Jorge Luis Borges

Jorge Luis Borges Poeta, contista e ensaísta argentino nasceu em Buenos Aires em 1899 e morreu em Genebra em 1986. A avó era de ascendência inglesa e Borges foi Bilingue desde a infância. Borges passou uma temporada com os pais na Europa antes de 1914. Surpreendida pela guerra, a família passou o período de 1914 -18 na Suíça.

Viveu em Espanha entre 1919 e 1921 e dois anos depois regressou à Argentina. Borges começou por publicar poesia ( Fervor de Buenos Aires, 1923) e dedicou-se a escrever contos nos anos seguintes sobre temas ditos argentinos. Na revista Sur, fundada por Victoria Ocampo, publicará recensões, ensaios, poemas e contos. Conhece Adolfo Bioy Casares com quem escreverá vários livros e desenvolverá diversas actividades literárias.

Durante os anos 30 foi perdendo a visão, até ficar cego. Trabalhou a partir de 1937 na Biblioteca Municipal Miguel Cané, mas a ascensão de Perón ao poder obrigou-o a abandonar. Será nomeado director da Biblioteca Nacional em 1955, depois da queda de Péron. Em 1944 surge Ficciones, que reune os contos de O jardim dos caminhos que se bifurcam (1941) e outros que coligiu sob o título de Artificios.

Em 1949 publica O Aleph, outra colecção de contos. Nos anos sessenta viaja pela Europa, fazendo conferências pela Escócia, Inglaterra, França, Suíça e Espanha. Em 1967 casa-se com Elsa Millán que o acompanha aos Estados Unidos. Durante os anos setenta publica poesia (O ouro dos tigres, A rosa profunda, História da noite, entre outros volumes) e vários livros em colaboração. Viaja muito, acompanhado por Maria Kodama, com quem casará pouco antes de morrer. Em 1985 surge o seu último livro de poemas Os Conjurados. (...)

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Poemas

Afterglow

É sempre comovente o pôr do Sol
por indigente ou berrante que seja,
mas ainda bem mais comovedor
é o brilho desesperado e derradeiro
que enferruja a planície
quando o último sol ficou submerso.
Dói-nos reter essa luz tensa e clara,
essa alucinação que impõe ao espaço
o medo unânime da sombra
e que pára de súbito
quando notamos como é falsa,
quando acabam os sonhos,
quando sabemos que sonhamos.

Ausência

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornam vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

Despedida

Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.

Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te,
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo...
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.

tradução: Fernando Pinto do Amaral

em  Obras completas-Vol. I, Círculo de Leitores, 1989

O jogo

Não se olhavam. Na partilhada penumbra ambos estavam sérios e silenciosos.
Ele tinha-lhe pegado na mão esquerda e tirava-lhe e punha-lhe o anel de marfim e o anel de prata.
A seguir pegou-lhe na mão direita e tirou-lhe e pôs-lhe os dois anéis de prata e o anel de ouro com pedras duras.
Ela estendia alternadamente as mãos.
Aquilo durou algum tempo. Foram entrelaçando os dedos e juntando as palmas das mãos.
Procediam com lenta delicadeza, como se temessem enganar-se.
Não sabiam que era necessário aquele jogo para que determinada coisa acontecesse, no futuro, em determinada região.

O apaixonado

Luas, marfins, instrumentos e rosas,
Traços de Dürer, lampiões austeros,
Nove algarismos e o cambiante zero,
Devo fingir que existem essas coisas.
Fingir que no passado aconteceram
Persópolis e Roma e que uma areia
Subtil mediu a sorte dessa ameia
Que os séculos de ferro desfizeram.
Devo fingir as armas e a pira
Da epopeia e os pesados mares
Que corroem da terra os vãos pilares.
Devo fingir que há outros. É mentira.
Só tu existes. Minha desventura,
Minha ventura, inesgotável, pura.

