços o saxofone e, alegre e livremente, vai improvisando as mais belas melodias, a escrita de Boris Vian leva-nos a conhecer personagens e situações plenas de audácia e ternura. Há quem lhe chame um «cultivador do absurdo».

Pois talvez seja, mas é um absurdo pleno de sentidos! Em Portugal foram publicados dez títulos: Irei Cuspir-vos nos Túmulos, (Europa- América, 1983 e Relógio D’Água, 2003); Morte aos Feios  (Sodilivros, 1982 e Relógio D’Água, 2002); As Formigas ( Assírio & Alvim, 1987);O Outono em Pequim (D. Quixote, 1989  e 2002); O Arranca Corações (Editorial Estampa, 1993); Canções de Boris Vian (Assírio & Alvim, 1997); A Espuma dos Dias (Frenesi, 1997); A Erva Vermelha (VEGA, 1998); Elas Não Percebem Nada (Relógio D’Água, 2003) e Cantilenas em Geleia (Relógio D’Água, 2004).

"corremos com toda a força para o futuro e vamos tão depressa que o presente nos escapa e a poeira da nossa corrida nos esconde o passado" -  Boris Vian

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Poemas

Monsieur le président
Je vous fais une lettre
Que vous lirez peut-être
Si vous avez le temps

Je viens de recevoir
Mes papiers militaires
Pour aller à la guerre
Avant mercredi soir

Monsieur le président
Je ne veux pas la faire
Je ne suis pas sur terre
Pour tuer des pauvres gens

C'est pas pour vous fâcher
Il faut que je vous dise
Ma décision est prise
Je m'en vais déserter

Depuis que je suis né
J'ai vu mourir mon père
J'ai vu partir mes frères
Et pleurer mes enfants

Ma mère a tant souffert
Elle est dedans sa tombe
Et se moque des bombes
Et se moque des vers

Quand j'étais prisonnier
On m'a volé ma femme
On m'a volé mon âme
Et tout mon cher passé

Demain de bon matin
Je fermerai ma porte
Au nez des années mortes
J'irai sur les chemins

Je mendierai ma vie
Sur les routes de France
De Bretagne en Provence
Et je dirai aux gens:

«Refusez d'obéir
Refusez de la faire
N'allez pas à la guerre
Refusez de partir»

S'il faut donner son sang
Allez donner le vôtre
Vous êtes bon apôtre
Monsieur le président

Si vous me poursuivez
Prévenez vos gendarmes
Que je n'aurai pas d'armes
Et qu'ils pourront tirer

Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na tromba

 

tradução: Luiza Neto Jorge

Quero uma vida em forma de espinha
Num prato azul
Quero uma vida em forma de coisa
No fundo dum sítio sozinho
Quero uma vida em forma de areia nas minhas mãos
Em forma de pão verde ou de cântara
Em forma de sapata mole
Em forma de tranglomanglo
De limpa-chaminés ou de lilás
De terra cheia de calhaus
De cabeleireiro selvagem ou de édredon louco
Quero uma vida em forma de ti
E tenho-a mas ainda não é bastante
Eu nunca estou contente.

 

lido aqui

Há sol na rua
Gosto do sol mas não gosto da rua
Então fico em casa
À espera que o mundo venha
Com as suas torres douradas
E as suas cascatas brancas
Com suas vozes de lágrimas
E as canções das pessoas que são alegres
Ou são pagas para cantar
E à noite chega um momento
Em que a rua se transforma noutra coisa
E desaparece sob a plumagem
Da noite cheia de talvez
E dos sonhos dos que estão mortos
Então saio para a rua
Ela estende-se até à madrugada
Um fumo espraia-se muito perto
E eu ando no meio da água seca .
Da água áspera da noite fresca
O sol voltará em breve

 

lido aqui

Gostaria

Gostaria
De escrever grande poesia
E as pessoas

Pôr-me-iam
Muitos louros na cabeça
Mas acontece
Que não gosto
Tanto assim de literatura
E que a vida me procura
E penso de mais nas pessoas
E nem sempre me apetece
Escrever coisas à toa.

As Moscas

Sartre
Para Jean-Paul
Oudin  

Uns homens passeiam-se na rua.
Alguns têm um olhar apagado como uma peúga suja
Um ranho recorrente obstrói-lhes as córneas do nariz.
Outros, brilhantes, de olhar vivo
Giram a bengala e dão meia-volta.

São todos uns enraba-moscas
Mas há duas maneiras de enrabar moscas:

Com ou sem o seu consentimento.

A vida é como a dentadura

A vida é como a dentadura
Primeiro nem nos damos conta
Contentamo-nos em mastigar
E depois de repente estraga-se
Dói a valer, cuidamos
Dela com dó sofrida
E para se achar a cura
È preciso arrancá-la, à vida.

