Hart Crane

Harold Hart Crane nasceu em Garrettsville, Ohio, em 1899. Ansioso e instável desde criança, não chegou a completar o liceu. Autodidacta começou a escrever na adolescência e publicou os primeiros poemas em revistas de literatura, aos 16 anos. A sua obra resulta da combinação de influências da literatura europeia (Elliot, Shakespeare, Marlowe, Donne, Laforge e Rimbaud) com a sensibilidade americana de Walt Witman.

Em Nova York conviveu com figuras importantes como Allen Tate, Katherine Anne Porter, E.E. Cummings e Jean Toomer, no entanto o alcoolismo  e a sua instabilidade crónica impediram qualquer tentativa de amizade duradoura.

Depois de publicar os livros de poemas White Buildings  (1926) e The Bridge (1930) obteve o prémio Guggenheim. Viajou pela California, Europa, México, Key West e outros lugares nas caraíbas, passando a dedicar-se totalmente à poesia.

Hart Crane atirou-se ao mar em 1932.

ler mais: modern americam poetry / wikipedia /poetryfoundation/ poets.org

foto: Walker Evans 

Poemas

Contempla a presa aqui, ó rosto de Jano,
Duplo como as mãos que torcem este copo.
Olhos como estes, em busca ou repouso, não verás_
Recitando dor ou alegria, como é que hás-de suportar?

Meias sombras geminadas, clivando-se a segunda-feira
Segura em cada a pele apenas, e assim,
Faço em crosta um prato de mercúrio a vibrar
Trazido-te fendido, e irmão na metade.

Indaga este severíssimo fragmento, sorri,
Ignora o seu rufar e as folhas que sopram mais sombrias –
Porém, protela, revogação das lágrimas
Que cedem atenção a um signo crucial.

Fixa o olhar – como o vento se regala e faz rodopiar
O disco do cérebro a tremer contra a volúpia. Observa
Depois a escuridão, qual rosto de símio, dissolvendo-se,
E prédios brancos gradualmente respondendo ao dia.

Que o mesmo inominável abismo nos sitie –
Nos suspenda por igual de atrozes somas
Erguidas piso a piso sobre tubos de aço que ao coração
De prumo não concedem, como Absalão, uma torrente.

A torre mais alta – cerque a paliçada das suas vigas
O ouro de Nínive arrancado; -  deixa, contudo, a torre.
A ponte balouça sobre os salvados, para lá do cais;
O vento sustenta a ensígnia da tua vontade…

Não ouviste tu, no alternar dos sinos,
As horas, todas em aplauso, densas como num só passo?
Perdoa-me um eco destas coisas,
E caminhemos pelo tempo com igual orgulho.

tradução: João Ferreira Duarte

original e tradução lidos aqui

O esquecimento é como uma canção
Que, sem pulsação nem medida, se perde.
O esquecimento é como um pássaro de asas reconciliadas,
Estendidas e imóveis, -
Um pássaro infatigável que costeia o vento.

O esquecimento é chuva nocturna,
Ou uma velha casa na floresta, - ou uma criança.
O esquecimento é lívido, - lívido como uma árvore golpeada,
E pode ensurdecer as profecias da sibila,
Ou ocultar os Deuses.

Eu consigo lembrar demasiado esquecimento.

tradução: Henrique Fialho

versão original

Muitas vezes das ondas, do largo desta escarpa
os dados de ossos dos afogados que ele vira mandam-lhe
embaixadas. Os números quando os notava
caíam na praia e se volviam obscuros.

E restos de naufrágios passavam sem soar de sinos,

o cálice do que é bondoso na morte restituindo

um Capítulo disperso, hieróglifo lívido,

a chaga ominosa em corredores de conchas.

E então no circuito calmo de uma vasta curva,
encantado o chicotear e conformada a malícia,
gelados olhos havia que levantavam altares;
e silentes respostas se esgueiravam de astro a astro.

Bússolas, quadrantes, sextantes já não forçam
mais marés. Alta nos azuis declives
a monodia ao marinheiro não despertará.
Esta sombra fabulosa só o mar a guarda.

tradução: Jorge de Sena

em Poesia do século XX, 3ª ed., ASA; 2003

versão original

Aurora após aurora, as gaivotas, de asas enregeladas
Pelo ondulante poiso, mergulham e rodopiam,
Derramando brancos anéis de tumulto, exibindo a sua liberdade
Nas alturas, sobre as águas agrilhoadas da baía.

