Paulinho Assunção
Paulinho Assunção nasceu em São Gotardo, Minas Gerais, em 21 de julho de 1951. É poeta, ficcionista e jornalista profissional. Como poeta, publicou Cantigas de Amor & Outras Geografias (1980) , A Sagrada Blasfêmia dos Bares (1981) e Diário do Mudo (1984). Como ficcionista, recebeu em 1998 o Prémio Guimarães Rosa de Contos com o livro Pequeno Tratado Sobre as Ilusões, publicado em Portugal pela editora Campo das Letras em Março de 2003.
Viveu na Argentina (1973), Peru (1975) e Estados Unidos (2001), além de uma temporada em Lisboa e Paris, em 1999 e 2000. Foi membro da Comissão de Redacção do "Suplemento Literário" de Minas Gerais e repórter da sucursal mineira da Agência Estado (jornal O Estado de S. Paulo). Mora em Belo Horizonte, dedicando-se à escrita e aos livros feitos à mão nas edições 2 Luas. Participa activamente na blogosfera escrevendo em blogs como kafka em belo horizonte, a volta de kafka em belo orizonte, pessoas-de-romance, artigos e paulinho assunção.
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Uns, efêmeros, escrevem na areia
para que as ondas
lavem e o sal corroa o corpo das
letras, e para
que a manhã dos mares seja
testemunha,
não de frases ou palavras, mas de
restos de sargaços, de quilhas
carcomidas de
barcos, de lemes e mastros avariados,
de espuma pela boca de peixes
mortos.
Outros, porque visionários,
escrevem no bronze
para que o vento, com os seus
chicotes de vento,
e o tempo,
com o seu olho insone
de tempo, sejam pelas letras
derrotados, e para que
os séculos, com seus galopes
de potro, com seus cascos de potro
cego, grafem no metal os próprios
ossos das palavras.
Uns, diletantes, escrevem
nos feriados ou então nas tardes
de domingo, e esperam,
primeiro um inchaço, depois uma
eclosão, por fim, esperam
descer do teto a matéria
gelatinosa e plástica que lhes
servirá de letras, com as mãos
eles aparam esses
nacos e essas porções
grudentas, quase bolotas,
e ainda com as mãos
eles passam a lambuzar
de norte a sul a página,
até submergi-la, até afogá-la
em gosma, para, enfim,
sonolentos, de tudo esquecerem.
Outros, porque furiosos,
escrevem com a ponta
de um punhal depositada
sobre o fígado. Convém manter
deles certa distância, embora
o risco para quem deles
se aproxima esteja menos
no punhal e mais no líquido
que eles fazem porejar da pele,
um líquido gélido e ácido,
sem brilho, porém volumoso
ao ponto de ao final do dia
envolvê-los com uma mantilha
de luto, já quando as letras
sobre a página tornaram-se
irritadiças e àsperas
Uns, precavidos, escrevem
em linha reta para proteger
suas frases dos abismos de
um lado e outro da página, sempre
avante é o que parecem
dizer a todo instante, sempre
avante com chumaços
de algodão em cada orelha,
sempre avante eles jamais
permitem que o canto das sereias
e as próprias sereias lhes venham
roçar os corpos,
e fazer dos corpos deles
um país definitivamente
conquistado.
Outros, porque urgentes,
escrevem o quanto antes
para que não sejam
surpreendidos pela noite em algum
ponto ermo do deserto.
Chegar o quanto antes e onde
quer que seja é para eles uma lei.
Talvez, por isso, as letras
que lhes saem são às vezes
dardos, às vezes flechas; são às vezes um susto,
às vezes são sinais de rádio
a anos-luz de nós, isto é,
são fósses de letras,
como estrelas mortas.
Uns, delicados, escrevem
com o braço em repouso
sobre o dorso de uma pluma,
provavelmente porque concebem
as letras como se as letras
fossem asas de libélulas.
Convém dar a eles o direito
ao silêncio, convém dar a eles
o ambiente de claustro, pois,
se o som de um clarim é capaz de
desmoroná-los,
de igual modo e efeito, o rumor do
mundo pode desintegrá-los.
Outros, porque bélicos,
escrevem nos gumes
de armas brancas como o punhal
ou a adaga. Esses costumam
ter olhos vermelhos e língua seca,
nunca suspiram de saudade
e quase sempre estão
de emboscada.
Convém, pois, não compartilhar
com eles a mesma rua,
o mesmo andar de edifício, muito
menos a mesma música.
Uns, gagos, escrevem
cobrindo os buracos e os intervalos
que o silêncio faz entre as letras
e vivem constantemente em estado
de síncope. São, por tais motivos,
propensos a ritmos ensandecidos
e dissolutos. Quando irados,
sovam as palavras com os punhos
ou as atiram no chão
para serem pisoteadas.
Contudo, se felizes, costumam
engenhar palavras
engraçadas, algumas magras,
outras obesas, algumas sólidas,
outras feitas de bolha.