Adão é a tua cinza

A espada morrerá como o racimo.
Não é mais frágil o cristal que a rocha.
As coisas são o seu porvir de pó.
O ferro é ferugem. A voz, o eco.
Adão, o jovem pai, é a tua cinza.
O último jardim será o primeiro.
O rouxinol e Píndaro são vozes.
A aurora é o reflexo do ocaso.
O micénio, a máscara de ouro.
O alto muro, a degradada ruína.
Urquiza, o que deixam os punhais.
O rosto que se olha agora ao espelho
Não é o de ontem. A noite gastou-o.
Modela-nos o tempo delicado.

Que sorte ser a água vulnerável
Que corre na parábola de Heraclito
Ou o intrincado fogo, mas agora,
Neste dia tão longo que não passa,
Sinto-me duradouro e desvalido.

tradução: Fernando Pinto do Amaral

em Obras Completas- Vol.III, Círculo de Leitores, 1989

A Prova

Do outro lado desta porta um homem
ignora a sua corrupção. À noite
elevará em vão alguma prece
ao seu curioso deus, que é três, dois, um,
e julgará que é imortal. Agora
ele ouve a profecia da sua morte
e sabe que é um animal sentado.
És esse homem, irmão. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento.

Hino

Esta manhã
há no ar a incrível fragrância
das rosas do Paraíso.
Nas margens do Eufrates
Adão descobre a frescura da água.
Uma chuva de ouro cai do céu;
é o amor de Zeus.
Salta do mar um peixe
e um homem de Arigento lembrará
ter sido esse peixe.
Na gruta cujo nome será Altamira 
dedos sem rosto traçam a curva
de um lombo de bisonte.
A lenta mão de Virgílio acarinha
a seda trazida
do reino do Imperador Amarelo
por naus e caravanas.
O primeiro rouxinol canta na Hungria.
Jesus vê na moeda o perfil de César.
Pitágoras revela aos seus gregos
que a forma do tempo é a do círculo.
Numa ilha do Oceano
os lebréus de prata perseguem os veados de ouro.

Numa bigorna forjam a espada
que será fiel a Sigurd.
Whitman canta em Manhattan.
Homero nasce em sete cidades.
Uma donzela acaba de caçar
o unicórnio branco.
Todo o passado volta, é uma onda,
e essas antigas coisas recorrem
porque uma mulher te beijou.

Nostalgia do presente

Naquele preciso momento o homem disse:
“O que eu daria pela felicidade
de estar ao teu lado na Islândia
sob o grande dia imóvel
e de repartir o agora
como se reparte a música
ou o sabor de um fruo.”
Naquele preciso momento
o homem estava junto dela na Islândia.

Um sonho

Num deserto lugar do irão há uma não muito alta torre de pedra, sem portas nem janelas. No único compartimento (cujo chão é de terra e tem a forma de um círculo) há uma mesa de madeira e um banco. Nessa cela circular, um homem parecido comigo escreve em caracteres que não compreendo um longo poema sobre um homem que noutra cela circular escreve um poema sobre um homem que noutra cela circular... O processo não tem fim e ninguém poderá ler o que os prisioneiros escrevem.

Inferno, V, 129

Deixam cair o livro, porque sabem
que são personagens do livro.
(Sê-lo-ão de outro, o máximo,
mas isso não lhes interessa.)
Agora são Paolo e Francesca,
não dois amigos que partilham
o sabor de uma história.
Olham um para o outro com incrédula maravilha,
as mãos não se tocam.
Descobriram o único tesouro;
encontraram o outro.
Não atraiçoam Malatesta,
porque a traição exige um terceiro
e só existem eles no mundo inteiro.
São Paolo e Francesca
e também a rainha e o seu amante
e todos os amantes que existiram
desde Adão e a sua Eva
no prado do Paraíso.
Um livro, um sonho revela-lhes
que são formas de um sonho que foi sonhado
em terras de Bretanha.
Outro livro fará com que os homens,
sonhos também, os sonhem.

Os justos

Um homem que cultiva o seu jardim, como queria Voltaire.
O que agradece que na terra haja música.
O que descobre com prazer uma etimologia.
Dois empregados que num café do Sul jogam um silencioso xadrez.
O tipógrafo que compõe bem esta página, que talvez não lhe agrade.
Uma mulher e um homem que lêem os tercetos finais de certo canto.

