Hans Magnus Enzensberger
Hans Magnus Enzensberger,nasceu em Kaufbeuren, na Baviera, em 1929. Estudou literatura e filosofia. Viajante incansavel, viveu em países como a Noruega, a Italia, os Estados Unidos e Cuba. Denunciou o regime de Fidel de Castro, a quem escreveu a condenar a existência na ilha de presos políticos. É autor de obras em géneros diversos, desde histórias para crianças, poesia, filosofia e ensaios (muitos deles de incidência política). A sua poesia inicialmente mais ligada ao surrealismo, foi ganhando uma objectividade crescente. È um dos poetas alemães contemporâneos mais considerados.
Em Portugal foram publicados Perspectivas da Guerra Civil (Relógio D’Água, 1998), Por Onde Tens Andado, Roberto? (Edições ASA, 1999), O Diabo dos Números (Edições ASA, 1998) e Mausoléu (Livros Cotovia, 2004).
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Foto: Jürgen Bauer
há palavras
leves
como sementes de álamo
erguem-se
levadas pelo vento
e voltam a cair
difícil agarrá-las
porque se afastam muito
como sementes de álamo
há palavras
que mais tarde talvez
removerão a terra
que espalharão sombra
uma sombra delgada
ou talvez não
tradução: Eugénio de Andrade
de Trocar de Rosa, Regra do Jogo, 1980
poema encontrado aqui
Niccolò Niccolò irmão de quinhentos anos
assento sobre o teu crânio duro esta coroa de palavras ressequidas
Aqui entre nós, temos todas as razões para te admirar
seco e mesquinho e roído por teorias
Niccolò mestre do passo rastejante
funcionário eternamente ressentido de uma república rasca
Chefe de Estado-Maior, embaixador, Magnificência, polícia
sempre mal pago para o teu gosto de novo-rico
Modelo de todos os historiadores (Poderei eu, sem escandalizar de mais,
escamotear ou subestimar estes factos?)
Como tu no teu tempo, eles remexem hoje em gavetas sujas
cheias de soldadinhos de chumbo quebrados e de duques bolorentos
Fidalgote de província, agora comes figos e feijão e carne seca
roubada aos vermes, e ocupas-te com a pedra nos rins e a venda de madeira
E quanto às tuas mulheres, depenaste-as como galinholas
nos sábados à noite, e para teu cérebro de agiota elas eram como bens móveis
Na minha toca de rato, onde não encontro uma alma que se lembre dos meus fiéis serviços,
discuto por causa de dez liras de divídas ao jogo.
Não te preocupes, Niccolò, que nós sabemos dar valor aos teus méritos
e não esquecemos os teus tempos áureos
Por exemplo anno 1502 em Pistoia, quem deu então por conselho ao chefe:
Arrasar as cidades, queimar a terra, deportar os habitantes?
E quem oferecesse resistência: polé com ele, forca!
Pois alguns castigos, poucos, são mais leves que o excesso de condescendência
Foi um bom ano para Mister Bórgia, de insuperável brilho e grandeza,
para o seu ghostwriter Niccolò e para o First National City Bank de Florença
Dez anos mais tarde veio a catástrofe, a paga foi a ingratidão do mundo,
pensão aos quarenta e três anos, uma herdade rançosa.
Lágrimas de autocompaixão: Pois em nenhum lugar mais
que no coração do povo a ingratidão ergue a cabeça
Incompreendido como qualquer vulgar génio, general
sobre um montinho de toupeira, bufarinheiro de verdades eternas:
Este é o ciclo de todas as formas de governo do mundo,
presentes, passadas e futuras
Provas? A história, o teu auto-retrato, senhor das ratazanas
e de pilhagens, falsos juramentos e labirínticas intrigas
Depois dos trabalhos do dia largo o gabão sujo de camponês,
visto roupas de corte sumptuosas e entro no templo dos Antigos
E à noite, a alma lírica: sonetos mendicantes dedicados ao bandido de serviço
Homem do Renascimento que se preze tem de curvar a cerviz de quando em vez.
