Affonso Romano de Sant'Anna
Affonso Romano de Sant'Anna, poeta e cronista, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1937. Cresceu em Juiz de Fora. Trabalhou desde criança, para pagar os estudos. Filho de pais protestantes, é criado para ser pastor da Igreja. Aos 17 anos prega o evangelho em várias cidades de Minas Gerais, visita favelas, prisões e hospitais, convivendo com o sofrimento das pessoas pobres. Essa experiência irá influenciar o estilo de seus textos e poesias, com forte conteúdo social.
Fez parte dos movimentos que transformaram a poesia brasileira. Data desta época a participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Foi considerado pela revista "Imprensa", em 1990, como um dos dez jornalistas formadores de opinião por desempenhar actividades no campo político e social que marcaram o país nos anos 60. Em 1962 lançou o seu primeiro livro, o ensaio "O Desemprego da Poesia".
Em1971 publica o seu primeiro livro de poesias "Canto e Palavra".
De 1973 a 1976, dirige o Departamento de Letras e Artes da PUC/RJ. Para o curso de Pós-Graduação em Letras, realizado em 1976 na PUC/RJ, promove a vinda de conferencistas internacionais, entre os quais Michel Foucault, sociólogo francês. Houve grande repercussão da visita de Foucault ao país, que se encontrava em pleno regime ditatorial.
Durante dois anos deu aulas de Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia. Foi bolsista do International Writing Program, na Cidade de Iowa. Em 1969, apresenta a sua tese de doutoramento "Carlos Drumond de Andrade, o Poeta "Gauche", no Tempo e Espaço." que viria a ser publicada em 1972 e que lhe garantiu os quatro prémios mais importantes no universo literário brasileiro. Foi professor na Universidade de Colónia, na Alemanha e em Aix-en-Provence, em França. Foi Presidente da Fundação Biblioteca Nacional de 1990 a 1996.
Escreve regularmente no Jornal do Brasil, colabora ainda com a TV e o jornal O Globo, e participa no suplemento “Em cultura” do jornal Estado de Minas.
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O HOMEM E SUA SOMBRA - 1
Era um homem com sombra de cachorro
que sonhava ter sombra de cavalo mas era um homem com sombra de cachorro e isto de algum modo o incomodava.
Por isto aprisionou-a num canil
e altas horas da noite enquanto a sombra lhe ladrava sua alma em pêlo galopava.
O HOMEM E SUA SOMBRA - 2
Era um homem que pensava tão claro
que nenhuma dúvida o sombreava Era como se raciocinasse sempre ao meio-dia quando o pensamento é um corpo ereto que sombra alguma esconderia
O problema era à noite
quando o escuro mundo o envolvia: tentava pensar claro, tentava mas algo o incomodava até que descobriu que a claridade só ganhava sentido quando com a escuridão dialogava.
O HOMEM E SUA SOMBRA - 3
Era um homem que tinha uma sombra branca
que de tão branca ninguém a via. Mesmo assim ela o seguia e com ela dialogava. Tinha-se a impressão que uma coisa ausente lhe fazia companhia o duplicava — quase seu guia.
Na verdade ele era a sombra
de sua sombra — a parte da sombra que se via.
O HOMEM E SUA SOMBRA - 4
Um homem deixou de alimentar
a sombra que carregava. Alegou razões de economia.
Afinal para quê de sobejo levar algo que o duplicava?
Sem sombra, pensou
melhor carregaria o que nele carregava.
Equivocou-se. Definhou.
Descobriu, então, que a sombra o sustentava.
O HOMEM E SUA SOMBRA - 5
Era um homem que seguia a própria sombra.
Já não se sabia se ela é que o guiava
ou se ele a perseguia. Os incomodados sugeriam que a acorrentasse. Ele tentava. Sempre à sua frente como uma enguia escura e úmida ela se lhe escapava. A única hora em que o homem e sua sombra coincidiam era quando ele dormia. Pousada nele claramente sua sombra sonhava.
Segui um postscriptum e encontrei as sombras todas.
Tendo lido os jornais
- infectado a mente, enauseado os olhos -
descubro, lá fora, o azul do mar
e o verde repousante que começa nas samambaias da sala
e recrudesce nas montanhas.