O que acarinha um animal adormecido.

O que justifica ou quer justificar um mal que lhe fizeram.
O que agradece que na terra haja Stevenson.
O que prefere que os outros tenham razão.
Essas pessoas, que se ignoram, estão a salvar o mundo.

tradução: Fernado Pinto do Amaral

em Obras Completas, Vol. III, Círculo de Leitores, 1989

São os rios

Somos o tempo. Somos a famosa
parábola de Heraclito, o Obscuro.
Somos a água, não diamante duro,
a que se perde, não a que repousa.
Somos o rio e somos esse grego
a olhar-se no rio. A sua imagem
muda na água do espelho entre as margens,
no vidro que varia, fogo cego.
Somos o rio vão, predestinado
rumo ao seu mar. De sombra está cercado.
Tudo nos diz adeus, tudo nos deixa.
A memória não cunha moeda lesta.
E no entanto há algo que ainda resta
e no entanto há algo que se queixa.

Nuvens (I)

Não, nem a uma só coisa é alheia
uma nuvem. Não são as catedrais
de vasta pedra e bíblicos vitrais
que o tempo há-de alisar. Nem a Odisseia,
que muda como o mar. Diferente a sinto
sempre que a abro. O reflexo da tua
face é já outro no espelho que actua
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A numerosa
nuvem a desfazer-se no poente
é a nossa imagem. Incessantemente
converte-se uma rosa noutra rosa.
És mar, és nuvem, és esquecimento.
És tudo aquilo que foste perdendo.

Nuvens (II)

Pelo ar andam plácidas montanhas,
Trágicas cordilheiras de penumbra
Que escurecem o Sol. Quem as vislumbra
Chama-lhes nuvens. As formas são estranhas.
Shakespeare observou uma. Era igual
A um dragão. Tal nuvem de uma tarde
Na sua fala resplandece e arde
E ainda hoje a vemos, afinal.
Que são as nuvens? Uma arquitectura
Do acaso? É Deus que delas necessita
Talvez para executar a Sua infinita
Obra e são fios dessa trama obscura.
Uma nuvem talvez seja tão vã
Como o homem que a vê nesta manhã.

tradução: Fernado Pinto do Amaral

em Obras Completas, Vol. III, Círculo de Leitores, 1989

Borges e eu 

O outro, a Borges, é que acontecem as coisas. Eu caminho pelas ruas de Buenos Aires e demoro-me, talvez já mecanicamente, na contemplação do arco de um saguão e da cancela; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo o seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o sabor do café e a prosa de Stevenson; o outro comunga dessas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um actor. Seria exagerado afirmar que a nossa relação é hostil; eu vivo, eu deixo-me viver, para que Borges possa urdir a sua literatura, e essa literatura justifica-me.

Não me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o que é bom já não seja de alguém, nem sequer do outro, mas da linguagem ou da tradição. Quanto ao mais estou destinado a perder-me definitivamente, e só algum instante de mim poderá sobreviver ao outro. Pouco a pouco vou-lhe cedendo tudo, ainda que me conste o seu perverso hábito de falsificar e magnificar.

Espinosa entendeu que todas as coisas querem pervervar o seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra, e o tigre um tigre. Eu hei-de ficar em Borges, não em mim (se é que sou alguém), mas reconheço-me menos nos seus livros do que em muitos outros ou no laborioso toque de uma viola. Há anos tratei de me livrar dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de imaginar outras coisas. Assim, a minha vida é uma fuga e tudo perco, tudo é do esquecimento ou do outro.

Não sei qual dos dois escreve esta página.

O outro tigre
“And the craft createth a semblance”
Morris, Sigurd the volsung, 1879

Penso num tigre. Esta penumbra exalta
A vasta biblioteca laboriosa
E parece afastar as prateleiras;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Irá pla sua selva e pla manhã
E marcará seu rasto na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Não há passado nem porvir, nem nomes
No seu mundo, só um instante certo)
E salvará as bárbaras distâncias,
Farejando no entrançado labirinto
Entre os odores o odor da alba
E o odor deleitoso do veado.
Por entre as riscas do bambu decifro
Suas riscas, pressinto a ossatura
Debaixo da pele esplêndida que vibra.
Interpôem-se em vão todos os mares
Convexos e os desertos do planeta;
Desta casa de um tão remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Ó tigre que és das margens do rio Ganges.

