Hans-Ulrich Treichel

Hans-Ulrich Treichel nasceu a 12 de Agosto de 1952 em Versmold, na Vestefália. Poeta romansista e ensaísta, estudou Germanística na Universidade Livre de Berlim, onde se doutorou com uma tese sobre Wolfgang Koeppen, e onde ensina literatura alemã moderna. Foi Leitor de Alemão na Universidade de Salerno e na Escola Normal Superior de Pisa, e bolseiro na Villa Massimo, em Roma.

Trabalhou como libretista, nomeadamente com Hans Werner Henze. Recebeu o Prémio Leonce und Lena, em 1985 e o Prémio Literário da Cidade de Bremen, em 1993. Publicou cinco romances e os seguintes livros de poesia: Ein Restposten Zukunft (1979) Liebe Not(1986); Seit Tagen kein Wunder (1990); Der einzige Gast (1994);  Gespräch unter Bäumen (2002) e Südraum Leipzig (2007).

Em Portugal a Quetzal editou, em 1994, o livro Como se fosse a minha vida, uma selecção de poemas de Hans-Ulrich Treichel, numa tradução colectiva e revista, completada e apresentada por João Barrento

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Poemas

Regras da casa

Nunca omitir os infortúnios
e contar cada história até
ao fim. Tapar com panos
os espelhos; facas debaixo
da mesa. Consolar a coruja e
trinchar o morcego.
Nunca perder a raiva, aconteça
o que acontecer. Deixar entrar
quem quer que seja.

 

Debaixo da oliveira

Que calor está aqui, tanto calor,
e parados os rios cinzentos
debaixo das pontes.

Se não houvesse oliveira,
esta exígua faixa escura,
não poderíamos ficar

Teríamos de correr atrás dos ventos, seguir
a sombra das nuvens como os pássaros
em tempos de caça.

 

Progressos na investigação do caos

Esteja à vontade,
trate-me só por eu
ou omita-me de todo.
Afinal ninguém sabe ao certo
onde começa o próximo.
Poderá dispersar-se,
mas permaneça deitado.
Feche os olhos
e não ouça nada.
Quando nada sentir,
tem de sentir o que sente.
Ou será que também é daqueles
que sangram a cada tiro?
O meu conselho é gorduras vegetais
e inteligência animal.
No entanto, tudo com medida
e sempre de cabeça inclinada.
O resto é bastante simples.

 

Como se fosse a minha vida

De noite não escrevo cartas,
qualquer que seja a luz, para onde quer que seja.
E já não me assusta o elevador
vertiginoso, desde que o sono
me habituou à queda.

Na luz do fim da tarde agora brilha
para sempre a minha varanda amarela.
Campos salgados, colinas esburacadas,
já não me assustais.

Como se fosse a minha vida,
fecho as janelas, vou comendo
pão, poupo energia.

 

Só com marcação

Movam-se. Comovam-se.
Liguem os desumidificadores.
Primeiro morrem as mucosas, depois
cai o ânimo. Ponham os óculos,
escrevam os pareceres.
Deitem-me depois nas vossas coxas
de cabedal, ó mães barbadas, e
telefonem. Dou-vos o que
tenho. Tiro-vos o que sou.
Transporto-vos as mangas de alpaca.
Sejam afáveis. Dêem atenção.
Distraída. Têm em mim
o mesmo de sempre. Não me digam
como passam o domingo,
e sou todo vosso.

 

 

 

 

Tempo sem palavras

Passou depressa
o nosso tempo sem palavras, quando só
o tacto contava

E sabíamos ainda
como o amor pode ser grande
quando ninguém é de
ninguém

 

Verão

De súbito, na rua, está
outra vez um calor inconcebível,
o matraquear das sandálias de pau, as raparigas
abrem as blusas, não me atrevo
a sair da minha pele hirta
de suor e suspiro pelo Inverno,
que tem o seu lado bom, escuridão eterna,
humidade salgada, botas pesadas como pedras,
e o desejo das blusas abertas,
sandálias de pau e luz.

 

Em Janeiro

Ruído macios
em chão gelado.

Vamos atravessando
as florestas secas,
mergulhados em
conversas de fôlego.

Nas orlas do céu
zune  a rede eléctrica
da cidade, circulam
nos nossos desejos
cartas insondáveis.

Mas as histórias
que contamos
não nos levam
as palavras.

 

Estas colinas distantes

Nada, nada mais amei,
só estas colinas distantes.

Nos tempos sem luz
uniram-se ao contorno
dos olhos e prometeram,
como os caminhos nos contos de fadas,
à minha única manhã
um outro dia.

 

Ponto da situação

Um céu tão sujo,
desde há dias sem milagres, só barulho
nas ruas, automóveis imponentes,
em quem hei-de acreditar senão
no meu dentista, um ser
humano tem de ler os jornais,
dou uma dentada e pasmo, há anos
já o vento rugia a pedir clemência
e as chaminés tremem
ainda e sempre de felicidade.

 

Bits e Bytes

Isto não pode acabar bem
isto não pode ser verdade
a lengalenga da eterna
zoada a fábula do
contínuo silvar bits e
bytes escrevem os poetas
nos poemas como se fossem
girassóis como se fosse
canto de melro esse brilho
digital módulos modems
que dia a dia nos cruzam
verdes de vidro fluentes
como éter precisos como
um cintilar no cérebro

A minha ordem

Vou vivendo, os meus
álbuns de fotografias estão
quase cheios, o Estado
que vejo na televisão
é bom para mim
porque eu sou bom
para ele, amnistia
vitalícia que mereço
pela inacção,
tenho as camisas
engomadas, tenho
desejos compatíveis,
respiro, como todos,
tusso, como a maioria,
agora que é Outono
as folhas caem,
e penso: com razão.

 

Conversa debaixo das árvores

O haver ainda árvores
Andorinhas
Poderia ser um consolo
Ainda que elas já não saibam
O que é florescer, voar
E que nós continuemos
Na sombra imóvel
A encostar palavras a palavras
Como se nada nos faltasse

 

Nas margens do Dordogne

Os cães uivam
chamam a noite. Com todo
o desespero dos animais.
O rio arrasta-se até
às estrelas. Nós pomos
as pedras no barco.

 

O desmentido de Sísifo

Sou saudável.
Barbeio-me todos os dias.
Visto uma camisa engomada.
Disto não abdico.
Só o pó me dá que fazer.
Tudo o resto é falso:
O monte onde vivo
não é tão alto como pensam.
Nem monte chega a ser.
E a pedra em breve
já só era o rasto de uma pedra.
Há uns anos deixei-a
escorregar pelo cano abaixo.
Desde então aqui estou
a fazer declarações públicas.
Tudo o resto é falso.

 

Pesadelo

Ninguém me visita
no sono. Os meus fantasmas
sentam-se de noite no jardim.
Uietos como as pedras.
Sem mexer os lábios frios.
Sem um sussurro para mim.

 

Esforço

O suor corre
Em bica como se eu
Cortasse troncos de árvore
E afinal eu só escrevo
Um pequeno poema
Muito frio.

 

 

 

de Como se fosse a minha vida
tradução colectiva* (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento
Quetzal editores, 1994

*Fernando Pinto do Amaral; João Barrento; Maria teresa Dias Furtado; Teolinda Gersão; Egito Gonçalves; Nuno Júdice; M.S. Lourenço; Laureano silveira e Pedro Tamen