Para que perco tantas horas do dia
nessas leituras necessárias e escarninhas?
Mais valeria, talvez, nas verdes folhas, ler
o que a vida anuncia.
Mas vivo numa época informada e pervertida.
Leio a vida que me imprimem
e só depois
o verde texto que me exprime.
Muitos, vindos do século 19
foram enterrados no século 20.
Outros
já atravessamos a soleira do 21
mas morreremos antes
que o século chegue ao meio e ao fim.
Alguns, é claro, planejam ir mais longe
e para tanto se exercitam
tomam vitaminas
contando com sorte postergar a morte.
As pedras ouvem esses projectos.
Elas não almejam isto.
Não almejam
e no entanto
- conseguirão.
E o amor com seus contrários se acrescenta
Camões
2.
As vezes em que eu mais te amei
tu o não soubeste
e nunca o saberias.
Sozinho a sós contigo
em mim mesmo eu te criava
e em mim te possuía.
De onde vinhas nessas horas
em que inteira eu te envolvia,
nem eu mesmo o sei
e nunca o saberias.
Contudo, em paz
eu recebia o teu carinho,
compungido o recebia,
tranquilo em meu silêncio
e tão tranquilo e tão sozinho
que calmamente eu consentia:
- que ainda que muito tardasse
mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.
de Canto e Palavra (1965)
publicado na revista aguasfurtadas 8
Ao abrir com a faca
um peixe na cozinha da manhã
minha mulher
achou dentro do peixe
vários peixes:
um ainda com o rabo entalado
na garganta do glutão
outro na barriga
e outro
no fim da digestão.
A faca brilha sob a água da torneira
que descerra várias vidas nas vísceras feridas.
Em breve o metapeixe
(como uma caixa chinesa)
com seus peixes embutidos,
sobre a mesa será servido,
até chegar à barriga das minhas filhas.
Compungidos
deglutimos o deglutidor assassino
sem perceber que um outro peixe
invisível
cumprindo a cronogfagia
movimenta a guelra dos meses,
as presas e barbatanas da semana
e nos deglute
- sobre o mármore dos dias.
de A catedral de Colônia (1985)
publicado na revista aguasfurtadas 8
Quando eu morrer
alguns amigos vão levar um baque enorme.
e na hora da notícia ou do enterro
sentirão que alguma coisa grave aconteceu para sempre.
Depois
irão se esquecendo de mim,
da cor do luto
- e da melancolia,
exatamente
como eu fiz
com os outros que em mim também morreram.
O morto, por pouco, é pesado e eterno.
Amanhã
a vida continua com buzinas, provérbios,
sorveteiros nas esquinas,
esplêndidas pernas de mulheres
e esse ar alheio
de que a morte
não apenas se dilui aos poucos
mas é uma coisa que só acontece aos outros.
de A catedral de Colônia (1985)
publicado na revista aguasfurtadas 8
Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende
com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.
Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas
daqui a pouco, que intimidade tenho com as estrelas
quanto mais habito a noite!
Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm
os que amando tudo o que perderam
já não mentem.
de O lado esquerdo do meu peito (livro de aprendizagem) (1992)
publicado na revista aguasfurtadas 8
Para Fred Ellison
Meu amigo visita sua cova
como quem vai
à casa de campo
plantar rosas.
Há algum tempo
comprou sua casa de terra.
Plantou árvores ao redor
e de vez em quando vai lá
como se vivo
pudesse ali fazer
o que só morto fará.
De vez em quando vai ver
como sua morte floresce.
Olha, pensa, ajeita uma coisa e outra,
depois volta à agitação da vida:
ama, come, faz projectos,
pois já botou sua morte
no lugar que ela merece.
de O lado esquerdo do meu peito (livro de aprendizagem) (1992)
publicado na revista aguasfurtadas 8
A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou mexendo.
De lá para cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.
A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.
De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro
de Vestígios(2005)
publicado na revista aguasfurtadas 8
Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.
O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:
- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.
O mistério começa do joelho para cima.
O mistério começa do umbigo para baixo
e nunca termina.