Na minha alma escorre a tarde e penso
Que o tigre vocativo do meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias de enciclopédia,
Não o tigre fatal, a aziaga jóia
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Samatra ou em Bengala
A rotina do amor, de ócio, de morte.
Ao simbólico tigre eu quis opor
O verdadeiro, o de cálido sangue,
O que dizima a multidão dos búfalos
E hoje, 3 de Agosto de 59,
Alaga na planície uma pausada
Sombra, mas já o facto de o dizer
E de conjecturar-lhe a circunstância
Fá-lo ficção da arte e não criatura
Vivente dessas que andam pela terra.

Procuraremos um terceiro tigre.
Será, tal como os outros, uma forma
Do meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além das vãs mitologias,
Pisa a terra. Bem sei, mas qulquer coisa
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensanta e antiga, e perservero
Em buscar pelo tempo desta tarde
O outro tigre, o que não está no verso.

tradução: Fernado Pinto do Amaral

em Obras Completas- Vol. II, Círculo de Leitores, 1989

Labirinto

Nunca haverá uma porta. Estás cá dentro
E a fortaleza abarca o universo
E não possui anverso nem reverso
Nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor do teu caminho
Que obstinado se se bifurca noutro,
E obstinado se bifurca noutro,
Tenha fim. É de ferro o teu destino
Como o juiz. Não esperes a investida
Do touro que é um homem, cuja estranha
Forma plural dá horror à maranha
De interminável pedra entretecida.
Não existe evasão. Nada te espera.
Nem no negro crepúsculo a fera.

As coisas

O bastão, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura ou as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, as cartas, o tabuleiro.
Um livro e dentro dele a ressequida
Violeta, monumento de uma tarde
Decerto inesquecível, já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Tantas coisas,
Limas, ombreiras, atlas, taças, cravos,
Nos servem como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para lá do nosso esquecimento;
Nunca saberão que já estamos ausentes.

Elogio da sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo da nossa felicidade.
O animal está morto ou quase morto.
Restam o homem e a sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que ainda não são a treva.
Buenos Aires,
que antes se espraiava em arrabaldes
rumo à planície sem fim,
voltou a ser a Recoleta, o Retiro,
as confusas ruas do bairro Once
e as vacilantes casas velhas
a que ainda chamamos o Sul.
Houve sempre na minha vida demasiadas coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;
o tempo foi o meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e é parecida com a eternidade.
Os meus amigos não têm rosto,
as mulheres são o que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isto deveria amedrontar-me,
mas é uma doçura e um regresso.
Das gerações de textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que ainda hoje leio na memória,
lendo-os e transformando-os.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
devaneios e sonhos,
cada ínfimo instante do outrora
e dos outroras do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a luz do persa,
os actos dos mortos,
o partilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
à minha álgebra e à minha chave,
ao meu espelho.
Em breve saberei quem sou.

Tradução: Fernando Pinto do Amaral

em Obras Completas- Vol. II, Círculo de Leitores, 1989

Génesis IV: 8

Foi no primeiro deserto.
Dois braços lançaram uma grande pedra.
Não houve um grito. Houve sangue.

Houve pela primeira vez a morte.

Já não me lembro se fui Abel ou Caim.