Niccolò Niccolò suprema flor de Europa, atafulhado
até ao pescoço de razão de Estado e de uma fabulosa consciência
Leste o coração dos teus leitores, Napoleão, Franco, Estaline e eu,
teus gratos discípulos, e por isso mereces louvor:
Pelas tuas frases nuas, de pedra, pela tua coragem de ser cobarde,
pela tua profunda banalidade e pela tua nova ciência
Niccolò, salafrário, poeta, oportunista, clássico, carrasco:
és o homem antigo como o livro o pinta, e por isso saúdo o teu livro
Niccolò, meu irmão, e nunca o esquecerei, e pelas tuas mentiras
que tantas vezes dizem a verdade amaldiçoo a tua mão torta.
alguém ri
está preocupado
expõe a minha cara com pele e cabelo debaixo do céu
faz rolar palavras da minha boca
alguém que tem dinheiro e medo e um passaporte
alguém que briga e ama
alguém se move
alguém estrebucha
mas não eu
eu sou o outro
que não ri
que não tem cara debaixo do céu
nem palavras na boca
que é desconhecido consigo e comigo
não eu: o outro: sempre o outro
que não vence nem é vencido
que não se preocupa
que não se move
o outro
que se é indiferente
de quem não sei
de quem ninguém sabe quem é
que não me comove
que sou eu
Tradução: Almeida Faria
de Poemas Políticos,Publicações Dom Quixote,1975
não leias odes, meu filho, lê antes horários:
são mais exactos. desenrola as cartas marítimas
antes que seja tarde, toma cuidado, não cantes.
o dia vem vindo em que hão-de outra vez pregar as listas
nas portas e marcar a fogo no peito os que digam
não. aprende a passar despercebido, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de bilhete de identidade, de cara.
treina-te nas pequenas traições, na mesquinha
fuga quotidiana, úteis as encíclicas
mas para acender o lume, e os manifestos
são bons para embrulhar a manteiga e o sal
dos indefesos, a cólera e a paciência são precisas
para assoprar-se nos pulmões do poder
o pó fino e mortal, moído por
aqueles que aprenderam muito
e são meticulosos por ti.
Tradução: Jorge de Sena
poema encontrado aqui
Perdem-se o cabelo, os nervos,
vocês entendem, o tempo precioso,
perde-se altura no posto
perdido, brilho, sinto muito,
não faz mal, por pontos,
não me interrompam, perde-se
sangue, pai e mãe,
o coração perdido em Heidelberg,
sem pestanejar
perdem-se, de novo, os encantos
da novidade, passe-se uma esponja,
os direitos cívicos, oh sim,
a cabeça, em nome de Deus, a cabeça,
se for indispensável,
o paraíso perdido, por mim,
o emprego, a ovelha perdida,
a cara e ainda por cima,
um molar, duas guerras mundiais,
perdem-se três quilos de sobrepeso,
perde-se, unicamente se perde, também
as ilusões perdidas há muito,
vá lá nem uma palavrinha perdida
sobre o esforço perdido,
vá, a luz dos olhos
perde-se de vista, uma pena, a chave da casa,
uma pena, a si mesmo, perdido em pensamentos,
perde-se a gente na multidão,
não me interrompam,
o juízo, o último vintém,
seja, mas já estou chegando ao fim,
a linha, o saco e a farinha,
perde-se tudo de vez,
ai, inclusive o fio,
a carteira de motorista, e a vontade.
Tradução: Kurt Scharf e Armindo Trevisan
Porque o momento
em que a palavra feliz
é dita
nunca é o momento da felicidade.
Porque o sedento não traz
aos lábios sua sede.
Porque pela boca da classe operária
não passa a expressão classe operária.
Porque quem se desespera
não tem vontade de dizer:
"Estou desesperado".
Porque orgasmo e orgasmo
estão a mundos de distância.
Porque o moribundo, em vez de declarar
"estou morrendo", estertora apenas
um gemido baixo
e, para nós, incompreensível.
Porque são os vivos
que enchem o ouvido dos mortos
com suas notícias atrozes.
Porque as palavras sempre chegam
tarde demais ou cedo demais.
Porque é um outro,
sempre um outro,
quem fala
e porque
aquele de quem se fala
silencia.
de O Naufrágio do Titanic, 1978
Na esquina próxima
três irmãs velhacas estão
em seu paiol de madeira.
Por acaso, elas servem
assassinato veneno guerra
para o desjejum
duma distinta clientela.
Tempo bom hoje. Sem-teto
devoram biscoitos pra cachorro.
Latifundiários no controle, nas villas em
modelitos Tanagra,
e outras criaturas viventes
que, ao nascer, pontualmente,
somem banco adentro
estranhos como o mamute
com sua presa anelada ou
um louva-deus orando.
Eles não me incomodam.
Eu também faço
minhas compras na Destino´s.
Tradução: Joca Reiners Terron