Mais um

Mais um
Um sem razão
Mas já que os outros
Se colocam as questões dos outros
E lhes respondem com as palavras dos outros
Não há outra coisa a fazer
Senão escrever, como os outros
E hesitar
E imitar
E buscar
E rebuscar
Não encontrar
E chatear-se
E dizer-se que não serve para nada
Mais valia ganhar a vida
Mas a minha vida, já tenho, a minha vida
Não preciso de a ganhar
Não é de todo um problema
A única coisa que não o é
Os problemas são tudo o resto
Mas já todos os colocaram
Já todos se interrogaram
Sobre os mais ínfimos assuntos
E então, para mim, o que é que sobra
Apanharam todas as palavras cómodas
As palavras boas de efeitos sonantes
As espumantes, as quentes, as grossas
Os céus, os astros, as lanternas
E essas brutas vagas surdas
Que raivam rudes rochedos rubros
São demasiados gritos e trevas
Demasiado sangue sexo a mais
Demasiados rubis e ventosas
E então para mim o que é que sobra
Terei de inquirir sem ruído
E sem escrever e sem dormir
Terei de buscá-lo sozinho
Sem dizer sequer ao porteiro
Ao anão debaixo do chão
Ao enrabador do meu bolso
Ou ao cura do meu gavetão
Terei de ser eu a sondar-me
Sozinho sem uma irmã rodeira
Que me agarre na pilinha
E me esburaque como um guarda
Com uma lança de vaselina
Terei eu, terei eu de enfiar
Um tubo pelas narinas
Contra um baque cerebral
Até que me escorram as palavras
Todos eles se interrogaram
Já não tenho o direito de falar
Ficaram com os luzeiros todos
Instalaram-se todos no alto
Que é o lugar dos poetas
Com as suas liras a pedal
Com as suas liras a vapor
Com as suas liras de oito relhas
E os seus Pégasos a reactor
Não tenho o mais pequeno assunto
Não tenho mais que palavras chatas
As mais delambidas e as desenxabidas
Não tenho mais que me mim o a os
Mais que pois quem quê o quê
Que é, ela e ele, que nós vós nem
Então como querem que eu faça
Um poema com palavras destas?
Pois tanto pior que o não faço.

Tradução: Margarida Vale de Gato

Cantilenas em geleia, Relógio D’Água, 2004

Quando se está completamente farto
Quando se esgotou tudo
O vinho o amor as cartas
Quando se perdeu o vicio
Das sopas de camarões
Das salsichas de Sarthe
Quando a visão de um strip-tease
Nos faz dizer: que parvoíce
Não arranjaram melhor
Ainda resta um jeito
Que nunca perde o efeito
De ver a vida a cor-de-rosa

Um par de chapadas na tromba
Um bom pontapé no cu
Um murraço nas queixadas
Dá-nos outra juventude
Um bom par de chapadas na tromba
Um directo em cheio no estomago
Os dedos dos pés debaixo duma mó
Um biqueiro em pleno trálálá
Apaga tudo, a droga e a aspirina
Os espinafres, o snif e a Badoit
É  mais bacana que o foie gras em terrina
Pois é menos caro e não engorda
Um bom par de chapadas na tromba
E a vida volta a ter valor
Numa manhã em que nos sintamos sós
Toca a partir a cara entre amigos

Quando ela deu de frosque
Levando o dinheiro
E a máquina de costura
Deixando-nos o lava-louça
Cheio de louça por lavar
E sal no pote do açucar
Quando o nosso melhor amigo
Telefona no dia seguinte
Dizendo: vem-na buscar
A gente casquina e pensa
Espera um pouco Hortência
Vais ver o que vais levar

Um par de chapadas na tromba
Um bom pontapé no cu
Um murraço nas queixadas
Dá-nos outra juventude
Um bom par de chapadas na tromba
Um directo em cheio no estomago
Os dedos dos pés debaixo duma mó
Um biqueiro em pleno trálálá
Aborrecias-te no meu quartinho
Suspiravas, querias coisa nova
Doravante de Janeiro a Dezembro
Conta comigo para te servir à descrição
Um bom par de chapadas na tromba
Isso há-de consolar-me minha rica
Dos serões em que manipulavas
O rolo da massa
Toma lá cabra.

Tradução: Irene Freire Nunes

Um poeta
É um ser único
Em montes de exemplares
Que só pensa em versos
E só escreve em música
Sobre assuntos diversos
Uns vermelhos outros verdes
Mas sempre magníficos.

tradução: Irene Freire Nunes e Fernando Cabral Martins