O ameaçado

É o amor. Terei de me esconder ou de fugir.
Crescem as paredes da sua prisão, como num sonho atroz. A bela
[máscara mudou, mas como sempre é a única. De que me
[servirão os meus talismãs: o exercício das letras, a vaga
[erudição, a aprendizagem das palavras que o agreste Norte
[usou para cantar os seus mares e as suas espadas, a serena
[amizade, os corredores da Biblioteca, as coisas vulgares, os
[hábitos, o jovem amor da minha mãe, a sombra militar dos
[meus mortos, a noite intemporal, o sabor do sonho?
Estar contigo ou não estar contigo é a medida do meu tempo.
O cântaro já se quebra na fonte, o homem já se levanta à voz das
[aves, os que olham pelas janelas já se escureceram, mas a
[sombra não trouxe a paz.
É, sei já bem, o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir a tua voz,
[a espera e a memória, o horror de viver no sucessivo.
É o amor com as suas mitologias, com as suas pequenas magias
[inúteis.
Há uma esquina por onde não me atrevo a passar.
Já me cercam os exércitos, as hordas.
(Este quarto é irreal; ela não o viu.)
O nome de uma mulher denuncia-me.
Dói-me uma mulher em todo o corpo.

O ouro dos tigres

Até à hora do amarelo ocaso
Quantas vezes terei olhado já
O poderoso tigre de Bengala
Ir e vir plo caminho destinado
Por trás das suas grades, desse ferro,
Sem suspeitar que eram o seu cárcere.
Depois viriam outros tigres,
O tigre de fogo de Blake;
Depois viriam outros ouros,
O metal amoroso que era Zeus
Ou o anel que a cada nove noites
Engendra nove anéis e estes outros nove
Sem nunca haver um fim.
Com os anos partiram, já se foram
As outras belas cores
E agora só me restam
A vaga luz, a inextricável sombra
E o ouro do princípio.
Ó poentes, ó tigres, ó fulgores
Da épica e do mito,
Ó ouro mais precioso, o teu cabelo
Por que estas mãos anseiam.

tradução: Fernando Pinto do Amaral

em Obras Completas- vol II; Círculo de Leitores, 1989

Na infância pratiquei com fervor a adoração ao tigre; não o tigre cor de pêssego dos camalotes do Paraná e da confusão amazônica mas o tigre rajado, asiático, real, que só pode ser enfrentado pelos homens de guerra, encastelados sobre um elefante.

Costumava demorar-me infindavelmente diante de uma das jaulas no Zoológico; apreciava as vastas enciclopédias e os livros de história natural pelo esplendor dos seus tigres. (Lembro-me ainda dessas figuras: eu que não posso recordar sem horror o rosto ou sorriso de uma mulher). A infância passou, caducaram os tigres, e a paixão por eles, mas eles ainda permanecem em meus sonhos.

Nessa lembrança submersa ou caótica, continuam a prevalecer, e assim: adormecido, um sonho qualquer distrai-me e eu sei de imediato que é um sonho. Costumo então pensar: Este é um sonho, uma pura diversão de minha vontade e, já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre. Oh incompetência! Meus sonhos nunca sabem engendrar a apetecida fera. Aparece o tigre, isso sim, mas dissecado e débil, ou com impuras variações de forma, ou bastante fugaz, ou tirante a cão e a pássaro.

lido aqui

Amamos o que não conhecemos, o já perdido.
O bairro que já foi arredores
Os antigos que não nos decepcionaram mais
porque são mito e esplendor.
Os seis volumes de Schopenhauer que jamais terminamos de ler.
A saudade, não a leitura, da segunda parte do Quixote.
O oriente que, na verdade, não existe para o afegão, o persa ou o tártaro.
Os mais velhos com quem não conseguiríamos
conversar durante um quarto de hora.
As mutantes formas da memória, que está feita do esquecido.
Os idiomas que mal deciframos.
Um ou outro verso latino ou saxão que não é mais do que um hábito.
Os amigos que não podem faltar porque já morreram.
O ilimitado nome de Shakespeare.
A mulher que está a nosso lado e que é tão diversa.
O xadrez e a álgebra, que não sei.

lido aqui

 

 

O sul

De um dos pátios ter olhado
as antigas estrelas,
do banco da
sombra ter olhado
essas luzes dispersas
que minha ignorância não aprendeu a nomear
nem a ordenar em constelações,
ter sentido o círculo da água
na secreta cisterna,
o odor do jasmim e da madressilva,
o silêncio do pássaro adormecido,
o arco do saguão, a humidade
-essas coisas são, talvez, o poema.

lido aqui

 

Limites

Há uma linha de Verlaine que tornarei a recordar,
Há uma rua próxima que está vedada a meus passos,
Há um espelho que me viu pela última vez,
Há uma porta que fechei até o fim do mundo.