Depois de Beranger ter visto seus vizinhos virarem rinocerontes
depois de Clov contemplar a terra arrasada e comunicar-se
em monossílabos com seus pais numa lixeira
depois de Gregory Sansa ter acordado numa manhã
transformado em desprezível inseto aos olhos da família
e Kafka não ter entrado no castelo para ele aberto todavia
depois de Carlito a sós na ceia do ano cavando o inexistente
afeto no ouro dós salões
depois de Se Tsuam perder-se não entre as três virtudes
teologais
mas num maniqueísmo banal entre o bem e o mal
depois dos diálogos estáticos de Vladimir e Estragon
na estrada.de Godot
depois de Alfred Prufrock como um velho numa estação
seca contemplando a devastação e incapaz de perturbar o universo
depois dos labirintos de Teseu, Borges e Robbe-Grillet
depois que o lobo humano se refugiou transido na estepe fria
depois da recherche no tempo perdida e de Ulisses perdido
no périplo de Dublin
depois de Mallarmé se exasperar no jogo inútil de seus dados
e Malevitch descobrir que sobre o branco
só resta o branco por pintar
depois dos falsos moedeiros moendo a escrita exasperante
em suas torres devorando o que das mãos de Cronos
gera e degenera
depois da morte do homem e da morte da alma
depois da morte de Deus na Carolina do Norte
antes e depois do depois
aqui estou Eu confiante Eu pressupondo EU erigindo
Eu cavando Eu remordendo
Eu renitente Eu acorrentado Eu Prometeu Narciso Orfeu
órfano Eu narciso maciço promitente Eu
descosendo a treva barroca desse Yo
sem pejo do passado
reinventando meu secreto
concreto
Weltschmerz
Que ligação estranha então havia entre os nós e os nós
de outros eus
entre Deus e Zeus
que estranha insistência que penitência ardente que estúpido
e tépido humanismo
que fragilidade na memória que vocação de emblemas
e carência em mitografar-se
que projectum árduo e cego que radar tremendo pelas veias
que vocação de camuflar abismos e flutuar no vácuo
que reincidente recolocar do vazio no centro do vazio?
Que aconteça o humano com todos os seus happenings
e dadas?
que para total desespero de mim mesmo e de meus amigos
I have a strong feeling that the sum of the parts does not
equal the whole
e que la connaissance du tout précède celle des parties
e com um irlandês aprendo a dividir 22 por 7 e achar
no resto ZERO
enquanto grito sobre as falésias
when genuine passion moves you say what you have to say
and say it hot
Bêbado de merda e fel egresso da Babel e de onde os sofistas
me lançaram
vate vastíssimo possesso e cego guiado pelo que nele há
de mais cego
tateando abismos em parábolas
açodando a louca parelha que avassala os céus
diante do todo-poderoso Nabucodonosor eu hoje tive um sonho:
OOO: INFERNO - recomeçar
Salute o Satana, "Finnegans reven again!"
agora sei que há a probabilidade da prova e da idade
o descontínuo do tímpano e o contínuo
que de Prometeu se vai a Orfeu e de Ptolomeu se vai
a Galileu
Eurídice e Eu, Eu e Orfeu
o feitiço contra Zebedeu Belzebu e os seus
Madness! Madness!"
sim, loucura, mas não é a primeira vez que me expulsam
da República
loucura, sim, loucura, ora direis
enquanto retiro os jovens louros de anteontem
Que encham a casa de espelhos aliciando as terríveis maravilhas
para que vejam quão desfigurado cursava o filho do homem
em seus desertos cheios de gafanhoto e mel silvestre
que venha o longo verso do humano
o desletrado inconsciente
fora os palimpsestos! Mylord é o jardineiro
eis que o touro negro pula seus cercados e cai no povaréu
Ecce Homo
ego e louco
cego e pouco
ébrio e oco
cheio de sound and fury
in-sano in-mundo
Madness! Madness! Madness!
Madness
Summerhill
Weltschmerz
- ET TOUT LE RESTE EST LITTÉRATURE
1.
Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2.
Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.
3.
Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.
4.
Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.
5.
Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.
6.
Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.
7.
Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.
8.
Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.
9.
Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.
10.
Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.
11.
Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.