Ana Cristina César

Ana Cristina César, nasceu no Rio de Janeiro em 1952. Em 1968, fez as suas primeiras viagens pelo mundo e viveu, durante um ano, em Londres. Quando voltou deu aulas, traduziu, fez letras e escreveu para revistas e jornais alternativos. Em 1976, integrou a célebre antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloísa Buarque. Fez pesquisas sobre literatura e cinema. Concluíu o mestrado em comunicação e lançou os seus primeiros livros em edições independentes: Cenas de Abril e Correspondência Completa.

Dez anos depois, voltou a Inglaterra. Em 1980, recebeu o título de Masters of Arts em Theory and Practice of Literary Translation pela Universidade de Essex. Durante a sua estadia em Inglaterra escreveu muitas cartas e editou Luvas de Pelica. Após regressar ao Brasil, trabalhou em jornalismo e televisão.Viu o melhor da sua obra publicada no livro A Teus Pés, pela editora Brasiliense (1982).

Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983. Foram publicados três obras póstumas: Inéditos e Dispersos (1985), Escritos da Inglaterra (1988) e Escritos no Rio (1993). Em Portugal, em Novembro de 2005, as edições quasi, publicaram Um Beijo que Tivesse um Blue - uma antologia seleccionada e prefaciada por Joana Matos Frias.

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Poemas

Pergunto aqui se sou louca 
Quem quer saberá dizer 
Pergunto mais, se sou sã 
E ainda mais, se sou eu 

Que  uso o viés pra amar 
E finjo fingir que finjo 
Adorar o fingimento 
Fingindo que sou fingida 

Pergunto aqui meus senhores 
quem é a loura donzela 
que se chama Ana Cristina 

E que se diz ser alguém 
É um fenômeno mor 

Poesia

jardins inabitados pensamentos 
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta

O homem público N. 1

Tarde aprendi
bom mesmo 
é dar a alma como lavada.
Não há razão 
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita 
que vai sendo cortada
deixando uma sombra 
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Aventura na Casa Atarracada

Movido contraditoriamente
por desejo e ironia
não disse mas soltou,
numa noite fria,
aparentemente desalmado;
- Te pego lá na esquina,
na palpitação da jugular,
com soro de verdade e meia,
bem na veia, e cimento armado
para o primeiro a andar.

Ao que ela teria contestado, não,
desconversado, na beira do andaime
ainda a descoberto: - Eu também,
preciso de alguém que só me ame.
Pura preguiça, não se movia nem um passo.
Bem se sabe que ali ela não presta.
E ficaram assim, por mais de hora, 
a tomar chá, quase na borda,
olhos nos olhos, e quase testa a testa.

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é muito claro
amor
bateu
para ficar
nesta varanda descoberta
a anoitecer sobre a cidade
em construção
sobre a pequena constrição
no teu peito
angústia de felicidade
luzes de automóveis
riscando o tempo 
canteiros de obras
em repouso
recuo súbito da trama

Nada, Esta Espuma

Por afrontamento do desejo
insisto na maldade de escrever
mas não sei se a deusa sobe à superfície
ou apenas me castiga com seus uivos.
Da amurada deste barco 
quero tanto os seios da sereia.

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

Um Beijo

Um beijo
que tivesse um blue.
Isto é
imitasse feliz a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer.
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor embevecido
talvez ensurdecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor

Fagulha

Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal. 

Flores do Mais

devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais

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Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
os restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de
teus gritos, e roupas, choros, cordas e
também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, o os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono.

Fisionomia

Não é mentira
é outra
a dor que doi
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói

Dias Não Menos Dias

Chora-se com a facilidade das nascentes
Nasce-se sem querer, de um jato, como uma dádiva
(às primeiras virações vi corações se entrefugindo todos
ninguém soubera antes o que havia de ser não bater
as pálpebras em monocorde

e a tarde
pendurada no raminho de um
fogáceo arborescente
deixava-se ir
muda feita uma coisa ultima

Opto pelo olhar estetizante, com epígrafe de molher moderna
desconhecida.(“Não estou conseguindo explicar minha ternura,
minha ternura, entende?) Não sou rato de biblioteca, não
entendo quase nada aquele museu da praça, não tenho embalo de
produção, não nasci para cigana, e também tenho o chamado
olho com pecados. Nem aqui? Recito WW para você:
 “Amor isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e
sou eu que te seguro (é de noite? estivemos juntos e sozinhos?),
caio das páginas em teus braços, teus dedos me entorpecem,
teu hálito, teu pulso, mergulho dos pés à cabeça, delícia e chega –
Chega de saudade, segredo, impromptu, chega de presente
deslizando, chega de passado em videotape impossivelmente
veloz, repeat, repeat.  Toma este  beijo só para você e não me
esquece mais. Trabalhei o dia inteiro e agora me retiro, agora
repouso minhas cartas e traduções de muitas origens, me
espera uma atmosfera mais real que a sonhada, mais direta, dardos
e raios à minha volta, Adeus!
Lembra de minhas palavras uma a uma. Eu poderei voltar. Te amo,
e parto, eu incorpóreo, triunfante, morto”.

em Um Beijo que Tivesse um Blue, ed. quasi, 2005

I

Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio.