Numa curva imaculada, as aves abandonam os nossos olhos,
Semelhantes ao fantasma de um veleiro que cruza
As facturas, os orçamentos e os balancetes a arquivar;
- A jornada termina e os ascensores libertam-nos do dia...

Sonho com as grandes salas de cinema, a magia panorâmica,
As multidões debruçadas sobre uma qualquer cena cintilante,
Uma profecia nunca revelada, incessantemente revista,
No mesmo écran, pelos espectadores da sessão seguinte.

E Tu, ó Ponte, caminhas sobre o porto, em passos de prata,
Como se o sol te imitasse, sem contudo copiar
O movimento do teu brilhante rasto, -
A tua livre originalidade assim preservada.

Fugido de alguma vigia de metro, cave ou sótão,
Um lunático precipita-se para os teus parapeitos,
Oscila por um instante, a camisa berrante, enfunada,
Um gracejo tomba dos transeuntes espantados.

Em Wall Street, dos andaimes até à rua, o meio-dia escorre
Como um rasgão luminoso no acetileno celeste;
Toda a tarde, os guindastes giram entre as nuvens...
Enquanto os teus cabos sorvem a calma do oceano.

A recompensa que ofereces
É tão obscura quanto o paraíso bíblico;
Aqueles que resgatas do anonimato, o tempo jamais destruirá.
Só Tu és senhora da indulgência e do perdão.

Ó harpa e altar em fúria fundidos,
(Como pôde o simples labor humano alinhar a harmonia
das tuas cordas)
Terrível limiar da aliança do profeta,
Da oração dos banidos, do pranto dos amantes.

Mais uma vez os faróis dos automóveis deslizam velozes
Pelo teu indiviso idioma, como suspiros estelares, imaculados,
Contas de um rosário que condensa a eternidade.
E contemplamos a noite erguida nos teus braços.

Junto às tuas sombras, encostado aos pilares, eu esperei;
Só na escuridão são claras as tuas trevas.
Os edifícios da cidade, submersos pela neve de mais um ano,
lembram prendas de Natal desembrulhadas.

Insone como o rio que passa sob ti
Cobres o mar e sonhas com a turfa das pradarias.
Vem, ó Ponte, condescende com a nossa humildade,
E da tua curvatura empresta um mito a Deus.

tradução: João de Mancelos

ler também a tradução de Maria de Lourdes Guimarães 

Através da tessitura de cabos e amarras, ascende a curva da ponte,
Mutável à luz, as suas cordas dedilhadas,
Milhas retesadas de luar corrediço sincopam
O tráfico sussurrado, telepatia de cabos.
Lá no índice da noite, granito e aço,
Malhas transparentes, imaculadas, as cintilantes pautas -
Vozes sibilinas bruxuleiam, correm, vacilantes,
Como se fora um deus, o herdeiro desta harpa.

E através do cordame, tecendo com o seu apelo
Um arco sinóptico de todas as marés -
As labirínticas vozes da história
Devolvem o eco, como se as embarcações do oceano
Empenhadas num sopro uno e vibrante, bradassem:
«Que o teu amor seja devoto àquele a quem ofertamos a canção!»
 - Dos diques escuros, saúdam-nos os sons serenos,
E os sete mares respondem dos seus sonhos.

E no fim, obliquamente acima dos molhes de carregamento,
Novas oitavas assentam sobre os monólitos gémeos, os pilares,
E para lá dos seus cabos gelados, a lua testemunha
Dois mundos adormecidos (Ó curvas amarras do cântico!).
Mais alto ainda, sobre a nave inundada de cristal,
As redes da tempestade de neve reúnem-se e ressoam
Nas plataformas prateadas, os mastros zunindo,
Pináculo da visão, paládio, leme das estrelas.

Os olhos são diáfanos, quais gaivotas doridas pela geada,
Fendidas e impulsionadas pelas brilhantes, luminescentes asas.
Lá em cima, apropriam-se da silhueta das torres, no voo cortante,
Roçam o flanco contra a lâmina do tendão
- O amanhã inscreve-se no passado - e ligam
O enigma temporal que nenhum viajante jamais decifrou,
À excepção daquele que, através das piras de amor e morte,
Demanda o eterno riso das lanças míticas.