Outros, porque larápios,
escrevem a meio caminho
entre a luz e as trevas,
uma parte do rosto sob a névoa,
a outra parte sob a sombra.
Seres noturnos e vicários,
apreciam recolher palavras na bolsa
alheia, mais pelo gosto
de desnutri-las do que
com a intenção de utilizá-las.
Não à toa, costumam possuir sinistros
depósitos de palavras em decomposição.
Uns, solares, escrevem
concedendo às palavras
respiradouros e clarabóias,
escotilhas e janelas. Mesmo palavras
mais soturnas ou mais enlutadas
recebem deles frestas de luz
nas partes onde as letras
foram cobertas pelo musgo,
pelo mofo ou pelo lodo. Amigos
do sol, esses escrevem
com assovios formados
ou em doce formação
no côncavo dos lábios.
Outros, porque melancólicos,
mais escavando do que escrevendo,
procuram as regiões sem luz
no corpo das letras,
não propriamente trevas,
mas certos carnegões ou furúnculos
ali depositados pelo tempo.
A tarefa principal deles, portanto,
é furar esses carnegões prenhes
de humor enegrecido e barrento,
fazê-los escoar a baba e o visgo
entre as frases, de tal modo que,
no fim de cada dia, densas camadas
de matéria semelhante ao piche
foram espalhadas sobre
o corpo da escrita.
Uns, feirantes,
escrevem nas manhãs dos bairros
suas palavras-legumes, suas
palavras-folhudas,
suas palavras grãos, suas
palavras-frutos. Ou então fazem
exuberar,
aos olhos leitores dos cachorros,
bandas de leitões, frangos
dependurados pelo pescoço,
suãs de novilhos, pernis de cabritos.
Convém observar a ânsia
com que oferecem consoantes
secas e vogais molhadas pelo
megafone, convém observar
como são artífices de cálculos e
contabilidades, convém observar
como estão permanentemente em
estado de prateleira.
Outros, porque tribunos,
põem as palavras na ceva
para que elas ganhem volume e peso,
e adquirem banha, e se tornem
suculentas. Só então eles
aceitam utilizá-las nas frases,
umas escolhidas pelo tamanho
do dorso, outras pela exuberância
das ancas. Convém de quando
em quando revolver o lixo
deixado por esses tribunos nos cantos
da oficina, pois, ali, entre monturos,
pedem socorro as palavras
raquíticas, as palavras
desnutridas e agônicas.
Uns, catequéticos,
fazem das palavras animaizinhos
de mando, amiúde as palavras
saem deles para missões e
incumbências, muito
freqüentemente podemos vê-las
em pregações pelas esquinas
das cidades. Convém não dar
ouvidos a essas palavras missionárias,
enos pelo que elas propalam,
ais pelo barulho ensurdecedor
dos seus latidos e relinchos.
Outros, porque ourives,
usam goivas e pontais de diamante
para esculpir o corpo metálico
das palavras. Faz bem aos olhos
e ao coração observá-los tão
enlevados neste ofício,
faz bem observá-los tão meninos
com suas palavras-anéis,
suas palavras-braceletes,
suas palavras-pingentes, todas
em estado de baile.
Uns, suicidas, são dados
encaixar cápsulas de cianureto
nos interstícios das letras, para
então ingeri-las durante
o sonho. Ou então preferem
encharcar as letras com álcool
ou gasolina, e assim, ao meio-dia
em ponto de uma segunda-feira,
e com a ponta acesa
de um fósforo, escrevem
cartas que jamais chegarão
ao seu destino, pois
incendiadas no meio do caminho.
Outros, porque acrobatas,
equilibram as palavras
em fios de aço no mais alto
ponto do circo. Algumas
palavras são postas
em fila, outras são empilhadas,
e formam torres, ou se abrem em
árvores, ou então simulam
máquinas e engenhocas.
Todas porém são obrigadas
a contorcionismos em volta
do próprio eixo. Contudo, é
aconselhável saber que,
quase sempre, o sopro de um
anjo invisível desfaz essas
ormações de letras e, sem
a menor cerimônia, as atira
obre a platéia.
Uns, nômades, louvam o próprio
ir sem rumo das palavras
por países e continentes, nem bem
elas chegam e já estão partindo,
um comichão inexplicável
movimenta ininterruptamente
esses comboios de letras, nada
os retém, nem o olhar das
mulheres que acenam de um
tombadilho, nem as crianças em
condição de abandono. Errantes,
as palavras desses nômades
estão sempre em estado de adeus.
Outros, porque estrangeiros, são
os que geram palavras
com o mal-estar do desassossego,
as palavras deles jamais
estão onde se esperaria
estivessem, sempre cometem
um equívoco de lugar e destino,
e os leitores que as lêem,
quando as lêem, costumam orar
por esses estrangeiros como
se aconselha orar
para os excomungados.