II
Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensados no meu seio.

Sexta feira da paixão

Alguns estão dormindo de tarde,
outros subiram para Petrópolis como meninos tristes.
Vou bater à porta do meu amigo,
que tem uma pequena mulher que sorri muito e fala
pouco, como uma japonesa.
Chego meio prosa, sombras no rosto.
Não tenho muitas palavras como pensei.
"Coisa ínfima, quero ficar perto de ti".
Te levo para a avenida Atlântica beber de tarde
e digo: está lindo, mas não sei ser engraçada.
" A crueldade é seu diadema..."
O meu embaraço te deseja, quem não vê?
Consolatriz cheia das vontades.
Caixa de areia com estrelas de papel.
Balanço, muito devagar.
Olhos desencontrados: e se eu disser, te adoro,
e te raptar não sei como dessa aflição de março,
bem que aproveitando maus bocados para sair do
esconderijo num relance?
Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?
Beware: esta compaixão é
paixão.

 

de Novas Seletas de Ana Cristina Cesar, Novas Fronteiras, S. Paulo, 2004

Era noite e uma luva de angústia me afagava o
pescoço. Composições escolares rodopiavam,
todas as que eu lera e escrevera e ainda uma
multidão herdada de mamãe. Era noite e uma
luva de angústia... Era inverno e a mulher
sozinha... Escureciam as esquinas e o vento
uivando... Saí com júbilo escolar nas pernas,
frases bem compostas de pornografia pura,
meninas de saiote que zumbiam nas escadas
íngremes. Galguei a ladeira com caretas,
antecipando o frio e os sons eróticos povoando
a sala esfumaçada.

EXTERIOR. DIA. Trocando minha pura
indiscrição pela tua história bem datada. Meus
arroubos pela tua conjuntura. MAR, AZUL,
CAVERNAS, CAMPOS e TROVÕES. Me
encosto contra a mureta do bondinho e choro.
Pego um táxi que atravessa vários túneis da
cidade. Canto o motorista. Driblo a minha fé. Os
jornais não convocam para a guerra. Torça,
filho, torça, mesmo
longe, na distância de quem ama
e se sabe um traidor. Tome bitter no velho
pub da esquina, mas pensando em mim entre um
flash e outro de felicidade. Te amo estranha,
esquiva, com outras cenas mixadas ao sabor do
teu amor.

 

Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói - linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.

poema encontrado aqui

 

Não sei desenhar gato.
Não sei escrever gato.
Não sei gatografia
Nem a linguagem felina das suas artimanhas
Nem as artimanhas felinas da sua não linguagem
Nem o que o dito gato pensa do hipopótamo (não o de Eliot)
Eliot e os gatos de Eliot (“Practical Cats”)
Os que não sei
e nunca escreverei na tua cama.
O hipopótamo e as suas hipopotas ameaçam gato (que não é hipogato)
Antes hiponímico.
Coisa com peso e froma do peso
e o nome do gato?
J. Alfred Prufock? J. Pinto Fernande?
o nome do gato é nome de estação de trem
o inverno dentro dos bares
a necessidade quente de tê-lo
onde vamos diariamente fingindo nomear
eu – o gato – e a grafia das minhas garras:
toma: lê o que escrevo em teu rosto
lê o que rasgo - e tomo – de teu rosto
a parte que em ti é minha – é gato
leio onde te tenho gato
e a gatografia que nunca sei
aprendi nas garras que tomei
e me tornei parte e tua – gata – a
saltar sobre montanhas como um gato
e deixar arco-irisado esse meu salto
saltar nem ao menos sabendo que desenho
e escrita esperam gato
saltar felinamente sobre o nome do gato
ameaçado
ameaçado o nome do GATO
ameaçado o nome de GASTO
ameaçado de morrer na gastura do meu nome
repito e me auto-ameaço:
não sei desenhar gato
não sei escrever gato
não sei gatografia
nem...

em Um Beijo que Tivesse um Blue, ed. quasi, 2005