Como saudações ou despedidas, lá nas alturas dos planetas,
Inúmeros martelos suspiram e luzem fracamente sobre o Tiro:
Sereno, mais agudo que o longo pranto de ínfimas eras,
Da bigorna, o silêncio fixa Tróia.
E tu, lá no alto, - Jasão! implacável Grito!
Apertas ainda o freio ao ar enxameado!
Prateada, a Via Láctea, incomparável apelo,
Irradia Éolo estilhaçado nos estreitos!

Desabrochando das águas, entre o troar assustador,
A Altíssima Visão-da-Viagem, ansiosamente nua -
A Ponte, elevando a noite até ao ciclorâmico pico
Do mais profundo dia - Ó Coro, traduzindo o tempo
Para a Palavra profícua que os sóis
E a sinergia das águas eternamente fundem
E refundem em miríades de sílabas, - Salmo de Cataio!
É o Amor, o teu puro e penetrante Paradigma!

Abandonámos a enseada suspensa na noite,
O reflexo das lanternas portuárias afastando-se da quilha.
Pacífico aqui, até ao término dos tempos, transportando o trigo,
Os olhos hesitam, através das pontadas de poeira e aço.
E porém, o circular, indubitável friso
Da meditação do paraíso, submetendo a vaga
À onda ajoelhada, constrói dedicadamente a canção
E a estrofe primaveril desprende-se das cordas imperecíveis!

Ó Tu, Sabedoria de Aço, cujo voo é íntimo
Dos ágeis circuitos do regressar da cotovia;
Dentro de cujo laço cantam
Inúmeros pares, enlaçados na mesma crisálida.
Tu és a unidade e o garanhão luminoso dos astros
E semelhante a um órgão de som apocalíptico,
Governas a visão, o hino, a carne a partir do teu reino temporal
- Enquanto o Amor traça a rota perfeita para o leme

Ledo repique da luz secular, Mito intrínseco
Cuja feroz ausência de sombra é a ferida terminal da morte,
Ó garganta de Rio, iridescentemente elevada
Através da poção brilhante e pela textura das nossas veias;
Com brancas escarpas oscilando para a luz,
Sustidas pela angústia, as cidades são dotadas
E justificadas, conclamadas de campos amadurecidos,
E revolvem-se através das colheitas, em doce tormento.

És a eterna e esplenderosa Promessa das Deidades, Ó Tu
Cujo cântico a nova alquimia se compromete
A envolver em génese e santidade.
Para nosso regozijo, do teu punho alvo,
Sempre através dos cabos cegos, desabrocha a profecia:
Sempre através do cordame espiralado, sequela das pirâmides,
O bater cinético das asas de coros purificados,
A Nova Palavra de Deus... ascende.

As migrações requerem o vazio da memória,
Ficções que talham o coração, -
Indizível tu, Ponte, para ti, Ó Amor.
Absolve esta história, Flor imaculada entre as flores,
Ó Sapintíssima, Anémona,
Enquanto as tuas pétalas consomem os astros que nos cercam,
Tu, Atlântida, cujo esplendor é meu herdeiro,
Sustém este flutuante bardo através do tempo.

Assim, para a tua Omnipresença, intemporal,
Como as azagaias ensanguentadas de uma estrela
[tocando a finados
E a sangrar eternidade - as órficas cordas,
Em falanges siderais, faíscam e convergem
- Um hino, uma Ponte inflamada! Terá chegado a hora de Cataio,
Agora que a compaixão se impregna de erva e os arcos da aliança
Cercam a serpente junta com a águia nos ramos...?
Os sussurros antifonários oscilam no azul celeste.

tradução: João de Mancelos

 

THE little voices of the prairie dogs Are tireless . . . They will give three hurrahs Alike to stage, equestrian, and pullman, And all unstingingly as to the moon.

And Fifi's bows and poodle ease Whirl by them centred on the lap Of Lottie Honeydew, movie queen, Toward lawyers and Nevada.

And how much more they cannot see! Alas, there is so little time, The world moves by so fast these days! Burrowing in silk is not their way -- And yet they know the tomahawk.

Indeed, old memories come back to life; Pathetic yelps have sometimes greeted Noses pressed against the glass.

lido aqui