Entre os livros da minha biblioteca (estou vendo-os)
Há algum que já nunca abrirei.

Este ano completarei cinquenta anos;
A morte me desgasta, incessante.

lido aqui

Entretidos em discutir a morte, anoiteceu e não acendemos a luz.

Não víamos o rosto um do outro.
Com doçura e sem fervor, a voz de Macedonio Fernandez repetia que a alma é imortal.
Garantia que a morte não é nada.
Morrer tinha que ser o menos importante que pode acontecer a um homem.
Eu, Jorge Luis Borges, brincava com a navalha de Macedonio: abria e fechava.
Um acordeom, numa casa vizinha, despachava "la cumparsita", essa choradeira infinita e consternada de que muita gente gosta porque inventaram que é velha.
Então, para podermos continuar discutindo em paz a imortalidade, propus a Macedonio que nos suicidássemos.

Francamente, não lembro se nos suicidamos naquela noite.

tradução: Gregório Bacic

El que abraza a una mujer es Adán. La mujer es Eva.
Todo sucede por primera vez.
He visto una cosa blanca en el cielo. Me dicen que es la luna,

pero
qué puedo hacer con una palabra y con una mitología.
Los árboles me dan un poco de miedo. Son tan hermosos.
Los tranquilos animales se acercan para que yo les diga su
nombre.
Los libros de la biblioteca no tienen letras. Cuando los abro
surgen.
Al hojear el atlas proyecto la forma de Sumatra.
El que prende un fósforo en el oscuro está inventando el
fuego.
En el espejo hay otro que acecha.
El que mira el mar ve a Inglaterra.
El que profiere un verso de Liliencron ha entrado en la
batalla.
He soñado a Cartago y a las legiones que desolaron a
Cartago.
He soñado la espada y la balanza.
Loado sea el amor en el que no hay poseedor ni poseída,
pero los dos se entregan.
Loada sea la pesadilla, que nos revela que podemos crear el
infierno.
El que desciende a un río desciende al Ganges.
El que mira un reloj de arena ve la disolución de un imperio.
El que juega con un puñal presagia la muerte de César.
El que duerme es todos los hombres.
En el desierto vi la joven Esfinge que acaban de labrar.
Nada hay tan antiguo bajo el sol.
Todo sucede por primera vez, pero de un modo eterno.
El que lee mis palabras está inventándolas.

 

lido aqui

De todas as ruas que escurecem ao pôr-do-sol,

deve haver uma (eu não sei dizer qual),

em que já passei pela última vez

sem perceber, refém daquele Alguém

 

que, com antecedência, fixa leis omnipotentes,

ajusta uma balança secreta e inflexível,

para todas as sombras, formas e sonhos

tecidos na textura desta vida.

 

 

Se há um limite para todas as coisas, e uma medida,

e uma última vez, e nada mais, e esquecimento,

quem nos dirá a quem, nesta casa,

nós, sem saber, já dissemos adeus?

 

 

Pela janela que amanhece retira-se a noite

e entre os livros empilhados que lançam sombras

irregulares na mesa difusa,

deve haver um que eu jamais lerei.

 

 

Há uma porta que tu fechaste para sempre

e algum espelho te esperará em vão;

Há uma, entre todas as tuas memórias,

que agora está perdida além da evocação.

 

 

Tu nunca voltarás a recapturar o que o Persa

disse no seu idioma tecido com pássaros e rosas,

quando, ao pôr-do-sol, antes que a luz disperse,

tu queres pôr em palavras tantos inesquecíveis.

 

 

Ao amanhecer pareço ouvir o turbulento

murmúrio de multidões crescendo e dissolvendo;

tudo por que fui amado, esquecido,

espaço, tempo, e Borges, vão me deixar agora.

 

lido aqui