Uns, inocentes, teimam
em andar com as suas sacolas
de palavras pelas zonas de litígio,
atravessam com elas os campos
de batalha, quase sempre são
abatidos, ou então são feitos
prisioneiros, não muito
raramente são amestrados.
E enquanto há guerra e há
litígio, cumprem a ordem
de divertir combatentes
e comandantes em suas solidões
de pernas atrofiadas, de olhos
vazados, de vísceras à mostra.
Outros, porque usurários, põem
pela manhã no cofre
palavras gestadas durante a noite,
anos a fio e para todo o sempre
eles trancafiam em cofres
as suas palavras-apólices, nada,
ninguém os demove deste
segredo,ninguém os convence
ao gesto de soltar uma
palavra matinal
nos céus dos homens.
Uns, por fim,
irremediáveis e danados,
escrevem porque estão
para todo o sempre
e eternamente
dentro de um círculo de fogo.
Outros, porque limítrofes
ao círculo de fogo, escrevem
e escrevem, escrevem
para sempre escrevem, nada
mais fazem do que escrever,
sempre estiveram e sempre
estarão destinados a escrever,
não dormem, escrevem, não pulam
dos edifícios nem tomam cicuta,
eles escrevem, o fim é anunciado
pelas trombetas, eles escrevem,
as cidades são consumidas pela peste,
eles escrevem, escrevem em busca
e crentes da salvação que não há.
de Escreventes, livro produzido artesanalmente, editorial 2 luas, Belo Horizonte, 1998
A passagem
Com os brindes e os abraços, nós seputámos o ano. Éramos carne da mesma carne e sangue do mesmo sangue. Depois dançámos. Antes e depois do banquete, que era farto e era pródigo, nós improvisámos danças alegres e jubilosas.
Enquanto isso, íamos bebendo dos copos e dos gargalos, e ficávamos bêbados, e caíamos. Depois houve teatro. depois alguém sentou-se ao piano e arpejou uma canção que falava de vida nova, e nós cantámos em coro, os velhos com bocas em oh, as mulheres com as bocas em ah, as crianças com as bocas em ih, pela madrugada.
Era noite ainda e saímos para a chuva, porque chovia, e quando retornámos, molhados e resplandecentes, mais uma vez cantámos, dançámos, bebemos, comemos e caímos. Já ninguém se recordava do ano velho, que estava definitivamente morto, sepultado, talvez fedendo.
Em seguida, as mulheres serviram os doces. e houve mais música. E alguém trouxe fogos de artificio para que explodíssemos a escuridão.
Quando o dia enfim clareou fomos como cada um de nós para as nossas casas. Não estávamos nem tristes nem alegres, e nem falávamos, e nem tínhamos qualquer sonho da noite anterior para contar um para o outro. E também não sabíamos o que fazer com aquele novo tempo que chegara.
Naban
Ele vinha todos anos e sempre chegava com as primeiras chuvas de novembro.
Em outubro, eu já começava a esperá-lo, já sentia o seu cheiro no vazio da cama, o seu odor de almíscar, de gengibre e de terras longínquas. Mas os sinais da sua vinda também invadiam o meu corpo, ora empedrando a ponta dos seios, ora retesando os músculos das coxas.
Chamei-o Naban desde o primeiro dia, desde a primeira vez, e assim ficou. De mim, ele conhecia até a alma, e um nome falso: Desdália. No resto, imitávamos os bichos, os de garras, os de peçonha.
Os sinais da véspera me jogaram frente ao espelho, atrás de caprichos. Lustrei brincos, preparei ervas, deixei que os meus olhos ficassem profundos. À noite, tresloucada, testei idiomas de feras, falei com vultos, pratiquei as unhas.
Naban chegou conforme o esperado. Estava mais velho, mas ainda era um cavalo. Riu e se banhou. Tinha histórias de amedrontar e de acariciar. Às vezes vinha, me asfixiava no canto da sala; depois ia, vigiava com os olhos de lobo a chuva esparramando facas, martelando telhas.
A casa já cheirava a Naban.
Mais tarde, enquanto me revirava e me esquartejava, Naban deixou aparecer por entre os dentes a língua verde. Em seguida, seu rosto se alongou em focinho e a pele enrijeceu, formando placas, cascos, umedeceu como as plantas dos brejos.
Ainda era Naban, assim eu o sentia. Mas quando chegamos ao silêncio das águas dominadas, vi Naban se mover lento para o chão, e lá rastejou. Logo fui encontrá-lo na chuva, barrento, os olhos aquáticos e amarelos.
Hoje Naban é um animalzinho que ressona preguiçoso junto às macegas, nos ermos do terreiro. E eu, eu sou uma mulher que, com os anos, perco saudades e palavras. Sou uma flor que desfolha.
de Pequeno tratado sobre as ilusões, Campo das Letras, 2003